sexta-feira, 21 de junho de 2019

Che Guevara: Política – Eder Sader (org.)


Che Guevara: Política – Eder Sader (org.)



Resenha Livro – “Che Guevara: Política” – Eder Sader (org.)- Editora Expressão Popular

O mais provável é que Che Guevara seja mais conhecido por sua trajetória pessoal e sua intervenção nos acontecimentos da revolução cubana de 1959 do que por suas formulações políticas desde artigos, cartas e palestras. Na verdade, aquela trajetória prática explica bastante o tipo de política defendida pelo Che – a iniciativa pessoal e o voluntarismo revolucionário estão presentes por exemplo nas formulações que o Che estabelece para o problema da economia, especialmente quando foi ministro da indústria na Cuba pós revolução. É necessário situar o passado e a experiência acumulada pelas viagens e pelo exercício de uma medicina popular como momentos de formação política do revolucionário.

Desde jovem o Che fora um aficionado por viagens. Com 19 anos percorreu 4.700 Km do interior da Argentina de bicicleta em férias escolares. Aos 23 anos comprou uma motocicleta com o amigo Alberto Granados, médico recém formado, com quem viajou pela américa latina. Subiram o continente pelo Peru, atravessaram o Amazonas a barco em direção à Colômbia e, depois, Venezuela. Em março de 1953 Che, já estabelecido na Argentina, conclui a faculdade de medicina. Em agosto do mesmo ano Che enfrenta uma viagem de 6000 km em direção à Bolívia onde tem seu primeiro contato mais decisivo com a mobilização popular. Em 1952 uma insurreição popular levou o Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) ao poder naquele país, com um governo popular em La Paz e milícias operárias no âmbito das minas que foram nacionalizadas. Por outro lado, na Bolívia o Che constata certos problemas quanto ao MNR: observa-se a burocratização que seria anos depois discutida de forma tão consequente no “Contra el burocratismo”. As causas da burocratização suscitados por Che em Cuba serão a ausência de consciência revolucionária, a falta de interesse dos indivíduos em superarem as situações dadas e acomodarem-se à papelada e às faltas de terceiros. Outra causa suscitada é o problema da organização. Por fim, a falta de conhecimentos técnicos suficientemente desenvolvidos para que se possa tomar decisões justas e em pouco tempo.

Retomando à trajetória pessoal do Che, um segundo momento decisivo em sua formação política anterior à revolução dá-se em 1953 quando chega na Guatemala. Já tinha então lido diversos textos políticos mas o fundamental sempre lhe surgia a partir da experiência. Desde 1944 a Guatemala vivia uma experiência reformista dirigida por Juan José Arévalo após a derrubada de uma longa ditadura militar. O governo democrático leva adiante um programa de aumento salarial, plano de assistência às populações indígenas e uma reforma agrária. O tema da reforma agrária seria central no desenvolvimento da guerrilha cubana e o mais provável é que o Che posteriormente viria a superestimar esta bandeira democrática na luta revolucionária quando de suas reflexões sobre as possibilidades de generalização da experiência cubana aos demais países latino americanos. De qualquer forma, o problema do latifúndio assumia uma vinculação direta não só com a herança colonial americana mas com o imperialismo.

Em 1952 o sucessor Jocobo Arbenz decreta uma lei de reforma agrária ameaçando 2% de proprietários que detinham 70% das terras. A United Fruit era só ela dona de 225 mil hectares de terra das quais 164 mil seriam expropriadas pelo governo.

A reação do imperialismo não poderia tardar: em 18.6.1954 um “exército de libertação” com base em Honduras e contando com 200 mercenários invade o país. Quando as tropas invasoras penetram a capital e começam as execuções, o nome de Che já figurava na lista de morte. Teve de se refugiar na embaixada da Argentina. Ainda era antes um médico do que um revolucionário mas já presenciava na pele a violência militar do imperialismo.

Após o fracassado ataque ao Quartel de Moncada em 26.7.1953 os exilados cubanos encontram-se no México onde preparam uma nova ofensiva. No México Che primeiro teve contatos pessoais com Raul Castro e depois com Fidel. Consta que Che e Fidel ficaram uma noite inteira conversando sobre política e ao final ficou decidido que Che Guevara seria o médico da expedição partindo do Granma.

Um artigo interessante para se conhecer os primeiros momentos da luta revolucionária em Cuba é o capítulo “Alegría de Pío” em “Pasajens de lá guerra revolucionaria”. Alegra de Pío fica na província do Oriente onde os guerrilheiros tiveram o primeiro enfrentamento com as tropas da ditadura. O desembarque do Granma deu-se em 2.12.1956 contando com 82 combatentes que viajaram em precárias condições pelo Caribe: destes, cerca de 20 combatentes sobreviveram. Sem alimentos, com equipamentos perdidos, incluindo os remédios, não poderiam haver piores condições para o começo da luta. Mas o que impressiona é a certeza da vitória que emana e se projeta a partir da liderança de Fidel. Consta que depois dos ataques aéreos, quando o pequeno grupo sobrevivente se rearticula, Fidel exclama que eles venceram a revolução. Aqui há um momento simbólico que Che relata em seu artigo. No meio da saraivada de balas os revolucionários se viram obrigados a uma retirada e Che havia sido baleado. Tinha ao seu lado uma mochila cheia de balas deixada por um camarada abatido e sua bolsa de médico. Não podia carregar as duas. Escolheu as balas e desde então deixou de ser médico para ser exclusivamente um revolucionário.

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As obras completas de Che Guevara foram reunidas em “Ernesto Che Guevara – obras: 1957-1967”, editada pela Casa de las Américas. Na verdade sua produção deu-se em torno de artigos e intervenções públicas, além de cartas e diários. Poderíamos propor uma divisão em três grandes eixos de sua intervenção.

Primeiro, a reflexão sobre o problema da guerrilha revolucionária e a polêmica sobre se a revolução cubana seria ou não uma excepcionalidade histórica. Che entende que não é: em que pese a particularidade de cada nação latino-americana, poderia-se suscitar o problema do latifúndio, a luta dos camponeses pela terra, o papel das oligarquias locais e do imperialismo (sobretudo o norte americano) como os fatores comuns e mais determinantes para o desenvolvimento da luta. Che não ignora que a luta armada deve obedecer às condições objetivas e subjetivas colocadas – em Cuba uma ditadura feroz e a alta espoliação dos trabalhadores do campo criaram as condições para a afinidade entre guerrilheiros e camponeses sem a qual a revolução não poderia ter triunfado. Se Che é claro ao estabelecer que a Guerrilha por exemplo pode não ser possível onde há uma democracia burguesa – e ilusões disseminadas no povo quanto às instituições – não parece estar muito fora de dúvida que, para ele e Fidel, a via revolucionária é a única possível para os povos submetidos ao jugo da exploração. E Cuba aqui apenas seria a vanguarda de um desenvolvimento que tenderia a se generalizar.

O segundo eixo temático dos seus textos como já dissemos é o problema da economia. No caso da economia de Cuba pós revolução há o projeto de fazer com que a renda das empresas sejam revertidas para o orçamento da nação – no caso o sentido de empresa muda por suposto, tratando-se de unidades produtivas com planificação centralizada. O dinheiro não deve expressar valor reificado mas se referir a uma relação de troca, a sua mera expressão algébrica. A planificação envolve a busca pela diversificação da economia – o passado monocultor colonial deve ser substituído pelo desenvolvimento da indústria e pela substituição das exportações. A indústria de bens deve atender às necessidades do povo que se expandem. Che entende serem necessários os estímulos materiais individuais para o aumento da produção mas condena o uso indiscriminado do método por se contrapor ao projeto societário almejado.

O terceiro eixo temático também diz respeito ao problema da construção do socialismo mas agora na sua faceta mais humana. Talvez aqui o Che que viajou por toda América e conheceu como ninguém o seu povo esteja mais presente. Quando fala contra o burocratismo e o sectarismo, reconhece antes de tudo os erros cometidos pelo próprio movimento revolucionário e seus dirigentes. Tem uma atitude franca e transparente sobre os problemas da organização e exige uma vigilância estrita sobre o partido e seus quadros. Os abusos cometidos, diz, faz com que o povo perca a fé na revolução, que é o que de pior poderia acontecer para o movimento. Contra-revolução não vem apenas do imperialismo e seus prepostos, mas do oportunismo e do burocratismo.

Se a história do revolucionário é mais conhecida do que as suas formulações, conhecer suas teses é entrar em contato com sua experiência. Che, suscitando Lênin, diz que o marxismo é um guia para ação.

Em 1965 Che Guevara desaparece da vida pública. Planeja abrir uma frente revolucionária em Bolívia que se expandiria por toda a América Latina. Quando é detido e morto, tinha 16 companheiros ao seu lado.        

    

sexta-feira, 14 de junho de 2019

“Inocência” – Visconde de Taunay


“Inocência” – Visconde de Taunay 



Resenha Livro - “Inocência” – Visconde de Taunay – Edições Melhoramentos – 34ª Edição Brasileira

“Vê tudo aquilo o sertanejo com olhar carregado de sono. Caem-lhe pesadas as pálpebras; bem se lembra de que por ali podem rastejar venenosas alimárias, mas é fatalista; confia no destino e, sem mais preocupação, adormece com serenidade” ( TAUNAY, Visconde. Inocência. Pg. 15).

Já foi dito que o romance “Inocência” do escritor e engenheiro militar Visconde de Taunay poderia ser descrito como uma versão de Romeu e Julieta situada nos sertões do Brasil de meados do século XIX – no caso a história se passa entre 1860 e 1863. Seria necessário fazer algumas ponderações acerca desta assertiva. Indubitavelmente, o livro foi um sucesso a seu tempo e jamais deixou de ser solicitado pelo público. A obra foi publicada em 1872 e desde então vem sendo republicado em sucessivas edições, além de ter sido traduzido em nada menos do que 10 idiomas, incluindo o japonês. Todavia, para o leitor de hoje é provável que o desenlace amoroso entre o jovem Cirino e a pequena Inocência nos surja hoje como algo de certa forma artificial e improvável.

Inocência é filha de um sertanejo mineiro que reside com sua única parenta nos rincões do Mato-Grosso. Ao teor da cultura local, a mulher é retida quase como uma prisioneira no recinto doméstico, longe do alcance dos olhares dos matutos e viajantes daquelas paragens, sob a mais estrita vigilância do pai que, como mineiro, tem aquele temperamento meio desconfiado meio hospitaleiro que ainda hoje dizem respeito às particularidades das gentes de Minas Gerais.

Cirino é outro tipo popular, no caso filho de farmacêuticos que percorre os sertões promovendo a curo de moléstia através de um método que envolve parcialmente o conhecimento científico disponível da época e em parte as ervas, as plantes, o Jaracatiá, o Quino e as demais fontes naturais oriundas da sabedoria popular. No que se refere ao lado científico do doutor Cirino, sua intervenção se base basicamente na obra de Chernoviz[1].

Mas, como dizíamos, parece-nos que o problema amoroso não se revela, ao menos hoje, como o aspecto de maior interesse da obra. “Inocência” se situa nos marcos da primeira fase do nosso romantismo literário – as descrições da natureza se embaralham com a estética romântica de modo que o cenário, a vegetação, os rios e os animais possuem uma dinâmica própria, infundem sentimentos e sensações no leitor e também nos personagens, informam o espírito do sertanejo e possuem uma beleza literária toda à parte.

Aparentemente, poderia se cogitar que a obra de certa forma antecipa a temática regionalista que seria muita depois desenvolvida pela 2ª geração modernista das quais Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Rachel de Queiróz são os prováveis maiores expoentes. Mas o romance parece-nos ser antes de tudo Brasileiro e não regionalista. Através de uma composição pitoresca e diversificada dos tipos sociais que informam já uma ideia de nacionalidade, o sertão já se revela como um universo de tipo nacional. Cirino é paulista, tributário dos bandeirantes, “mamelucos [que] saíam para ir por esses mundos a fora bater índios brabos e caçar onças, botando bandeiras até na costa do Paraguai e no Salto do Paraná, tanto assim que deram nas reduções e trouxeram de lá imundice de gente amarrada” (Pg. 81-82). Cirino tem um temperamento retido e é consequente e leal aos seus sentimentos amorosos. Há o tipo carioca representado pelo José Pinho, sempre reclamando do trabalho penoso, um tipo falastrão e indolente, mas também bondoso. Além do mineiro, há mesmo o estrangeiro Meyer, um alemão, cientista, que viaja pelo Brasil em busca de insetos e borboletas em missão científica patrocinada pela nação germânica. A presença do estrangeiro revela algo que já havia sido capturado pela sociologia Brasileira – a cordialidade e hospitalidade do povo brasileiro tão comemorada pelos viajantes de fora. É certo que a hospitalidade, a caridade e a confraternização, convivem, no caso, com a desconfiança de Pereira quanto às intenções do cientista no que se refere à sua filha Inocência.

O romantismo em “Inocência” se revela também pelo tom nacionalista da obra, pela descrição da paisagem, particularmente do cenário natural do cerrado, e pela composição de personagens diferentes que expressam os tipos sociais predominantes: o fazendeiro Pereira, a sua reduzida escravaria, os viajantes sertanejos, as pequenas vilas com seus juízes de paz, coronéis e vigários. Um certo fatalismo envolve o problema do amor, culminando num final trágico, aparentemente inevitável. Mas Taunay sugere em algumas passagens que a própria forma como a mulher, o sexo delicado, é tratada nos pontos mais periféricos do Brasil seria na verdade a causa da fatalidade. Meyer, o alemão, sugere que o pai de inocência não a casa pela força. Inocência tenta se insurgir com o enlace forçado com Manecão e é repelida com violência pelo pai. Cirino intenta discutir com Pereira sobre sua noção negativa da mulher.

Não há por outro lado uma força moral ou uma coragem arrebatadora que possibilite que Cirino e Inocência, uma vez se amando, se insurjam contra o casamento forçado da jovem com Manecão. Os dois sucumbem à tragédia apenas cogitando algum lance de ousadia, como a fuga. Talvez, o fracasso do enlace amoroso dê um verniz mais humano à história, na medida em que Cirino e Inocência apenas reagem de acordo com suas possibilidades, sem um heroísmo que fizesse da história ainda menos verossímil para o leitor dos dias de hoje. O que é certo é que “Inocência” ainda está preso a alguns pressupostos do próprio modelo literário romântico, dentre eles a tragedicidade do amor, que é o limite da obra. Seu interesse todavia ainda é bastante relevante como fonte preciosa acerca do passado brasileiro, dos tipos sociais, das expressões da língua popular, da força predominante da fé cristã, do problema da mulher, das práticas medicinais que combinam alguns conceitos científicos e a sabedoria popular. O livro é parte de um movimento literário amplo em busca da construção da nacionalidade brasileira cujo ponto de chegada é o modernismo em suas diferentes gerações.

“De vez em quando, naquela silenciosa rua em que tão bem se estampa o tipo melancólico de uma povoação acanhada e em decadência, aparece uma ou outra tropa carregada, que levanta nuvens de pó vermelho e atrai às janelas rostos macilentos de mulheres, ou à porta crianças pálidas das febres do Rio Parnaíba e barrigudas de comerem terra.
Também aos domingos, à hora da missa por ali cruzam mulheres velhas, embrulhadas em mantilhas, acompanhando outras mais mocinhas, que trajam capote comprido até aos pés e usam daqueles pentes andaluzes, de moda em tempos que já vão longe”


[1] Pedro Luiz Napoleão Chernoviz foi um médico, acadêmico e editor polonês que consolidou sua carreira e fama no Império do Brasil.

terça-feira, 4 de junho de 2019

“Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré


“Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré



Resenha livro - “Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré  - Graphia Editorial

Nelson Werneck Sodré foi historiador e militar. Publicou mais de meia centena de livros editados no Brasil e no exterior. Obras em geral relacionadas à questão nacional, à história do brasil e sua literatura. Foi ligado ao ISEB, instituto que fez contraponto, do ponto de vista de sua produção cultural, à Escola Superior de Guerra. O ISEB oferecia a perspectiva nacionalista, desenvolvimentista e anti-imperialista e a vinculação de Sodré com os movimentos de libertação nacional fizeram com que o historiador não fosse muito longe na carreira militar. Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados e foi proibido de lecionar e escrever artigos na imprensa.

Este Panorama do Segundo Império foi publicado em 1939, trata-se do segundo livro do autor. A obra se situa num contexto de mudanças no país e nas elaborações teórico-metodológicas da historiografia nacional. Estamos diante do contexto do modernismo historiográfico em que o velho positivismo de Varnhagen e, em certa medida, Capistrano de Abreu, vão sendo substituídos pela forma do ensaio e por uma maior aproximação da história com as demais ciências sociais. É o caso de Casa Grande e Senzala (1933) de Gylberto Freire em que se verifica uma abordagem influenciada pela antropologia norte americana com o problema da cultura tendo ênfase decisiva na constituição do povo, da nação e na própria explicação dos destinos históricos. É o caso de outros como Sérgio Buarque de Holanda e sua orientação webberiana e a primazia dos elementos econômicos e dos sentidos da história através do marxismo original de Caio Prado Júnior.

No caso de Nelson Werneck Sodré sua proposta metodológica é indubitavelmente materialista – não é preciso estar de acordo com algumas conclusões discutíveis do livro, mas deve-se reconhecer o esforço do autor em explicar os fenômenos da história através de um complexo painel envolvendo instituições políticas, relações econômicas de base e a intervenção dos indivíduos na história. Vai além portanto do mero inventário sucessivo de fatos sem a explicação dos processos imanentes.

“Ora, a mutação dos padrões econômicos produz, necessariamente, uma mutação nos valores políticos. Isso é axiomático. As sociedades industrializadas não têm as mesmas instituições que as sociedades agrárias. Nem os agrupamentos humanos, acostumados a um certo padrão de vida, que lhes é proporcionado pela organização econômica, podem ter a mesma moral e costumes idênticos aos dos outros agrupamentos humanos que vivem ainda da caça e da pesca, na mais primária situação econômica”.  

Os capítulos estão subdivididos dentre os panoramas da escravidão, o panorama da política, o panorama parlamentar, o panorama da economia. Aborda-se a questão dos partidos, a questão da centralização política tão decisiva ao II Império e mesmo os problemas da organização judiciária e organização fiscal. Tais aspectos políticos se somam por outro lado às mudanças na composição das classes sociais hegemônicas ao longo do séc. XIX. Nos três séculos coloniais verifica-se a elite portuguesa diante do exclusivismo comercial e da própria política da metrópole que buscava fazer com que as questões de cada região fossem tratadas diretamente com Portugal evitando-se a comunhão de interesses nacionais que pudesse colocar em risco todo o sistema colonial. Após o advento da corte em 1808, a independência, a regência e no começo do império, a nova hegemonia é a da a elite agrária, dos latifundiários do açúcar, do algodão do Maranhão, da sociedade pecuarista, dos domínios do metal e do diamante e mais recentemente do café no Rio de janeiro e no Vale do Paraíba. Paulatinamente, com o advento da urbanização, com a renitente centralização do regime e o enfraquecimento econômico da lavoura da cana de açúcar diante da concorrência do açúcar de beterraba, o advento e crescimento da chamada elite dos letrados. O termo não é de Nelson Werneck Sodré mas de Oliveira Vianna. Sobre a transição, diz o autor:

“A própria evolução dos acontecimentos, mais do que a ação dos partidos, confusa e duvidosa, apressaria a circulação das elites. O advento da imigração, em São Paulo, e a crise econômica da lavoura da cana e da indústria açucareira, em Pernambuco, fazendo com que os representantes agrários das duas províncias se bandeassem, contribuiu para a vitória da elite dos letrados. Aceitando o abolicionismo, pactuavam com a república. República e abolição, da forma como foram estabelecidas, era a morte da representação da lavoura, o fim da fase agrária na vida brasileira, o advento nítido e real da fase urbana, com o domínio pleno, absoluto, preciso, da elite letrada”.

A proposta de interpretação do segundo reinado por Nelson Werneck Sodré envolve uma interpretação não só materialista, mas dialética. Foram as próprias contradições do II Regime que o fizeram cair sem qualquer reação, seja das forças sociais do país seja do próprio regime em forma de retaliação ou luta por sobreviver.  

O regime do II Reinado seguiria um desenvolvimento ascendente até o advento da Guerra do Paraguai. Antes da Guerra sulina o Brasil virtualmente não possuía forças armadas – havia algo em torno de 15 mil pessoas em todo o país em armas. A mobilização envolveu gente de todos os cantos do país. Criou as bases para a conformação de uma classe de militares que, emponderados, passariam à ação política com o término da Guerra. O elemento servil aqui também merece uma menção: muitos escravos foram arregimentados para lutar no Paraguai, ombro a ombro com outros compatriotas dos mais diversos recantos do país sendo contraditório que os praças retornassem ao país na condição de servos. Para os dirigentes militares brasileiros era motivo de vergonha perante os demais países conduzir exército feito de escravos.

A abolição da escravatura em 1888 foi igualmente um dos elementos decisivos para a queda final do regime. Enquanto à abolição do tráfico marítimo deu-se em 1850, o regime servil ainda permaneceu bastante presente em algumas regiões do país – destaque para o Rio de janeiro e Pernambuco. Em outras províncias como o Ceará e o Amazonas, onde não se dependia tanto da mão de obra escrava, a escravidão foi abolida antes da cessão final. Em São Paulo, sob o crescimento da cultura cafeeira e já com uma política de imigração como substituição da mão de obra, a abolição não trouxe grandes impactos políticos. Mas o mesmo não se pode dizer das remanescentes províncias latifundiárias do açúcar que, do dia para a noite, viram-se privadas das suas propriedades e retiram o seu apoio ao regime.

O povo assiste aos eventos de 1889 de forma bestializado, no sentido de indiferença  pela sorte do império.

Um dos aspectos mais decisivos naquele desenvolvimento histórico foi o problema da centralização. No Brasil do II Império a noção de federalismo equivalia, para as elites políticas, a secção territorial e à quebra da unidade. 

Com isto, o regime administrativo era ultra-centralizado: os presidentes das províncias eram indicados desde o Rio de Janeiro, não raro por pessoas que sequer eram da terra. O sistema fiscal era todo ele drenado  da periferia ao centro não restando às assembleias provinciais a possibilidade de ajustar recursos para mover as potencialidades e a vida local. O Império emanava ordens e diretrizes que deviam ser uniformes, dogmáticas e auto-aplicáveis em todos os cantos do país, o que era impraticável considerando os problemas do vasto território nacional e as dificuldades de comunicação – o transporte se fazia de forma bastante irregular, através de rios e mulas. Relata-se o assombro do Conde D’Eu que esteve numa pequena vila no interior do Rio Grande do Sul do séc. XIX. Os moradores construíram uma pequena igrejinha e aguardavam o despacho do Bispo do Rio de Janeiro e do Imperador para proceder a uma simples transferência da paróquia. Em uma província aguardava-se 3, 4 ou mais anos para autorizar-se a criação de uma simples alfândega ou de um porto. O centro decidia tudo, dos livros adotados em determinadas cadeiras da faculdade de direito de Recife (fato igualmente relatado) até a concessão de mercês e comendas destinadas à elite agrária que, em contrapartida, via perdendo seu prestígio político no centro através da nova elite dos letrados. O centro não tinha a iniciativa de um largo programa de reconstrução nacional e organismo político era atrofiado com sua cabeça enorme e seus membros periféricos definhando.

“Havia, porém, o desejo de acudir a tudo, de atender a tudo, de tomar conta de tudo. Nada devia fugir à vigilância extrema desses guardas invioláveis da centralização. Era uma mentalidade dogmática e tola, risível em muitos pontos, mas dominante e que pondera em toda a parte e em todos os recantos, abrangendo todos os assuntos”.

A questão do federalismo surgiria de forma embrionária com o partido republicano (1870). Depois seria incorporada como bandeira dos liberais até impor-se como política com o advento da República. Questão interessante para se discutir é entender porque a queda de um império de meio século de consolidação caiu com o golpe militar sem qualquer reação. Nelson Werneck chama atenção para um fato pouco suscitado pelos historiadores: os momentos que precederam o fim do II Império envolveram alguma hesitação no sentido do que se fazer com D. Pedro II. O desejo ocultos de alguns era mesmo esperar a morte do imperador para proceder-se a um novo arranjo institucional republicano através dos gabinetes. D. Pedro II não perdera o prestígio pessoal mas perdera o apoio político. A centralização ocasionara a crise com a Igreja. A centralização culminou no descontentamente das elites agrárias deslocadas do poder pela elite dos letrados. A guerra do Paraguai e a intervenção dos militares na política como um novo agente implicaria na divisão dos partidos tradicionais e no re-equilíbrio das forças políticas. Aliás, se no começo do segundo império havia alguma nitidez na divisão partidária entre liberais e conservadores, as sucessões de gabinetes e as mudanças na composição social das organizações acabariam com qualquer linha demarcatória entre os partidos.

A abolição da escravatura alienando o apoio das forças agrárias que haviam permitido a centralização. A destruição das oligarquias pela e retirada de prerrogativas. Estes foram os males e enfermidades que implicaram na queda do II Império, iniciando-se a etapa da república cujo mote passa a ser o federalismo e a descentralização.