terça-feira, 4 de junho de 2019

“Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré


“Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré



Resenha livro - “Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré  - Graphia Editorial

Nelson Werneck Sodré foi historiador e militar. Publicou mais de meia centena de livros editados no Brasil e no exterior. Obras em geral relacionadas à questão nacional, à história do brasil e sua literatura. Foi ligado ao ISEB, instituto que fez contraponto, do ponto de vista de sua produção cultural, à Escola Superior de Guerra. O ISEB oferecia a perspectiva nacionalista, desenvolvimentista e anti-imperialista e a vinculação de Sodré com os movimentos de libertação nacional fizeram com que o historiador não fosse muito longe na carreira militar. Com o golpe militar de 1964, teve seus direitos políticos cassados e foi proibido de lecionar e escrever artigos na imprensa.

Este Panorama do Segundo Império foi publicado em 1939, trata-se do segundo livro do autor. A obra se situa num contexto de mudanças no país e nas elaborações teórico-metodológicas da historiografia nacional. Estamos diante do contexto do modernismo historiográfico em que o velho positivismo de Varnhagen e, em certa medida, Capistrano de Abreu, vão sendo substituídos pela forma do ensaio e por uma maior aproximação da história com as demais ciências sociais. É o caso de Casa Grande e Senzala (1933) de Gylberto Freire em que se verifica uma abordagem influenciada pela antropologia norte americana com o problema da cultura tendo ênfase decisiva na constituição do povo, da nação e na própria explicação dos destinos históricos. É o caso de outros como Sérgio Buarque de Holanda e sua orientação webberiana e a primazia dos elementos econômicos e dos sentidos da história através do marxismo original de Caio Prado Júnior.

No caso de Nelson Werneck Sodré sua proposta metodológica é indubitavelmente materialista – não é preciso estar de acordo com algumas conclusões discutíveis do livro, mas deve-se reconhecer o esforço do autor em explicar os fenômenos da história através de um complexo painel envolvendo instituições políticas, relações econômicas de base e a intervenção dos indivíduos na história. Vai além portanto do mero inventário sucessivo de fatos sem a explicação dos processos imanentes.

“Ora, a mutação dos padrões econômicos produz, necessariamente, uma mutação nos valores políticos. Isso é axiomático. As sociedades industrializadas não têm as mesmas instituições que as sociedades agrárias. Nem os agrupamentos humanos, acostumados a um certo padrão de vida, que lhes é proporcionado pela organização econômica, podem ter a mesma moral e costumes idênticos aos dos outros agrupamentos humanos que vivem ainda da caça e da pesca, na mais primária situação econômica”.  

Os capítulos estão subdivididos dentre os panoramas da escravidão, o panorama da política, o panorama parlamentar, o panorama da economia. Aborda-se a questão dos partidos, a questão da centralização política tão decisiva ao II Império e mesmo os problemas da organização judiciária e organização fiscal. Tais aspectos políticos se somam por outro lado às mudanças na composição das classes sociais hegemônicas ao longo do séc. XIX. Nos três séculos coloniais verifica-se a elite portuguesa diante do exclusivismo comercial e da própria política da metrópole que buscava fazer com que as questões de cada região fossem tratadas diretamente com Portugal evitando-se a comunhão de interesses nacionais que pudesse colocar em risco todo o sistema colonial. Após o advento da corte em 1808, a independência, a regência e no começo do império, a nova hegemonia é a da a elite agrária, dos latifundiários do açúcar, do algodão do Maranhão, da sociedade pecuarista, dos domínios do metal e do diamante e mais recentemente do café no Rio de janeiro e no Vale do Paraíba. Paulatinamente, com o advento da urbanização, com a renitente centralização do regime e o enfraquecimento econômico da lavoura da cana de açúcar diante da concorrência do açúcar de beterraba, o advento e crescimento da chamada elite dos letrados. O termo não é de Nelson Werneck Sodré mas de Oliveira Vianna. Sobre a transição, diz o autor:

“A própria evolução dos acontecimentos, mais do que a ação dos partidos, confusa e duvidosa, apressaria a circulação das elites. O advento da imigração, em São Paulo, e a crise econômica da lavoura da cana e da indústria açucareira, em Pernambuco, fazendo com que os representantes agrários das duas províncias se bandeassem, contribuiu para a vitória da elite dos letrados. Aceitando o abolicionismo, pactuavam com a república. República e abolição, da forma como foram estabelecidas, era a morte da representação da lavoura, o fim da fase agrária na vida brasileira, o advento nítido e real da fase urbana, com o domínio pleno, absoluto, preciso, da elite letrada”.

A proposta de interpretação do segundo reinado por Nelson Werneck Sodré envolve uma interpretação não só materialista, mas dialética. Foram as próprias contradições do II Regime que o fizeram cair sem qualquer reação, seja das forças sociais do país seja do próprio regime em forma de retaliação ou luta por sobreviver.  

O regime do II Reinado seguiria um desenvolvimento ascendente até o advento da Guerra do Paraguai. Antes da Guerra sulina o Brasil virtualmente não possuía forças armadas – havia algo em torno de 15 mil pessoas em todo o país em armas. A mobilização envolveu gente de todos os cantos do país. Criou as bases para a conformação de uma classe de militares que, emponderados, passariam à ação política com o término da Guerra. O elemento servil aqui também merece uma menção: muitos escravos foram arregimentados para lutar no Paraguai, ombro a ombro com outros compatriotas dos mais diversos recantos do país sendo contraditório que os praças retornassem ao país na condição de servos. Para os dirigentes militares brasileiros era motivo de vergonha perante os demais países conduzir exército feito de escravos.

A abolição da escravatura em 1888 foi igualmente um dos elementos decisivos para a queda final do regime. Enquanto à abolição do tráfico marítimo deu-se em 1850, o regime servil ainda permaneceu bastante presente em algumas regiões do país – destaque para o Rio de janeiro e Pernambuco. Em outras províncias como o Ceará e o Amazonas, onde não se dependia tanto da mão de obra escrava, a escravidão foi abolida antes da cessão final. Em São Paulo, sob o crescimento da cultura cafeeira e já com uma política de imigração como substituição da mão de obra, a abolição não trouxe grandes impactos políticos. Mas o mesmo não se pode dizer das remanescentes províncias latifundiárias do açúcar que, do dia para a noite, viram-se privadas das suas propriedades e retiram o seu apoio ao regime.

O povo assiste aos eventos de 1889 de forma bestializado, no sentido de indiferença  pela sorte do império.

Um dos aspectos mais decisivos naquele desenvolvimento histórico foi o problema da centralização. No Brasil do II Império a noção de federalismo equivalia, para as elites políticas, a secção territorial e à quebra da unidade. 

Com isto, o regime administrativo era ultra-centralizado: os presidentes das províncias eram indicados desde o Rio de Janeiro, não raro por pessoas que sequer eram da terra. O sistema fiscal era todo ele drenado  da periferia ao centro não restando às assembleias provinciais a possibilidade de ajustar recursos para mover as potencialidades e a vida local. O Império emanava ordens e diretrizes que deviam ser uniformes, dogmáticas e auto-aplicáveis em todos os cantos do país, o que era impraticável considerando os problemas do vasto território nacional e as dificuldades de comunicação – o transporte se fazia de forma bastante irregular, através de rios e mulas. Relata-se o assombro do Conde D’Eu que esteve numa pequena vila no interior do Rio Grande do Sul do séc. XIX. Os moradores construíram uma pequena igrejinha e aguardavam o despacho do Bispo do Rio de Janeiro e do Imperador para proceder a uma simples transferência da paróquia. Em uma província aguardava-se 3, 4 ou mais anos para autorizar-se a criação de uma simples alfândega ou de um porto. O centro decidia tudo, dos livros adotados em determinadas cadeiras da faculdade de direito de Recife (fato igualmente relatado) até a concessão de mercês e comendas destinadas à elite agrária que, em contrapartida, via perdendo seu prestígio político no centro através da nova elite dos letrados. O centro não tinha a iniciativa de um largo programa de reconstrução nacional e organismo político era atrofiado com sua cabeça enorme e seus membros periféricos definhando.

“Havia, porém, o desejo de acudir a tudo, de atender a tudo, de tomar conta de tudo. Nada devia fugir à vigilância extrema desses guardas invioláveis da centralização. Era uma mentalidade dogmática e tola, risível em muitos pontos, mas dominante e que pondera em toda a parte e em todos os recantos, abrangendo todos os assuntos”.

A questão do federalismo surgiria de forma embrionária com o partido republicano (1870). Depois seria incorporada como bandeira dos liberais até impor-se como política com o advento da República. Questão interessante para se discutir é entender porque a queda de um império de meio século de consolidação caiu com o golpe militar sem qualquer reação. Nelson Werneck chama atenção para um fato pouco suscitado pelos historiadores: os momentos que precederam o fim do II Império envolveram alguma hesitação no sentido do que se fazer com D. Pedro II. O desejo ocultos de alguns era mesmo esperar a morte do imperador para proceder-se a um novo arranjo institucional republicano através dos gabinetes. D. Pedro II não perdera o prestígio pessoal mas perdera o apoio político. A centralização ocasionara a crise com a Igreja. A centralização culminou no descontentamente das elites agrárias deslocadas do poder pela elite dos letrados. A guerra do Paraguai e a intervenção dos militares na política como um novo agente implicaria na divisão dos partidos tradicionais e no re-equilíbrio das forças políticas. Aliás, se no começo do segundo império havia alguma nitidez na divisão partidária entre liberais e conservadores, as sucessões de gabinetes e as mudanças na composição social das organizações acabariam com qualquer linha demarcatória entre os partidos.

A abolição da escravatura alienando o apoio das forças agrárias que haviam permitido a centralização. A destruição das oligarquias pela e retirada de prerrogativas. Estes foram os males e enfermidades que implicaram na queda do II Império, iniciando-se a etapa da república cujo mote passa a ser o federalismo e a descentralização.     

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