segunda-feira, 25 de março de 2024

Os Contos de Lygia Fagundes Telles

 Os Contos de Lygia Fagundes Telles



Resenha Livro – “Venha ver o pôr-do-sol e outros contos” – Lygia Fagundes Telles – Ed. Ática

“Quero te dizer que nós as criaturas humanas, vivemos muito (ou deixamos de viver) em função das imaginações geradas pelo nosso medo. Imaginamos consequências, censuras, sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital, mais profundo, mais vivo. A verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões”. (“As Meninas” – Lygia Fagundes Telles).

No próximo dia 03 de abril fará dois anos da morte da escritora paulista Lygia Fagundes Telles, falecida quando tinha 103 anos de vida.

A longevidade da autora de “Ciranda de Pedra” também se revela no vasto número de romances, contos e crônicas jornalísticas por ela escritos até o fim da vida. Basta dizer que no ano de 2016, quando tinha 92 anos de idade, foi a primeira mulher brasileira indicada ao prêmio Nobel de literatura.

Lygia Fagundes da Silva Telles nasceu no dia 19 de abril de 1918 em São Paulo/SP. Passou, porém, a maior parte da sua infância em diferentes cidades do interior paulista, em função do trabalho de seu pai, Durval de Azevedo Fagundes, este último procurador, promotor público, advogado distrital, comissário de polícia e juiz.

Sua mãe, conhecida como Zazita, era uma pianista habilidosa que não pôde prosseguir na carreira artística, dada a época em que às mulheres eram reservados apenas os trabalhos e cuidados domésticos.

Em 1936 os pais de Lygia separaram-se, fazendo com que a escritora e sua mãe retornassem à São Paulo para uma vida de classe média empobrecida. O tema da separação conjugal é significativo, posto que vivenciada na prática por mãe e filha.

No caso de Lygia, sua separação foi um ato de coragem, considerando que naquele tempo, ou mais exatamente no ano de 1960, o divórcio não era admitido no ordenamento jurídico brasileiro. O fato tornou-se um escândalo ainda maior pelo fato de Lygia ter se casado com  Gofredo Teles Júnior, renomado professor catedrático da Faculdade de Direito do Largo de Francisco, deputado constituinte de 1946 e principal redator da “Carta aos Brasileiros” (1977), considerado o primeiro manifesto público em defesa da democracia nos tempos da Ditadura Civil Militar brasileira.

Lygia foi aluna de Gofredo Teles Júnior nas Arcadas. Quando ingressou na Academia de Direito de São Paulo, era uma das seis mulheres numa turma de cerca de cem alunos.

Da mesma forma, a autora iniciou sua trajetória artística numa época em que poucas mulheres eram admitidas no mundo literário.

O primeiro livro de contos de Lygia Fagundes Telles foi publicado no ano de 1938 quando tinha vinte anos de idade. Porém, de acordo com a escritora, conhecida por um agudo senso autocrítico, sua estreia literária só se daria no ano de 1951, quando lançou o romance “Ciranda de Pedras” e tornou-se conhecida nacionalmente.

É provável que esse livro ainda hoje seja o mais lembrado pelo público, especialmente pelo fato de ter sido objeto de duas adaptações para telenovelas.

Contudo, as coletâneas de contos correspondem ao grosso da produção literária da escritora paulistana.

Através das técnicas do fluxo de consciência e do monólogo interior, Lygia retrata histórias essencialmente situadas em ambiente urbano, com temas universais (não regionalistas).

Suas histórias falam de amor, romance, paixão, medo e morte.

Nos contos, vemos verdades subterrâneas de criaturas ambiguamente disfarçadas no comportamento social. É o caso do conto “O Noivo”, uma história fantástica em que o narrador é despertado e surpreendido com a notícia de que aquele era o dia do seu casamento.

Contraditoriamente, o noivo não lembra nem remotamente desse casamento, nem tão pouco de quem seria a sua futura esposa.

“Lembrava-se de tudo, de tudo menos do casamento. Só essa faixa da memória continuava apagada, só nesse terreno a névoa se fechava indevassável, nomes, caras, tudo era escuridão. A começar pela noiva feita de nada, diluída no éter. As coisas se passavam como nas histórias encantadas, onde o príncipe mandava vir a donzela de um reino distante sem tê-la visto nunca, o amor construído em torno de um anel de cabelo, de um lenço, de um retrato. “E eu nem isso tenho. Ou tenho?”.

Essas verdades subterrâneas se revelam em pequenos detalhes. No caso do conto que dá título ao livro “Venha ver o pôr-do-sol”, serve de exemplo os leques de rugas ao redor dos olhos de Ricardo, nos momentos em que revela raiva por ter sido preterido por sua ex namorada Raquel.

São expressões faciais, comportamentos contraditórios, silêncios eloquentes, comentários acessórios apenas aparentemente não relacionados com aquilo que os personagens pensam e sentem.

Neste sentido, pode-se dizer que a escritora mostra os fatos ao invés de contá-los: ou, em outros termos, os fatos e as histórias são contados por si mesmos.

É o caso do conto “Natal na Barca” em que o protagonista passa a festa natalina numa viagem de barco ao redor de alguns desconhecidos, dentre eles uma mulher que carregava um filho pequeno.

Ao escutar as falas dessa mulher, e seu depoimento sobre a morte trágico de outro filho pequeno, falecido num acidente doméstico, a escritora desnuda não só fatos, mas as cogitações profundas que passam no íntimo dos personagens. Muitas histórias são ditas através de pequenos detalhes captados pela escritora:

“Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não  bastasse a pobreza que espiava pelos remendos de sua roupa, perdera o filhinho, o marido e ainda vai pairar uma sobra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez sorrir.”.

A intensidade dos sentimentos humanos, retratada através de frases curtas, com economia de palavras; trata-se de uma escritora capaz de captar a complexidade da alma humana através de pequenas histórias em forma de contos. 

Neste quadro, não são poucos aqueles que consideram Lygia Fagundes Teles como uma das maiores escritoras brasileiras do século XX.

terça-feira, 19 de março de 2024

A Literatura de Léo Vaz

 A Literatura de Léo Vaz



Resenha Livro – “O Burrico Lúcio” – Léo Vaz – Ed. Jabuti

Não são muitas as informações disponíveis na internet acerca da vida e da obra do escritor do paulista Léo Faz (1890/1973).

Apesar de ter sido um jornalista e escritor popular ao seu tempo, os seus dois romances mais conhecidos, “Professor Jeremias” (1920) e “O Burrico Lúcio” (1951), aguardam há muito tempo a iniciativa de um editor que queira reeditá-los.

O que seria desejável considerando a rara qualidade literária do escritor de Capivari/SP, apelidado por Monteiro Lobato, amigo e editor de Léo Vaz, como um “Machado de Assis sem gagueira”.

O paralelo traçado pelo autor do Sítio do Picapau Amarelo tem o seu fundamento: ambos os escritores reuniam o dom da ironia e da difícil simplicidade e o pleno domínio da linguagem contadora de causos.

No prefácio de “O Burrico Lúcio”, o crítico Gomes Freire reforça a comparação, indicando que a obra de Vaz é tão simples, natural e de fácil assimilação, que poderia alguém jugar estar ao alcance de qualquer pena. O que antes revelava uma experiência de décadas de redação e um domínio textual raro.

“O Burrico Lúcio é a nosso ver como “O Memorial de Aires” (Machado de Assis) a conquista de um ideal literário, a chegada à Utopia dos Escritores, o remate de uma obra, feita com seriedade e desvelo. O alpinista das letras Léo Faz alcançou o píncaro sonhado; já se acha, pois, perto das nuvens, no ar limpo, rarefeito. A perfeição é simplificação. Isso explica a curteza das frases, o pequeno tamanho do romance. Só os jovens são extensos, por falsa experiência.”  (Gomes Freire).

Leonel Vaz de Barros, mais conhecido como Léo Vaz, iniciou sua carreira literária no jornalismo, na Gazeta de Piracicaba. No ano de 1918 muda-se para São Paulo e assim que chega à capital, é apresentado a Oswald de Andrade e convidado a participar de reuniões literárias, na qual estão presentes Monteiro Lobato, Guilherme de Almeida e Menotti del Pecchia.

Trabalhou como periodista em diversos órgãos da imprensa paulistana, até ser convidado a integrar a equipe do Estadão, onde foi diretor e publicou textos até a sua morte, em março de 1973.

“O Burrico Lúcio” é uma adaptação do conto de mesmo nome de autoria de Luciano de Samósata (125 – 180), este último um contador de histórias satíricas e críticas da sociedade romana dos tempos do reinado de Marco Aurélio.

Para Léo Vaz, o escritor romano seria uma versão a frente de seu tempo de Anatole France: ambos portadores da mais alta cultura científica e literária de seu tempo, críticos mordazes dos homens e das instituições, irreverentes ao encararem as crenças e religiões, divertindo-se e divertindo o seus leitores com a sua ironia.

 

O livro conta a história de Lúcio, jovem romano da cidade de Patras, convocado por seu pai a viajar até Hipata com o objetivo de cobrar pessoalmente um devedor usuário que insistia em não restituir o dinheiro que lhe fora emprestado.

Ao chegar ao seu destino, é convidado a ficar por alguns dias na cidade, hospedado pelo usuário e por sua mulher, que logo revelou ser uma bruxa:

“A única coisa, porém, que em parte abonava a má-língua dos informantes, era o jeito da mulher de Hiparco: magra, ecolhida, de cabelos ralos, duros e escorridos, olhos pequeninos e fugidios, ladeando um narigão recurvo e agudo que nem bico de coruja, a tal criatura dava a impressão de ser mesmo uma bruxa das mais autênticas e perigosas deste mundo.”.

As suspeitas do jovem logo se revelaram verdadeiras: conduzido por uma criada da casa aos aposentos da bruxa, observa por uma fresta da porta a mulher fazendo os seus rituais religiosos.

Em certo momento, a velha bebe uma porção mágica e entra em metamorfose. O seu corpo diminui até o tamanho de uma anã, cobre-se de penas, e seus pés se transformam em garras de gavião, até se converter num pássaro repulsivo que sai grasnando em direção à janela até se perder de vista.

Lúcio, garoto ingênuo e inexperiente, pede à criada que lhe ungisse a mesma porção mágica para transformá-lo num pássaro possante. Por um engano de sua amiga, que pega o frasco errado, Lúcio se transforma num burrico.

As aventuras do jumento, que é vendido para um grupo de salteadores, depois arrematado num leilão, depois adquirido por oportunistas que o utilizam para obter doações, e assim por diante, tem como pano de fundo a sátira da sociedade romana.

Em Léo Vaz, ela se dá na forma de um humor sutil, não agressivo nem ridiculizador, dotado de compaixão humana, e não raro combinando o trágico e cômico, tal qual as histórias de Machado de Assis.  




terça-feira, 12 de março de 2024

A Literatura de Carmen Dolores

 A Literatura de Carmen Dolores



Resenha Livro - “A Luta” – Carmen Dolores – Ed. Iba Mendes Editor Digital

Carmen Dolores foi um dos pseudônimos da escritora carioca Emília Moncovo Bandeira de Mello (1852-1910), que ao seu tempo foi uma das mulheres mais lidas no Brasil e hoje é absolutamente desconhecida do público, e até mesmo dos estudiosos da literatura nacional.

Dolores publicou, entre 1905/1909, crônicas literárias e jornalísticas no “O Paiz”, jornal situado no Rio de Janeiro, então capital da incipiente República, e com maior tiragem e circulação no Brasil.

As publicações no jornal revelam ao estudioso de hoje como a escritora foi popular ao seu tempo. Basta constatar que a sua coluna era lançada aos domingos (dia em que o jornal é mais vendido) e em coluna de destaque.

Sua popularidade pode ser comparada a outra escritora daquele mesmo período dos 1900: Júlia Lopes de Almeida, idealizadora da Academia Brasileira de Letras, também colunista d’o Paiz e para alguns a mais popular escritora do Brasil da Republica Velha.

A existência de duas grandes escritoras do sexo feminino não nos autoriza pensar que havia grande participação das mulheres na produção literária da época.

Numa entrevista concedida a João do Rio em 1905, Lopes de Almeida conta que na adolescência fazia versos escondida: fechava-se num quarto, abria a secretária, escrevia seus poemas e silenciosamente os guardava na gaveta fechada à chave, já que uma mulher produzir versos era algo inimaginável.

Já na literatura de Carmen Dolores vê-se a descrição e crítica da condição da mulher ao seu tempo. Momento em que a mulher não podia ser vista em público sem a presença de um homem que a acompanhasse, sob pena de ser encarada com desconfiança e sujeita à reputação de libertina. Além disso, o abandono do lar conjugal constituía crime, o que é um dos elementos centrais do seu romance “A Luta” (1911).  

De fato, um dos aspectos da obra de Dolores que a singulariza se refere à constante participação de personagens femininas como protagonistas das histórias. Os romances, crônicas e contos se centram na figura de amantes entristecidas, esposas entediadas, mãe desamparadas, beatas moralistas.

Pessoalmente a escritora defendeu pautas avançadas para a época como o direito ao divórcio e ao acesso das mulheres ao trabalho.

A centralidade das personagens femininas e a crítica do casamento dão o tom do romance “A Luta (romance naturalista)” publicado postumamente em 1911.

A história se centra num casamento infeliz envolvendo temperamentos opostos: a passividade bovina de Alfredo Galvão e a personalidade instável e impulsiva de Celina.

Alfredo Galvão é amanuense, de hábitos previsíveis, pessoa sem dinheiro, sem brilho e sem posição. É o quinto e único filho vivo de D. Margarida, viúva beata, sempre vestida de preto. Justamente por ser o único parente que lhe resta, trata o filho com rigor e exerce sobre ele total domínio.

Celina por sua vez é filha de D. Adozinda,  também viúva, porém de hábitos mais liberais, dona de uma pensão no bairro de Santa Tereza, onde vive com as filhas e os demais inquilinos, muitos deles homens. As filhas vivem um ambiente de liberalidade, sendo cotejadas pelos estudantes da pensão e tendo autorização para passeios sem estarem acompanhadas pela mãe.

O casamento se dá após a partida de Gilberto, um namorado de Celina, para Minas Gerais. Galvão, mostrando a todo momento sua fraqueza, pede consentimento à mãe para pedir a mão de Celina, que a contragosto autoriza o casamento, mesmo diante da má reputação de D. Adozinda e suas duas filhas.

Celina vive um casamento com as duas sentinelas (o marido e a sogra) tolhendo-lhe a liberdade e fazendo da sua vida uma prisão. Confronta a alegria do lar familiar em Santa Tereza com a austeridade da casa da sogra. 

“Ah! Não! Era uma monotonia, um isolamento! O Alfredo parecia uma máquina: levantava-se, deitava-se, comia, palitava os dentes, saía, voltavam com uma regularidade de pêndula. E nunca tinha dinheiro para um passeio, um teatro, uma coisa imprevista, nada! Os dias arrastavam-se, sempre iguais, pesados, lentos; e ainda por cima a sogra a mandar, a dirigir, a prender e ensinar, como senhora de tudo...”.

Busca fugir do cativeiro inventando pretextos: numa suposta visita a um dentista, encontra num bonde seu ex namorado Gilberto acompanhando com enlevo de namorado sua irmã caçula Olga. Já desiludida do casamento e reacendendo o amor dos tempos de adolescente, confronta publicamente os dois e se retira para a casa da mãe, abandonando o lar conjugal.

A luta, que dá o nome do livro, se dá em torno do combate travado no espírito de Celina entre a liberdade perdida do passado e os deveres e responsabilidade de mulher casada do presente. Essa luta se desdobra no conflito final, quando a mãe de Alfredo Galvão vai até o Hotel de Santa Tereza confrontar a nora e compeli-la ao retorno do lar conjugal.

Nas entrelinhas, o combate se dá em torno do conservadorismo e do que àquele tempo era progressismo: o respeito absoluto às normas do casamento contra a liberação da mulher pelo direito ao divórcio.

E assim termina o livro “A Luta”:

“Em tais meios, a luta jamais cessa: continua sempre, entre exploradoras e exploradas. É a terrível, infindável, a eterna luta! É o renhido jogo dos interesses inconfessáveis”