Os Contos de Lygia Fagundes Telles
Resenha Livro – “Venha ver o
pôr-do-sol e outros contos” – Lygia Fagundes Telles – Ed. Ática
“Quero te dizer que nós as criaturas humanas, vivemos muito (ou
deixamos de viver) em função das imaginações geradas pelo nosso medo.
Imaginamos consequências, censuras, sofrimentos que talvez não venham nunca e
assim fugimos ao que é mais vital, mais profundo, mais vivo. A verdade, meu
querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões”. (“As
Meninas” – Lygia Fagundes Telles).
No próximo dia 03 de abril fará
dois anos da morte da escritora paulista Lygia Fagundes Telles, falecida quando
tinha 103 anos de vida.
A longevidade da autora de
“Ciranda de Pedra” também se revela no vasto número de romances, contos e
crônicas jornalísticas por ela escritos até o fim da vida. Basta dizer que no
ano de 2016, quando tinha 92 anos de idade, foi a primeira mulher brasileira
indicada ao prêmio Nobel de literatura.
Lygia Fagundes da Silva Telles
nasceu no dia 19 de abril de 1918 em São Paulo/SP. Passou, porém, a maior parte
da sua infância em diferentes cidades do interior paulista, em função do trabalho
de seu pai, Durval de Azevedo Fagundes, este último procurador, promotor
público, advogado distrital, comissário de polícia e juiz.
Sua mãe, conhecida como Zazita,
era uma pianista habilidosa que não pôde prosseguir na carreira artística, dada
a época em que às mulheres eram reservados apenas os trabalhos e cuidados
domésticos.
Em 1936 os pais de Lygia
separaram-se, fazendo com que a escritora e sua mãe retornassem à São Paulo
para uma vida de classe média empobrecida. O tema da separação conjugal é significativo,
posto que vivenciada na prática por mãe e filha.
No caso de Lygia, sua separação
foi um ato de coragem, considerando que naquele tempo, ou mais exatamente no
ano de 1960, o divórcio não era admitido no ordenamento jurídico brasileiro. O
fato tornou-se um escândalo ainda maior pelo fato de Lygia ter se casado
com Gofredo Teles Júnior, renomado
professor catedrático da Faculdade de Direito do Largo de Francisco, deputado
constituinte de 1946 e principal redator da “Carta aos Brasileiros” (1977),
considerado o primeiro manifesto público em defesa da democracia nos tempos da
Ditadura Civil Militar brasileira.
Lygia foi aluna de Gofredo Teles
Júnior nas Arcadas. Quando ingressou na Academia de Direito de São Paulo, era
uma das seis mulheres numa turma de cerca de cem alunos.
Da mesma forma, a autora iniciou
sua trajetória artística numa época em que poucas mulheres eram admitidas no
mundo literário.
O primeiro livro de contos de
Lygia Fagundes Telles foi publicado no ano de 1938 quando tinha vinte anos de
idade. Porém, de acordo com a escritora, conhecida por um agudo senso
autocrítico, sua estreia literária só se daria no ano de 1951, quando lançou o
romance “Ciranda de Pedras” e tornou-se conhecida nacionalmente.
É provável que esse livro ainda
hoje seja o mais lembrado pelo público, especialmente pelo fato de ter sido
objeto de duas adaptações para telenovelas.
Contudo, as coletâneas de contos correspondem
ao grosso da produção literária da escritora paulistana.
Através das técnicas do fluxo de
consciência e do monólogo interior, Lygia retrata histórias essencialmente
situadas em ambiente urbano, com temas universais (não regionalistas).
Suas histórias falam de amor, romance,
paixão, medo e morte.
Nos contos, vemos verdades subterrâneas de criaturas ambiguamente disfarçadas no comportamento social. É o caso do conto “O Noivo”, uma história fantástica em que o narrador é despertado e surpreendido com a notícia de que aquele era o dia do seu casamento.
Contraditoriamente, o noivo não
lembra nem remotamente desse casamento, nem tão pouco de quem seria a sua
futura esposa.
“Lembrava-se de tudo, de tudo menos do casamento. Só essa faixa da
memória continuava apagada, só nesse terreno a névoa se fechava indevassável,
nomes, caras, tudo era escuridão. A começar pela noiva feita de nada, diluída
no éter. As coisas se passavam como nas histórias encantadas, onde o príncipe
mandava vir a donzela de um reino distante sem tê-la visto nunca, o amor
construído em torno de um anel de cabelo, de um lenço, de um retrato. “E eu nem
isso tenho. Ou tenho?”.
Essas verdades subterrâneas se
revelam em pequenos detalhes. No caso do conto que dá título ao livro “Venha
ver o pôr-do-sol”, serve de exemplo os leques de rugas ao redor dos olhos de
Ricardo, nos momentos em que revela raiva por ter sido preterido por sua ex
namorada Raquel.
São expressões faciais,
comportamentos contraditórios, silêncios eloquentes, comentários acessórios
apenas aparentemente não relacionados com aquilo que os personagens pensam e
sentem.
Neste sentido, pode-se dizer que
a escritora mostra os fatos ao invés de contá-los: ou, em outros termos, os
fatos e as histórias são contados por si mesmos.
É o caso do conto “Natal na Barca”
em que o protagonista passa a festa natalina numa viagem de barco ao redor de
alguns desconhecidos, dentre eles uma mulher que carregava um filho pequeno.
Ao escutar as falas dessa mulher,
e seu depoimento sobre a morte trágico de outro filho pequeno, falecido num
acidente doméstico, a escritora desnuda não só fatos, mas as cogitações profundas
que passam no íntimo dos personagens. Muitas histórias são ditas através de
pequenos detalhes captados pela escritora:
“Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num
tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos
de sua roupa, perdera o filhinho, o marido e ainda vai pairar uma sobra sobre o
segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta,
confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos
vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me
fez sorrir.”.
A intensidade dos sentimentos humanos, retratada através de frases curtas, com economia de palavras; trata-se de uma escritora capaz de captar a complexidade da alma humana através de pequenas histórias em forma de contos.
Neste quadro, não são poucos aqueles que consideram Lygia Fagundes Teles como uma das maiores escritoras brasileiras do século XX.
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