terça-feira, 16 de abril de 2024

“Alguma Poesia” – Carlos Drummond de Andrade

 Resenha Livro – “Alguma Poesia” – Carlos Drummond de Andrade – Ed. Record




 O primeiro livro de poesias publicado por Carlos Drummond de Andrade foi lançado quando o escritor tinha vinte oito anos de idade, o que nos autoriza dizer que o poeta iniciou sua trajetória de forma relativamente tardia.

 Trata-se da coletânea “Alguma Poesia” (1930) que reuniu poemas escritos pelo escritor entre 1925/30, parte deles anteriormente publicados no Jornal Estado de Minas.  

 Essa obra contém poemas que ainda hoje são tão conhecidos que se pode dizer já fazerem parte do imaginário popular brasileiro.

 Quem nunca ouviu falar dos versos do poema “No meio do Caminho”?

 

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

 

O mesmo pode se dizer do poema “Quadrilha”, bastante conhecido mesmo por pessoas não habituadas à leitura da poesia nacional:

 

João amava Teresa que amava Raimundo

que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili

que não amava ninguém.

João foi pra os Estados Unidos, Teresa para o convento,

Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,

Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes

que não tinha entrado na história.

  

Curiosamente, essa primeira obra do poeta de Itabira, hoje consagrada pelo público e pela crítica literária, foi ao seu tempo bancada do próprio bolso do escritor, denotando não ter sido o livro um grande sucesso ao seu tempo.

 Foram inicialmente tiradas apenas 500 cópias pela Imprensa Oficial de Minas Gerais, onde Drummond trabalhava.

 Antes do lançamento de “Alguma Poesia”, o poeta contou com a colaboração de Mário de Andrade, que não só havia se disposto a ajudá-lo na publicação desse primeiro livro, como havia sido a pessoa que incentivou Drummond a se lançar no mundo literário.

 A amizade entre Mário de Andrade e Carlos Drummond de Andrade iniciou-se no ano de 1924 quando chegou à Belo Horizonte um grupo de intelectuais paulistas que havia liderado o movimento modernista brasileiro, consubstanciado na Semana de Arte Moderna de 1922.

 Dessa comitiva, fizeram parte Oswald de Andrade, Paulo Prado, Tarsila do Amaral, além do citado Mário de Andrade. Pretendiam fazer um périplo pelo Brasil para com isso dar vazão às propostas por eles enunciadas na Semana: o rompimento com a tradição parnasiana e toda literatura que replicava o estilo europeu, em detrimento de uma arte nacional, ainda que incorporando (através da antropofagia) as influências exógenas. Não se tratava de importar a arte estrangeira, mas assimilá-la criticamente, para criar algo novo, especificamente brasileiro, para exportação.

 A viagem às Minas Gerais tinha como escopo assistir à Semana Santa nas cidades históricas mineiras e procurar vestígios do passado que colaborassem com projeto modernista de constituição de uma identidade nacional.

 O que o movimento modernista postulava era a busca daquilo que singularizava o Brasil.

 No nosso país, a independência política antecedeu a conformação da nacionalidade.

 Ao contrário da experiência dos países Europeus, aqui, não foi a nação que criou o Estado, mas o Estado que antecedeu a Nação. Desde a proclamação da independência em 1822 até a Revolução de 1930, o que hoje se denomina Brasil era antes uma somatória dos estados federativos, sem um claro sentido de unidade. E essa busca pela identidade brasileira, uma bandeira central do modernismo dos anos 30, irremediavelmente os levava à busca de nossas especificidades através da História.

 (Não é por acaso que os três principais historiadores dos anos 1930, diretamente relacionados ao movimento modernista, escreveram suas principais obras tratando do Brasil em tempos coloniais. É o caso de Caio Prado Júnior com o seu “Formação Histórica do Brasil” (1942) É o caso de Sérgio Buarque de Holanda com o seu “Raízes do Brasil” (1936) E é o caso de Gilberto Freire com o seu “Casa Grande em Senzala” (1933)

 No estado de Minas Gerais, ou mais exatamente na recém criada capital Belo Horizonte, já existia um grupo de intelectuais que haviam aderido ao movimento modernista iniciado em São Paulo.

 Dele faziam parte Carlos Drummond de Andrade e Cyro dos Anjos, para citarmos os dois mais famosos.  Foi através do contato desse grupo mineiro com a comitiva paulista no ano de 1924 que surgiu a amizade entre Drummond e Mário de Andrade. E através dessa amizade e do incentivo do autor de Macunaíma, que se iniciou a trajetória dequele que foi um dos maiores poetas brasileiros de todos os tempos.

 Nesses poemas de “Alguma Poesia” vê-se uma forte influência do movimento da Semana de 1922. Há aqui a recusa de todo tipo de idealização, a aversão a todo o tipo de retórica, o humor e a ironia que despontam como formas de crítica social, o jogo de palavras que sugere experimentações linguísticas, tais quais aquelas que aparecem em Macunaíma.

Há também a mesma oposição modernista à mera importação da arte estrangeira sem mediações com a realidade Brasileira, o que é bastante explícito no poema “Europa, França e Bahia”:

 

Meus olhos brasileiros sonhando exotismos.
Paris. A torre Eiffel alastrada de antenas como um caranguejo.
Os cães bolorentos de livros judeus
e a água suja do Sena escorrendo sabedoria.

(...)

Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos,
minha boca procura a 'Canção do Exílio'?
Como era mesmo a 'Canção do Exílio'?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!

 

Outro aspecto da obra diz respeito à própria concepção do artista sobre o que é a poesia e como ela deve ser feita.

 De maneira geral, os poemas fazem alusão à afirmação do presente em detrimento do passado, visto como algo que “cheira mofo” e contém “teias de aranha”. Para se fazer poesia é necessário afirmar a realidade vista na sua imediaticidade, o que também significa ver e estar em contato direto com essa realidade, sentindo-a, criando a arte pela percepção imediata do poeta. Cite-se o poema “Lagoa”:

 

Eu não vi o mar.

Não sei se o mar é bonito,

não sei se êle é bravo.

O mar não me importa.

 

Eu vi a lagoa.

A lagoa, sim.

A lagoa é grande

e calma também.

 

Na chuva de cores

da tarde que explode

a lagoa brilha

a lagoa se pinta

de todas as cores.

Eu não vi o mar.

Eu vi a lagoa. . .

 

O fazer poesia, em Drummond é uma experiência derivada dos sentimentos do poeta deflagrados pelo que ele vê, escuta, percebe ao seu redor. Sitomaticamente, um dos livros do escritor se chama “Sentimento do Mundo”. A poesia de fato nasce dos sentimentos, ela está por isso viva dentro do poeta, nem sempre se torna visível, mas ainda assim inunda a sua alma.  

 

Poema

Gastei uma hora pensando em um verso

que a pena não quer escrever.

No entanto ele está cá dentro

inquieto, vivo.

Ele está cá dentro

e não quer sair.

Mas a poesia deste momento

inunda minha vida inteira.

segunda-feira, 8 de abril de 2024

“Malazarte” – Graça Aranha

 “Malazarte” – Graça Aranha



Resenha Livro - “Malazarte” – Graça Aranha – Ed. Iba Mendes

O trabalho literário mais conhecido do escritor maranhense Graça Aranha certamente é o livro “Canaã”, publicado no ano de 1908.

A história foi elaborada durante o período em que o escritor atuou como juiz municipal de Porto do Cachoeira no estado do Espirito Santo. Naquela Comarca teve contato com os colonos alemães que lá constituíram povoados.

As colônias decorriam de um movimento iniciado ainda no século XIX de estímulo da vinda de imigrantes europeus ao Brasil, não só como meio de substituir o trabalho escravo, cuja abolição deu-se em 1888, mas por conta de considerações raciais relacionadas ao debate intelectual da época.

Os dois principais personagens, os alemães Milkau e Lentz, expressam dois pontos de vista  distintos relacionados às discussões do período em torno de raça, cultura e o futuro do Brasil.

Milkau, desiludido com a Europa, busca no Brasil o recomeço de sua existência na virgindade de um mundo que estava para ser construído. Via na miscigenação brasileira algo positivo, já que pensava a evolução humana relacionada à confluência de raças. Rejeitava o patriotismo alemão e entendia que as guerras e a luta entre os homens, no futuro, seriam superadas pela solidariedade e o amor.

Há quem diga que este personagem fora inspirado em Tolstói e de fato suas intervenções remetem a algo próximo de um socialismo utópico.

Lentz parece ser o exato oposto de seu amigo Milkau. Via a imigração alemã como uma oportunidade de subjugar os negros e mestiços do país. Línguas, culturas e civilizações duelam até a prevalência da raça mais forte, no caso a alemã. Enquanto seu companheiro via beleza na harmonia entre o homem e a exuberância da natureza brasileira, Lentz enxerga a beleza na luta e na vitória do mais forte, na dominação do homem sobre a natureza. Pode-se relacionar as suas ideias com a moral nietzschiana: a apologia do mais forte, o desprezo pelos fracos e pela caridade cristã.  

A temática filosófica, ou mais especificamente a crítica do racionalismo enunciada pelo pensamento de Nietzsche, seria objeto de um tratamento mais acurado na peça de teatro “Malazarte”, encenada pela primeira vez no ano de 1911.

Enquanto “Canaã” foi elaborada no período em que o escritor atuava como juiz numa comarca do Brasil profundo, a peça Malazarte foi criada já num momento posterior, quando o escritor troca a magistratura pela carreira diplomática e passa do interior à vida cosmopolita da Europa.

Serviu em várias missões diplomáticas entre 1900/20 passando por Inglaterra, Itália, Suíça, Noruega, Dinamarca, França e Holanda.

 

 

“Malazarte” foi representada pela primeira vez na França, no Théatre de L’ouvere, fundado por artistas ligados ao movimento simbolista.  

Pode-se dizer que a peça se situa dentro desse movimento literário simbolista.

Tratava-se de escola voltada à crítica da razão e do positivismo. De certa maneira, antecipava o modernismo cujo epicentro deu-se no Brasil na Semana de 1922, movimento do qual Graça Aranha participou ativamente. Esses escritores se opunham àquilo que diziam ser o academicismo, derivado das tradições literárias imediatamente anteriores: romantismo, realismo e naturalismo.  

O que havia naquele período era um esgarçamento e esvaziamento da crença na inefabilidade da razão e do progresso. As diversas inovações tecnológicas da Belle Époque, com os seus  telégrafos, bondes elétricos, fonógrafos, telefone, e cinema,   também criaram as condições para que o pensamento filosófico fosse além do impulso cartesiano e cientificista de fins do século XIX.

O evolucionismo, o determinismo social e o positivismo pavimentaram o caminho do colonialismo europeu em África e Ásia. A missão civilizatória enunciada na ideia do “Fardo do Homem Branco” criou o neocolonismo, o imperialismo, a partilha territorial, o racismo com verniz cientificista e o massacre das populações – estima-se que no Congo, sob ocupação francesa, houve o extermínio de 60% da população. Em China, a Guerra do Ópio (1839-1842 e 1856-1860) levada adiante pelo imperialismo Britânico disseminou em larga escala o uso de entorpecente que adoeceu a sociedade chinesa. A razão e o progresso levaram o mundo à barbárie e ao conflito armado, materializado na Primeira Guerra Mundial (1914/1918).

O protagonista Malazarte é representativo da crítica radical de Nietzsche à tradição filosófica platônica e ao pensamento cristão. Sua figura enuncia os aforismos que tornaram conhecidas as teses relacionadas àquela crítica pioneira à tradição filosófica racionalista. Quando Nietzsche pioneiramente denuncia os limites da razão, estava já se antecipando aqueles eventos dramáticos de guerra e destruição que marcaram o século XX.   

Nessa peça, a existência da ação é praticamente inexistente.  

O cerne dos diálogos não está relacionado a eventos, não se relacionam a um enredo com começo, meio e fim, mas a elucubrações e aforismos filosóficos enunciados por personagens representativos das diferentes perspectivas filosóficas em jogo.

A peça se inicia num dia de Natal, momento do renascimento de Cristo.

Pouco se fala sobre o lugar onde os eventos se passam e o período histórico dos fatos.

Há uma predominância pela figura do mar em detrimento da terra. O protagonista Malazarte está em oposição a tudo o que pode ser considerado telúrico. Para ele “nada é eterno na vida imortal”. Afirma estar sempre em eterna mutação. Prefere o mar à terra justamente por buscar sempre estar em eterna transformação, como as águas do oceano, ora tranquilas ora em forte agitação. Prefere a instabilidade do céu e das nuvens à solidez e imutabilidade da terra.

A personagem “Mãe” chora pela morte recente do seu marido e apela ao seu filho Eduardo que a ampare, após credores do falecido exigirem o pagamento de dívidas pecuniárias, sob pena de penhora da casa. De forma significativa, a Mãe apenas se interessa pelo filho após a morte do seu companheiro. Eduardo por sua vez rejeita as preocupações terrenas da mãe. Aposta sua existência no amor e na afirmação da vida. O seu amor erótico pela mulher amada é o momento de rompimento com os elos maternos.

O personagem Raimundo, filho de Militina, acompanha Malazarte numa pescaria e morre afogado. Sua mãe revolta-se contra a morte, ou mais exatamente contra a natureza das coisas, e por isso torna-se louca.

A loucura, nos exatos termos nietzschianos, dá-se quando o homem se revolta contra a natureza. É a fuga da realidade, da imeaticidade da vida, em torno do ideal, o início da loucura do homem. Ela se expressa quando Militina começa a deitar comida nas águas do mar, buscando alimentar a alma do filho morto:

“Onde está agora? Reponde... O pobrezinho deve estar com fome... (começa a deitar ao mar a comida que trouxe na cesta). Tu não me voltas, mas tu comes... E se estás morto, tua alma não terá fome... Toma mais! Como tens fome, meu filho! Faz frio aí em baixo dágua? Hein? Dize à tua mãezinha....”.

Esses são alguns dos fatos ou ações da peça, que, como dissemos, quase nada tem de importante.

O que deve ser considerado são basicamente os diálogos. Neles vemos uma sequência de aforismos, enunciado por personagens que despontam como pertencentes a dois grupos: os “fortes” (Malazarte, Dionísia), e os “fracos” (Mãe, Militina).

A oposição filosófica se dá nos exatos termos da crítica da filosofia grega traçada por Nietzsche.

Os personagens “fracos” são aqueles que negam a imediaticidade da vida, a afirmação da vontade e da força em oposição ao medo, fraqueza e à loucura, assim descrita como a revolta do homem em face da natureza.  Os personagens “fortes” são aqueles que vão além da alegoria da caverna de Platão. Não estão em busca de um ideal ou de uma teoria que explique as sombras vistas de dentro da caverna. São os seres livres, abertos incondicionalmente às inconstâncias da vida e expressam as forças, o brilho e a vivacidade da natureza. Mais importante do que teorizar sobre a sombra na caverna é vê-la em sua plenitude, sem para isso buscar evadir-se do real.  Não se trata de sair da caverna, mas lá permanecer, de acordo com essa teoria.

Eduardo está a meio passo entre o niilismo criticado por Nietzche (representado pela Mãe e pela sua criada Militina) e o anticristo enaltecido pelo filósofo alemão (representado pelo protagonista Malazarte). Está com um pé no grupo dos “fracos” e outro pé no grupo dos “fortes”.

Este meio termo talvez tenha sido o posicionamento final de Graça Aranha acerca do problema filosófico já traçado em Canaã.

Tanto no romance, quanto na peça de teatro, não fica claro ao leitor qual a filiação exata do escritor acerca das ideias propostas por Nietzsche.

Como boas obras artísticas, este posicionamento fica aberto às indagações do leitor.  

terça-feira, 2 de abril de 2024

“A Mãe” – José de Alencar

 Resenha Livro - “A Mãe” – José de Alencar – José de Alencar – Ed. Iba Mendes Editor Digital




“Mãe,

Em todos os meus livros há uma página que me foi inspirada por ti. É aquela em que fala esse amor sublime que se reparte sem dividir-se e remoça quando todas as afeições caducam.

Desta vez não foi uma página, mas o livro todo.

Escrevi-o com o pensamento em ti, cheio de tua imagem, bebendo em tua alma perfumes que nos vêm do céu pelos lábios maternos. Se, pois, encontrares aí uma dessas palavras que dizendo nada exprimem tanto, deves sorrir-te; porque foste tu, sem o querer e sem o saber quem me ensinou a compreender essa linguagem. “ (Alencar, José. “A Mãe”. 1859)

A trajetória literária do escritor José de Alencar inicia-se no ano de 1853, pouco após ter se formado em Direito pela Faculdade do Largo de São Francisco. Foi convidado por um colega de turma para a redação do Jornal Correio Mercantil, onde publicava crônicas leves, escritas “ao correr da pena”, que era aliás o nome da sua coluna.

Foi contudo a polêmica que iniciou em face do poema épico “A Confederação dos Tamoios” o marco inicial de sua participação direta na vida intelectual do país.

Esse poema de Gonçalves Magalhães foi editado e apoiado pelo próprio Imperador Dom Pedro II e o seu lançamento foi a oportunidade para que Alencar estabelecesse sua crítica àquele que era o maior expoente do romantismo brasileiro. Uma crítica para ele próprio Alencar pudesse depois criar as bases para o seu próprio projeto literário indianista através da publicação do Guarani (1857).

Alencar e Gonçalves Magalhães partilhavam a ideia do indianismo e da poesia épica como eixo de afirmação da nacionalidade Brasileira. O jovem crítico literário criticava o poeta protegido por Pedro II pelo uso abusivo dos cronistas na elaboração do enredo e o fato de a composição de um poema épico ter partido, em Magalhães, por questões triviais relacionadas a assassinato e vingança no bojo da guerra entre os índios Tamoios, aliados aos franceses, em luta contra os portugueses do Rio de Janeiro e São Paulo (1555). No caso do Guarani, esses temas triviais (a guerra e a vingança) se justificavam por se tratar de um romance, e não de um poema fundacional da civilização brasileira.

A polêmica literária de 1856 pode ser considerada o ponto de partida da produção artística e da crítica cultural do autor de Iracema. Sua obra perpassou pelo romance, pelo jornalismo e pelas artes cênicas.

Essa atividade de escritor foi acompanhada a partir do ano de 1860 pela carreira política, quando Alencar foi eleito deputado provincial do Ceará pelo Partido Conservador.  A interface entre política e literatura é destacada por Araripe Júnior, o primeiro biógrafo do escritor com quem conviveu pessoalmente.

Nesta primeira fase da obra do escritor, vemos além do indianista “O Guarani”, peças teatrais como “O Demônio Familiar” (1857) e “A Mãe” (1859) e romances voltados especialmente para o publico feminino como “Lucíola” (1862) e “Diva” (1864), vem as características mais próprias do romantismo, com a sublimação do trivial e o graciosíssimo na descrição dos personagens e da natureza.

A partir de 1870, Araripe Jr.  vê uma mudança no estilo literário que estaria relacionada com a decepção com política: foi naquele ano que José de Alencar sofreu a decepção de ser preterido por D. Pedro II para uma vaga de Senador Vitalício. Teria havido uma profunda mágoa pessoal que não só afastou o escritor da política, como acentuou nos seus textos o caráter polemista e crítico, nem sempre  significando com isso bons resultados estéticos. Nesses livros subsequentes, o biógrafo aponta um viés que se relaciona ao seu humor depressivo e taciturno, após a sua reclusão no bairro da Tijuca.

Falemos agora um pouco da produção teatral de José de Alencar.

A maior parte das suas peças teatrais foram escritas nessa sua primeira fase de “juventude” (1853/1870).Algumas delas foram um sucesso e outras foram um fracasso, como foi o caso de "O Jesuíta" (1875) que correspondeu ao último trabalho e expressou o fim melancólico da carreira do artista.   

A peça “A Mãe” foi anunciada ao público fluminense pelo Correio Mercantil no dia 14 de março de 1860.

Para os padrões da época, o espetáculo foi um sucesso. Foram nove apresentações, além de elogios da crítica, incluindo uma nota positiva de Machado de Assis, que tinha então vinte poucos anos de idade e iniciava sua carreira de crítico literário na imprensa carioca:

“Acaba de publicar-se o drama do Sr. Conselheiro José de Alencar intitulado Mãe, já representado no teatro Ginásio. Por este meio está facilitada a apreciação a frio ee no gabinete das incontestáveis belezas dessa composição. O autor das “Asas de um Anjo” é um dos que melhor reúnem os requisitos necessários a um autor dramático” (Diário do Rio de Janeiro.).

Trata-se de uma tragédia envolvendo os temas da escravidão e da maternidade.

A protagonista Joana aparece como mãe de leite do estudante de medicina Jorge. Ao longo da peça sabemos que a escrava na verdade era a própria mãe de seu senhor, cujo pai de cor branca era então desconhecido, de modo que tal condição desonrosa foi escondida do filho como meio de preservá-lo. Joana e Jorge viveram anos juntos, na visão dele como senhor e escrava, e no coração dela como mãe e filho.

Esse tipo de situação envolvendo enlaces extraconjugais de senhores brancos e escravas são bastantes conhecidos na história do Brasil Colonial, podendo-se dizer o mesmo de outras formas ilícitas de casamento.   O próprio José de Alencar de certa forma tivera experiência parecida com o personagem Jorge. Foi o primeiro dos oitos filhos de um padre e senador com sua prima: filho ilegítimo de padre, preterido em testamento e provocado em vida por seus adversários por causa dessa mancha do seu passado.

Na peça “A Mãe”, Jorge se vê compelido a salvar a honra do pai de sua pretendente Elisa que intentava suicidar-se por não conseguir honrar dívidas pecuniárias junto ao especulador Vicente.

Como meio de salvar o seu futuro genro, Jorge, mesmo tendo a afinidade e amor de filho com sua mãe preta Joana, aceita vender sua escrava provisoriamente até levantar os fundos para quitar a dívida.

Ao mesmo tempo que Jorge desconhecia ser filho de sangue de Joana, intuitivamente a via como tal.

Essa sintonia não era incomum num tempo em que predominava a figura da ama de leite. Acreditava-se que o leite da mulher negra era mais forte do que o da mulher branca.   Por isso, nas fazendas, a escrava que tinha acabado de parir era transferida para a casa de seu senhor para amamentar o recém-nascido branco e tomar conta da criança em tempo integral. Chamava-se essa criança de "nho-nhô". Já o próprio filho escravo dificilmente tinha acesso ao leite materno e era cuidado por outras escravizas que o alimentavam com uma papa de mandioca ou com leite animal não pasteurizado, o que contribuía para o grande número de óbitos. Já os vínculos estabelecidos entre a ama de leite e o filho do dono de Engenho constituíram, como não poderia deixar de ser, um elemento constitutivo da psicologia brasileira. O vínculo afetivo  que contribuiu para a ideia da democracia racial aventada na conhecida tese de Gilberto Freire.

O término da peça “A Mãe” é trágico. Ao fim e ao cabo, Jorge descobre a verdade sobre a sua filiação. Mesmo sendo um estudante de medicina, educado e professor de letras e artes, apenas por ser noticiado ser filho de escrava, vê o seu casamento barrado por Gomes, o mesmo genro que ajudara a quitar a dívida e salvar a honra. Como meio de garantia a felicidade do filho e a manutenção do segredo ao público, a mãe Joana resolve se matar tomando veneno. Sua morte apaga a marca trágica da escravidão na vida do seu filho e garante o seu casamento com a mulher amada.

O sacrifício da mãe pelo filho e martírio sublime da maternidade dão um ar de permanência à peça “A Mãe”. Esse amor incondicional é uma realidade ontem e hoje.

No mais, a obra ainda denota interesse especialmente por seu pioneirismo na descrição e abordagem de personagens dos baixos extratos sociais. Do enredo não há os tipos burgueses citadinos de muitas outras histórias de Alencar, mas o pequeno funcionário público arruinado, o estudante pobre, escrava de ama, o meirinho, o especulador, etc.

segunda-feira, 25 de março de 2024

Os Contos de Lygia Fagundes Telles

 Os Contos de Lygia Fagundes Telles



Resenha Livro – “Venha ver o pôr-do-sol e outros contos” – Lygia Fagundes Telles – Ed. Ática

“Quero te dizer que nós as criaturas humanas, vivemos muito (ou deixamos de viver) em função das imaginações geradas pelo nosso medo. Imaginamos consequências, censuras, sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital, mais profundo, mais vivo. A verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões”. (“As Meninas” – Lygia Fagundes Telles).

No próximo dia 03 de abril fará dois anos da morte da escritora paulista Lygia Fagundes Telles, falecida quando tinha 103 anos de vida.

A longevidade da autora de “Ciranda de Pedra” também se revela no vasto número de romances, contos e crônicas jornalísticas por ela escritos até o fim da vida. Basta dizer que no ano de 2016, quando tinha 92 anos de idade, foi a primeira mulher brasileira indicada ao prêmio Nobel de literatura.

Lygia Fagundes da Silva Telles nasceu no dia 19 de abril de 1918 em São Paulo/SP. Passou, porém, a maior parte da sua infância em diferentes cidades do interior paulista, em função do trabalho de seu pai, Durval de Azevedo Fagundes, este último procurador, promotor público, advogado distrital, comissário de polícia e juiz.

Sua mãe, conhecida como Zazita, era uma pianista habilidosa que não pôde prosseguir na carreira artística, dada a época em que às mulheres eram reservados apenas os trabalhos e cuidados domésticos.

Em 1936 os pais de Lygia separaram-se, fazendo com que a escritora e sua mãe retornassem à São Paulo para uma vida de classe média empobrecida. O tema da separação conjugal é significativo, posto que vivenciada na prática por mãe e filha.

No caso de Lygia, sua separação foi um ato de coragem, considerando que naquele tempo, ou mais exatamente no ano de 1960, o divórcio não era admitido no ordenamento jurídico brasileiro. O fato tornou-se um escândalo ainda maior pelo fato de Lygia ter se casado com  Gofredo Teles Júnior, renomado professor catedrático da Faculdade de Direito do Largo de Francisco, deputado constituinte de 1946 e principal redator da “Carta aos Brasileiros” (1977), considerado o primeiro manifesto público em defesa da democracia nos tempos da Ditadura Civil Militar brasileira.

Lygia foi aluna de Gofredo Teles Júnior nas Arcadas. Quando ingressou na Academia de Direito de São Paulo, era uma das seis mulheres numa turma de cerca de cem alunos.

Da mesma forma, a autora iniciou sua trajetória artística numa época em que poucas mulheres eram admitidas no mundo literário.

O primeiro livro de contos de Lygia Fagundes Telles foi publicado no ano de 1938 quando tinha vinte anos de idade. Porém, de acordo com a escritora, conhecida por um agudo senso autocrítico, sua estreia literária só se daria no ano de 1951, quando lançou o romance “Ciranda de Pedras” e tornou-se conhecida nacionalmente.

É provável que esse livro ainda hoje seja o mais lembrado pelo público, especialmente pelo fato de ter sido objeto de duas adaptações para telenovelas.

Contudo, as coletâneas de contos correspondem ao grosso da produção literária da escritora paulistana.

Através das técnicas do fluxo de consciência e do monólogo interior, Lygia retrata histórias essencialmente situadas em ambiente urbano, com temas universais (não regionalistas).

Suas histórias falam de amor, romance, paixão, medo e morte.

Nos contos, vemos verdades subterrâneas de criaturas ambiguamente disfarçadas no comportamento social. É o caso do conto “O Noivo”, uma história fantástica em que o narrador é despertado e surpreendido com a notícia de que aquele era o dia do seu casamento.

Contraditoriamente, o noivo não lembra nem remotamente desse casamento, nem tão pouco de quem seria a sua futura esposa.

“Lembrava-se de tudo, de tudo menos do casamento. Só essa faixa da memória continuava apagada, só nesse terreno a névoa se fechava indevassável, nomes, caras, tudo era escuridão. A começar pela noiva feita de nada, diluída no éter. As coisas se passavam como nas histórias encantadas, onde o príncipe mandava vir a donzela de um reino distante sem tê-la visto nunca, o amor construído em torno de um anel de cabelo, de um lenço, de um retrato. “E eu nem isso tenho. Ou tenho?”.

Essas verdades subterrâneas se revelam em pequenos detalhes. No caso do conto que dá título ao livro “Venha ver o pôr-do-sol”, serve de exemplo os leques de rugas ao redor dos olhos de Ricardo, nos momentos em que revela raiva por ter sido preterido por sua ex namorada Raquel.

São expressões faciais, comportamentos contraditórios, silêncios eloquentes, comentários acessórios apenas aparentemente não relacionados com aquilo que os personagens pensam e sentem.

Neste sentido, pode-se dizer que a escritora mostra os fatos ao invés de contá-los: ou, em outros termos, os fatos e as histórias são contados por si mesmos.

É o caso do conto “Natal na Barca” em que o protagonista passa a festa natalina numa viagem de barco ao redor de alguns desconhecidos, dentre eles uma mulher que carregava um filho pequeno.

Ao escutar as falas dessa mulher, e seu depoimento sobre a morte trágico de outro filho pequeno, falecido num acidente doméstico, a escritora desnuda não só fatos, mas as cogitações profundas que passam no íntimo dos personagens. Muitas histórias são ditas através de pequenos detalhes captados pela escritora:

“Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. Como se não  bastasse a pobreza que espiava pelos remendos de sua roupa, perdera o filhinho, o marido e ainda vai pairar uma sobra sobre o segundo filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante. Intocável. Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. Inconsciência? Uma obscura irritação me fez sorrir.”.

A intensidade dos sentimentos humanos, retratada através de frases curtas, com economia de palavras; trata-se de uma escritora capaz de captar a complexidade da alma humana através de pequenas histórias em forma de contos. 

Neste quadro, não são poucos aqueles que consideram Lygia Fagundes Teles como uma das maiores escritoras brasileiras do século XX.

terça-feira, 19 de março de 2024

A Literatura de Léo Vaz

 A Literatura de Léo Vaz



Resenha Livro – “O Burrico Lúcio” – Léo Vaz – Ed. Jabuti

Não são muitas as informações disponíveis na internet acerca da vida e da obra do escritor do paulista Léo Faz (1890/1973).

Apesar de ter sido um jornalista e escritor popular ao seu tempo, os seus dois romances mais conhecidos, “Professor Jeremias” (1920) e “O Burrico Lúcio” (1951), aguardam há muito tempo a iniciativa de um editor que queira reeditá-los.

O que seria desejável considerando a rara qualidade literária do escritor de Capivari/SP, apelidado por Monteiro Lobato, amigo e editor de Léo Vaz, como um “Machado de Assis sem gagueira”.

O paralelo traçado pelo autor do Sítio do Picapau Amarelo tem o seu fundamento: ambos os escritores reuniam o dom da ironia e da difícil simplicidade e o pleno domínio da linguagem contadora de causos.

No prefácio de “O Burrico Lúcio”, o crítico Gomes Freire reforça a comparação, indicando que a obra de Vaz é tão simples, natural e de fácil assimilação, que poderia alguém jugar estar ao alcance de qualquer pena. O que antes revelava uma experiência de décadas de redação e um domínio textual raro.

“O Burrico Lúcio é a nosso ver como “O Memorial de Aires” (Machado de Assis) a conquista de um ideal literário, a chegada à Utopia dos Escritores, o remate de uma obra, feita com seriedade e desvelo. O alpinista das letras Léo Faz alcançou o píncaro sonhado; já se acha, pois, perto das nuvens, no ar limpo, rarefeito. A perfeição é simplificação. Isso explica a curteza das frases, o pequeno tamanho do romance. Só os jovens são extensos, por falsa experiência.”  (Gomes Freire).

Leonel Vaz de Barros, mais conhecido como Léo Vaz, iniciou sua carreira literária no jornalismo, na Gazeta de Piracicaba. No ano de 1918 muda-se para São Paulo e assim que chega à capital, é apresentado a Oswald de Andrade e convidado a participar de reuniões literárias, na qual estão presentes Monteiro Lobato, Guilherme de Almeida e Menotti del Pecchia.

Trabalhou como periodista em diversos órgãos da imprensa paulistana, até ser convidado a integrar a equipe do Estadão, onde foi diretor e publicou textos até a sua morte, em março de 1973.

“O Burrico Lúcio” é uma adaptação do conto de mesmo nome de autoria de Luciano de Samósata (125 – 180), este último um contador de histórias satíricas e críticas da sociedade romana dos tempos do reinado de Marco Aurélio.

Para Léo Vaz, o escritor romano seria uma versão a frente de seu tempo de Anatole France: ambos portadores da mais alta cultura científica e literária de seu tempo, críticos mordazes dos homens e das instituições, irreverentes ao encararem as crenças e religiões, divertindo-se e divertindo o seus leitores com a sua ironia.

 

O livro conta a história de Lúcio, jovem romano da cidade de Patras, convocado por seu pai a viajar até Hipata com o objetivo de cobrar pessoalmente um devedor usuário que insistia em não restituir o dinheiro que lhe fora emprestado.

Ao chegar ao seu destino, é convidado a ficar por alguns dias na cidade, hospedado pelo usuário e por sua mulher, que logo revelou ser uma bruxa:

“A única coisa, porém, que em parte abonava a má-língua dos informantes, era o jeito da mulher de Hiparco: magra, ecolhida, de cabelos ralos, duros e escorridos, olhos pequeninos e fugidios, ladeando um narigão recurvo e agudo que nem bico de coruja, a tal criatura dava a impressão de ser mesmo uma bruxa das mais autênticas e perigosas deste mundo.”.

As suspeitas do jovem logo se revelaram verdadeiras: conduzido por uma criada da casa aos aposentos da bruxa, observa por uma fresta da porta a mulher fazendo os seus rituais religiosos.

Em certo momento, a velha bebe uma porção mágica e entra em metamorfose. O seu corpo diminui até o tamanho de uma anã, cobre-se de penas, e seus pés se transformam em garras de gavião, até se converter num pássaro repulsivo que sai grasnando em direção à janela até se perder de vista.

Lúcio, garoto ingênuo e inexperiente, pede à criada que lhe ungisse a mesma porção mágica para transformá-lo num pássaro possante. Por um engano de sua amiga, que pega o frasco errado, Lúcio se transforma num burrico.

As aventuras do jumento, que é vendido para um grupo de salteadores, depois arrematado num leilão, depois adquirido por oportunistas que o utilizam para obter doações, e assim por diante, tem como pano de fundo a sátira da sociedade romana.

Em Léo Vaz, ela se dá na forma de um humor sutil, não agressivo nem ridiculizador, dotado de compaixão humana, e não raro combinando o trágico e cômico, tal qual as histórias de Machado de Assis.  




terça-feira, 12 de março de 2024

A Literatura de Carmen Dolores

 A Literatura de Carmen Dolores



Resenha Livro - “A Luta” – Carmen Dolores – Ed. Iba Mendes Editor Digital

Carmen Dolores foi um dos pseudônimos da escritora carioca Emília Moncovo Bandeira de Mello (1852-1910), que ao seu tempo foi uma das mulheres mais lidas no Brasil e hoje é absolutamente desconhecida do público, e até mesmo dos estudiosos da literatura nacional.

Dolores publicou, entre 1905/1909, crônicas literárias e jornalísticas no “O Paiz”, jornal situado no Rio de Janeiro, então capital da incipiente República, e com maior tiragem e circulação no Brasil.

As publicações no jornal revelam ao estudioso de hoje como a escritora foi popular ao seu tempo. Basta constatar que a sua coluna era lançada aos domingos (dia em que o jornal é mais vendido) e em coluna de destaque.

Sua popularidade pode ser comparada a outra escritora daquele mesmo período dos 1900: Júlia Lopes de Almeida, idealizadora da Academia Brasileira de Letras, também colunista d’o Paiz e para alguns a mais popular escritora do Brasil da Republica Velha.

A existência de duas grandes escritoras do sexo feminino não nos autoriza pensar que havia grande participação das mulheres na produção literária da época.

Numa entrevista concedida a João do Rio em 1905, Lopes de Almeida conta que na adolescência fazia versos escondida: fechava-se num quarto, abria a secretária, escrevia seus poemas e silenciosamente os guardava na gaveta fechada à chave, já que uma mulher produzir versos era algo inimaginável.

Já na literatura de Carmen Dolores vê-se a descrição e crítica da condição da mulher ao seu tempo. Momento em que a mulher não podia ser vista em público sem a presença de um homem que a acompanhasse, sob pena de ser encarada com desconfiança e sujeita à reputação de libertina. Além disso, o abandono do lar conjugal constituía crime, o que é um dos elementos centrais do seu romance “A Luta” (1911).  

De fato, um dos aspectos da obra de Dolores que a singulariza se refere à constante participação de personagens femininas como protagonistas das histórias. Os romances, crônicas e contos se centram na figura de amantes entristecidas, esposas entediadas, mãe desamparadas, beatas moralistas.

Pessoalmente a escritora defendeu pautas avançadas para a época como o direito ao divórcio e ao acesso das mulheres ao trabalho.

A centralidade das personagens femininas e a crítica do casamento dão o tom do romance “A Luta (romance naturalista)” publicado postumamente em 1911.

A história se centra num casamento infeliz envolvendo temperamentos opostos: a passividade bovina de Alfredo Galvão e a personalidade instável e impulsiva de Celina.

Alfredo Galvão é amanuense, de hábitos previsíveis, pessoa sem dinheiro, sem brilho e sem posição. É o quinto e único filho vivo de D. Margarida, viúva beata, sempre vestida de preto. Justamente por ser o único parente que lhe resta, trata o filho com rigor e exerce sobre ele total domínio.

Celina por sua vez é filha de D. Adozinda,  também viúva, porém de hábitos mais liberais, dona de uma pensão no bairro de Santa Tereza, onde vive com as filhas e os demais inquilinos, muitos deles homens. As filhas vivem um ambiente de liberalidade, sendo cotejadas pelos estudantes da pensão e tendo autorização para passeios sem estarem acompanhadas pela mãe.

O casamento se dá após a partida de Gilberto, um namorado de Celina, para Minas Gerais. Galvão, mostrando a todo momento sua fraqueza, pede consentimento à mãe para pedir a mão de Celina, que a contragosto autoriza o casamento, mesmo diante da má reputação de D. Adozinda e suas duas filhas.

Celina vive um casamento com as duas sentinelas (o marido e a sogra) tolhendo-lhe a liberdade e fazendo da sua vida uma prisão. Confronta a alegria do lar familiar em Santa Tereza com a austeridade da casa da sogra. 

“Ah! Não! Era uma monotonia, um isolamento! O Alfredo parecia uma máquina: levantava-se, deitava-se, comia, palitava os dentes, saía, voltavam com uma regularidade de pêndula. E nunca tinha dinheiro para um passeio, um teatro, uma coisa imprevista, nada! Os dias arrastavam-se, sempre iguais, pesados, lentos; e ainda por cima a sogra a mandar, a dirigir, a prender e ensinar, como senhora de tudo...”.

Busca fugir do cativeiro inventando pretextos: numa suposta visita a um dentista, encontra num bonde seu ex namorado Gilberto acompanhando com enlevo de namorado sua irmã caçula Olga. Já desiludida do casamento e reacendendo o amor dos tempos de adolescente, confronta publicamente os dois e se retira para a casa da mãe, abandonando o lar conjugal.

A luta, que dá o nome do livro, se dá em torno do combate travado no espírito de Celina entre a liberdade perdida do passado e os deveres e responsabilidade de mulher casada do presente. Essa luta se desdobra no conflito final, quando a mãe de Alfredo Galvão vai até o Hotel de Santa Tereza confrontar a nora e compeli-la ao retorno do lar conjugal.

Nas entrelinhas, o combate se dá em torno do conservadorismo e do que àquele tempo era progressismo: o respeito absoluto às normas do casamento contra a liberação da mulher pelo direito ao divórcio.

E assim termina o livro “A Luta”:

“Em tais meios, a luta jamais cessa: continua sempre, entre exploradoras e exploradas. É a terrível, infindável, a eterna luta! É o renhido jogo dos interesses inconfessáveis”

domingo, 25 de fevereiro de 2024

“O Jesuíta” – José de Alencar

 “O Jesuíta” – José de Alencar



 

Resenha Livro - “O Jesuíta” – José de Alencar – Ed.  Iba Mendes Editor Digital

 

“Brasil! ... Minha pátria! ... Quantos anos ainda serão precisos para inscrever o seu nome, hoje obscuro, no quadro das grandes nações? ... Quanto tempo ainda serás uma colônia entregue à cobiça de aventureiros, e destinada a alimentar com as tuas riquezas o fausto e o luxo de tronos vacilantes (Pausa; arrebatado pela inspiração) Antigas e decrépitas monarquias da velha Euroopa! ... Um dia compreendereis que Deus quando semeou com profusão nas entranhas desta terra o ouro e o diamante, foi porque reservou este solo para ser calcado por um povo livre e inteligente” (ALENCAR, José de. “O Jesuíta”).

 

A peça teatral “O Jesuíta” foi a última obra escrita pelo escritor cearense José de Alencar enquanto dramaturgo. Foi redigida em 1861 e apenas encenada no ano de 1875, quando o autor já apresentava os primeiros sinais da tuberculose pulmonar que o levaria à morte em 12 de dezembro de 1877.

 

Consta que o espetáculo não foi um sucesso de público e não obteve os aplausos da crítica.

 

Na opinião do próprio autor, externada no prefácio da obra, o fracasso de sua peça decorreu da sua inadequação perante o mau gosto do público fluminense:

 

“É que o público fluminense ainda não sabe ser público, e deixa que um grupo de ardílios usurpe-lhe o nome e os foros. Se algum dia o historiador de nossa ainda nascente literatura, assinalando a decadência do teatro brasileiro, lembrar-se de atribui-la aos autores dramáticos, este livro protestará contra a acusação”.

 

Na verdade, essa incompatibilidade entre o drama e o público carioca decorria de mudanças no âmbito do pensamento e da cultura: já em 1875 o público letrado fluminense já era mais afeito ao anticlericalismo, ao passo que a peça é um elogio à atuação da Companhia de Jesus e dos jesuítas. Além disso, o gosto teatral deixava de ter apelo ao drama e se voltava ao teatro musicado, de gênero alegre, de influência francesa. O público buscava o teatro cada vez mais para fins de entretenimento e diversão, e aquele drama histórico, que abordava os instantes imediatamente anteriores à expulsão dos jesuítas, já aparecia anacrônico naquele momento.

 

A história contada em “O Jesuíta” se passa no Rio de Janeiro de 1759 ou mais exatamente quatro anos antes da transferência da sede administrativa da colônia de Salvador para o território fluminense, movimento político que acompanhou de forma paralela o movimento econômico de deslocamento do eixo econômico do Brasil dos engenhos de açúcar nordestinos para a busca pelo ouro e diamantes na porção sul meridional da colônia.

 

Tratava-se de um processo de longa duração de interiorização da colonização portuguesa, dentro do qual o Rio de Janeiro servia como um empório natural do comércio, especialmente de escravos, e centro político que servia de anteparo e ponto de partida ao movimento em direção às minas gerais.

 

Tanto a transferência da sede do vice reinado ao Rio de Janeiro quanto a expulsão dos jesuítas se deram no bojo das reformas administrativas levadas a cabo pelo plenipotenciário ministro e estadista português Marques de Pombal.

 

Influenciado pelo iluminismo e pela ideologia política do despotismo esclarecido, o ministro do Rei Dom José I promoveu a expulsão dos jesuítas da colônia portuguesa em 14 de novembro de 1759, o que se deu após uma série de entrechoques entre a Companhia de Jesus e as autoridades régias: os  jesuítas administraram as aldeias através das missões jesuíticas, sendo, desse modo, um obstáculo aos interesses dos colonos de explorar, sem restrições, o trabalho dos povos nativos, o que se deu de forma particularmente intensa na região do norte, onde a mão de obra africana era menos significativa.

 

Contudo, o mais conhecido conflito que opôs os jesuítas e as autoridades régias se deu nas conhecidas guerras guaraníticas ao sul da colônia, quando as Coroas Portuguesa e Espanhola estabeleceram um novo acordo de demarcação territorial através do Tratado de Madrid de 1750.  

De acordo com os novos limites territoriais estabelecidos na convenção, os portugueses cederiam a região de Sacramento, onde hoje se situa o Uruguai, para a Espanha e, em troca, controlariam os Sete Povos das Missões, que correspondia a um conjunto de sete aldeamento indígenas presididos pelos jesuítas que, no seu auge, comportava 30 mil pessoas, situado onde hoje está o Rio Grande do Sul.

 

Pelo tratado, os indígenas e jesuítas que estavam do lado brasileiro deveriam atravessar o Rio Uruguai e se mudar para o lado espanhol. Foi justamente a recusa dos índios e da parcela mais combativa dos missionários em atender a ordem de evacuação forçada o ponto de partida de uma guerra que durou três anos, levou à destruição das missões e  à morte de milhares de índios e religiosos.  

 

Na peça “O Jesuíta”, o escritor faz do seu drama um retrato desse período histórico, quando os portugueses passam a acusar a Companhia de Jesus de corrupção e conspiração contra o Rei, o que foi na verdade um pretexto para expulsá-los do país.

 

O protagonista Samuel vive na cidade do Rio de Janeiro disfarçado de um médico italiano para não despertar a atenção das autoridades, que já estavam em processo de perseguição dos missionários. Esta oposição entre os jesuítas e as autoridades régias apareça na peça como uma forma embrionária de luta pela afirmação da independência nacional e pela superação do jugo colonial.

 

Isto se dava essencialmente pelo papel social ocupado pelo jesuíta, um elemento nobre, racional e prudente, que renega os sentimentos mundanos e rompe os laços que o prendem à sociedade para se dedicar a uma missão lhe designada por Deus.

 

Perseguido pelo Conde de Bobadela, governador na colônia e executor das ordens de Marquês de Pombal, o protagonista granjeia o respeito e admiração do povo, de modo que a sua perseguição pelas autoridades dá ensejo à maior clivagem e oposição entre a população nativa e a Coroa Portuguesa.

 

Além disso, a personificação do movimento de independência nacional na figura do jesuíta Samuel era possível pelo papel social ocupado pelos religiosos da Companhia de Jesus na colônia. Eles foram os pioneiros da educação do país, criaram as primeiras escolas, onde ensinaram moral, religião e letras. Constituíram as primeiras expressões nacionais de teatro, poesia e músicas. Foram os precursores da intelectualidade brasileira e, como cediço, um movimento político nacionalista não poderia nascer sem um movimento intelectual que lhe servisse de substrato.

 

Mas não é só.

 

O jesuíta representava a consciência do povo já que através da sua atividade religiosa e até mesmo pelos segredos que escutavam no confessionário tinha contato e conhecimento do clima político da época e do que pensava a opinião público. A isso se soma, ao menos na peça de Alencar, outros atributos que o colocavam como artífices da independência brasileira: eles tinham o senso de responsabilidade, o sentimento do dever, a capacidade de distinguir o bem e o mal. Já as autoridades régias aparecem como antipopulares e corruptas: a perseguição e prisão dos missionários é acompanhada de atos de extorsão e roubo dos recursos e riquezas da Igreja, arrecadados para o cuidado dos doentes e dos órfãos.

 

Nesta peça histórico, o Dr. Samuel representa a alma da jovem américa. Já o Conde de Bobadela representa o poder da velha Europa.   

 

E além dessa oposição entre nacionalismo e colonialismo, a história, dentro das premissas do romantismo literário, também estabelece a oposição entre o sublime e o mundano, entre os  desígnios da ideia e às exigências do corpo e do amor, entre a renúncia de si para obtenção da glória religiosa e a busca da felicidade através do casamento. Isso se dá através do personagem Estevão, afilhado do Dr. Samuel, que teve sua formação moral e religiosa conduzida para o sacerdócio e que nega sua vocação após apaixonar-se por Constância, esta última afilhada do Conde de Bobadela.

 

O engajamento religioso e a luta desinteressada em torno da liberdade e independência nacional envolvem a glória a que busca o protagonista Samuel. Já o seu afilhado vê no casamento e na tranquila felicidade conjugal a sua verdadeira vocação. Essa tensão levará ao conflito em que prevalecerá o amor terreno entre Estevão e Constância em detrimento do ideal religioso e ascético buscado por Samuel.  

 

Esta última peça de teatro pode ser lido como uma síntese de duas variantes presentes na obra de José de Alencar: o drama histórico pelo qual se busca a constituição de uma identidade nacional,  personificada aqui na figura do Jesuíta, tal qual anteriormente o fora através do índio em comunhão com o português; e o drama de natureza mais sentimental, folhetinesco, convencional e, em certa medida, previsível.