domingo, 30 de maio de 2021

BREVES NOTAS SOBRE NELSON WERNECK SODRÉ

 BREVES NOTAS SOBRE NELSON WERNECK SODRÉ

 



Ainda hoje, mais de 100 anos após o nascimento de Nelson Werneck Sodré, pode-se dizer que não foi feita justiça quanto à publicação e disseminação dos trabalhos historiográficos do General da história e da cultura brasileiras.

 

Para quem passou por cursos de graduação de História nos últimos aos, é provável que as poucas remissões sobre o autor tenham sido negativas: historiador mecanicista ou “stalinista”, cujo método de análise se baseia num “materialismo vulgar” e defensor da tese do “feudalismo no Brasil colonial”, dentre outros.

 

Mais recentemente, alguns intelectuais marxistas como José Paulo Netto e João Quartim de Moraes vêm contribuindo para desmontar estes estereótipos.

 

Em primeiro lugar, cumpre acentuar o fato de que a obra de Sodré é bastante extensa e muito do seu trabalho aguarda novas publicações. O historiador escreveu e publicou em vida mais de 50 livros e redigiu algo em torno de 3000 artigos. Outro ponto a ser ressaltado é a própria evolução intelectual e o do domínio dos pressupostos teórico metodológicos do marxismo pelo historiador carioca.

 

A maturidade intelectual plena e a superação do que foi caracterizado como “materialismo vulgar” se dá em Nelson Werneck Sodré no final dos anos 1950 e ao longo dos anos 1960.

 

Duas experiências específicas de vida contribuíram para este salto de qualidade.

 

A primeira correspondeu à participação do autor na chapa nacionalista para as eleições do Clube Militar,  no ano de 1949, ao lado de Newton Estillac Leal e Júlio Caetano Horta Barbosa.

 

A eleição se travou no contexto da Guerra Fria, do fim do governo antipopular de Dutra e da campanha do “Petróleo é Nosso”, e refletia divisões no interior das forças armadas entre o campo nacionalista/democrático e o campo entreguista/golpista. Desta experiência nestas campanhas Sodré superou algumas ilusões profissionais ou coorporativas. A questão militar lhe pareceu indivisível dos confrontos ideológicos relacionados à soberania nacional e ao aprofundamento da democracia.

 

Sua segunda experiência pessoal, que implicou num salto qualitativo de sua produção intelectual corresponde ao seu engajamento no ISEB, que fazia um contaponto à USP como polo de estudo crítico e politizado da realidade nacional. Nelson Werneck Sodré, ao lado de outros intelectuais como Hélio Jaguaribe e Guerreira Ramos, participavam deste instituto que irradiou nos anos 1950/60 as teses do nacional desenvolvimentismo e a defesa das reformas de base que seriam pautadas pelo governo de João Goulart.

 

Outro ponto a ser destacado ao se rechaçar o estereótipo criado em torno do autor é que Sodré nunca foi formalmente militante do PCB, tendo assimilado de forma mais consistente o marxismo apenas no final dos anos 1950, quando já tinha quase 50 anos de idade. Ainda que tenha tipo posições coincidentes com a do partido comunista nos meados do século XX, não faz sentido caracterizá-lo como “stalinista”, nitidamente se considerarmos que o eixo de toda a sua reflexão sempre foi a questão nacional.

 

Isto para não se mencionar a posição extremamente crítica de Sodré em torno de sua própria obra. O seu primeiro livro, publicado em 1938, corresponde a uma história materialista da literatura brasileira, foi objeto de sucessivas edições até uma terceira edição, nos anos 1960, que praticamente triplicou o número de páginas da obra, além da inclusão de vasta bibliografia decorrente de leituras subsequentes.

 

As críticas que nos parecem ser mais oportunas dizem respeito à caracterização de Nelson Werneck Sodré sobre a burguesia nacional e a existência de um modo de produção feudal no Brasil, no caso do nosso autor, falando sobre uma espécie de “regressão  histórica” que se dá no século XVII em regiões dos sertões e interiores da capitania de Minas Gerais.

 

No que se refere à burguesia, nosso historiador inequivocamente era daqueles que depositaram confianças indevidas numa burguesia nacional que supostamente seria parte articulada das demais classes portadoras da estratégia da Revolução Brasileira. As ilusões em torno desta fração supostamente progressista da burguesia nacional foram indiscutivelmente explicitadas com o golpe militar de 1964. Neste sentido, vejamos como o autor buscou identificar o povo como sujeito da revolução brasileira nos anos de 1960:

 

“São as partes da alta e da média burguesia que permanecem fiéis ao seu país, é a pequena burguesia que, salvo reduzidas frações corrompidas, forma com os valores nacionais e democráticos, é o numeroso campesinato que acorda para a defesa dos seus direitos, é o semiproletariado e, principalmente, o proletariado, que se organiza amplamente e comanda as ações políticas. É este o povo que vai realizar a revolução brasileira”.

 

Indo numa mesma linha do PCB daqueles anos de1950/60, Sodré ao se referir à Revolução Brasileira pensava uma revolução nacional, democrática e anti-imperialista, mas não numa revolução socialista.

 

A tese do feudalismo no Brasil foi melhor criticada por interlocutor importante de Nelson Werneck Sodré, o marxista paulistano Caio Prado Júnior.

 

O fato é que o feudalismo é uma relação social, econômica e política particular da evolução histórica europeia. A ligação do camponês com a terra, lá, possuía caráter milenar, houve a consolidação de uma nobreza proprietária da terra a que pouco se dedicava à atividade empresarial. Coisa inteiramente distinta ocorreu no Brasil. Nas nossas terras, não havia antes dos Portugueses significativas parcelas populacionais sedentárias, que trabalhassem no campo e que tivessem de ser desmobilizadas para a formação do empreendimento colonial. A nossa colonização foi desde sua origem uma empresa capitalista comercial e mercantil, afirma Caio Prado Júnior, e assim foi povoado nosso território, tendo como base o trabalho escravo africano. Aquilo que a maior parte da esquerda via como “feudalismo”, como os sistemas de parceria, quando muito apresentavam semelhanças com aquele modo de produção em todo secundários, sempre predominando no país o grande empreendimento rural agrário-exportador. 

 

A despeito portanto de algumas ideias de Nelson Werneck Sodré que não passaram à prova do tempo, é imprescindível um movimento de republicação de suas obras de maturidade, especialmente no campo da cultura e da literatura. Mesmo alguns escritos anteriores à década de 1960 ainda suscitam interesse como sua análise sobre o segundo império[1] e o papel dos “bacharéis” no contexto da história das ideias políticas e o seu artigo sobre o Levante Vermelho de 1935[2], para citar dois exemplos de trabalhos que merecem urgente publicação.

 

Bibliografia

 

NETTO, José Paulo. “Nelson Weaneck Sodré: o general da história e da cultura”. Ed. Expressão Popular.        



[1] “Panorama do Segundo Império” – Nelson Werneck Sodré  - Graphia Editorial

[2] SODRÉ, Nelson Werneck. “A Intentona Comunista de 1935”. Ed. Mercado Aberto.

sábado, 29 de maio de 2021

TUTELA CONSTITUCIONAL DAS LIBERDADES

 A TUTELA CONSTITUCIONAL DAS LIBERDADES: O HABEAS CORPUS E O DIREITO DE CERTIDÃO 




 

HABEAS CORPUS

 

O Habeas Corpus encontra previsão no artigo 5º, inciso LXVIII, da Constituição de 1988:

 

“Conceder-se-á habeas corpus sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder”.

 

A origem do instituto remete ao Direito Romano, pelo qual todo cidadão podia reclamar a exibição do homem livre detido ilegalmente por meio de uma ação privilegiada que se chamada “interdictum de libero homine exhibendo”. Obviamente, não se pode comparar a noção de liberdade individual das sociedades modernas com o conceito correspondente no período da antiguidade e na idade média.

 

 No Brasil, sua previsão também é remota, tendo sido introduzido por um Decreto de 25/05/1821 e posteriormente admitido na Constituição Imperial de 1824 ao proibir prisões arbitrárias.

 

Hoje, o HC é uma garantia individual ao direito de locomoção devendo o juiz ou tribunal fazer cessar  a ameaça ou a coação à liberdade de locomoção entendida em seu sentido amplo: o direito de ir, de vir e de ficar.

 

A liberdade de locomoção engloba as seguintes situações:

 

1-      Direito de acesso e ingresso no território nacional;

2-      Direito de saída do território nacional;

3-      Direito de permanência no território nacional; e

4-      Direito de deslocamento dentro do território nacional.

 

Por ser remédio constitucional específico para a correção de ato que implique coação à liberdade de ir e vir, não é admitido o HC para questionar pena pecuniária (Súmula 693 do STF), para garantir o direito de visitas do preso ou para o trancamento de processo administrativo.

 

Igualmente, e pelas mesmas razões, não se cogita a pessoa jurídica figurar como paciente na impetração do habeas corpus, uma vez que não há possibilidade jurídica de proteção a uma inexistente liberdade de locomoção. Contudo, a pessoa jurídica poderá figurar no polo ativo da ação para defender direitos de terceiros. Em outras palavras: é possível o habeas corpus ser impetrado por pessoa jurídica em favor de pessoa física.

 

A legitimidade ativa do HC é amplíssima ao ponto de se qualificar este instituto como “ação penal popular”. Qualquer um do povo, nacional ou estrangeiro, independentemente de capacidade civil, política, profissional, de idade, sexo, profissão e estado mental, pode fazer uso do habeas corrpus.

 

Não existe, por outro lado, a possibilidade de impetração de HC apócrifa, não assinada pelo impetrante e que não tenha qualquer autenticação.

 

No que se refere à natureza jurídica do HC, entende-se que se trata de ação constitucional de caráter penal, com procedimento especial e isenta de custas, não se confundindo com qualquer espécie de recurso.

 

DIREITO DE CERTIDÃO

 

Trata-se de um direito líquido e certo previsto na Constituição no seu artigo 5º, inciso XXIV, “b”, da CF/88: 

 

XXXIV - são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: b) a obtenção de certidões em repartições públicas, para defesa de direitos e esclarecimento de situações de interesse pessoal;

 

A esse direito corresponde a obrigatoriedade do Estado, salvo nas hipóteses constitucionais de sigilo, de fornecer as informações solicitadas, sob pena de responsabilização política, civil e criminal do poder público. A negativa estatal ao fornecimento das informações englobadas pelo direito de certidão pode ensejar correção por mandado de segurança ou habeas data, neste último caso se se tratar de informações pessoais relativas ao próprio impetrante.

 

Sobre o direito de certidão, já se posicionou o Supremo Tribunal Federal:

 

“A garantia constitucional que assegura a todos a obtenção de certidões em repartições públicas é de natureza individual, sendo obrigatória a sua expedição quando se destina à defesa de direitos e esclarecimento de situações e interesse pessoal do requerente”.

 

Como não poderia deixar de ser, este direito de certidão não é absoluto e pode ser excepcionado quando se tratar de hipótese de sigilo por conta da segurança da sociedade e do Estado.

 

A lei nº 12.527/2011 (Lei do Acesso à Informação) classificou esta exceção como informações ultrassecretas, secretas ou reservadas, com prazos máximos de sigilo respectivamente de 25, 15 e 5 anos.

segunda-feira, 24 de maio de 2021

REVISITANDO O CONCEITO DE ATO ADMINISTRATIVO

 REVISITANDO O CONCEITO DE ATO ADMINISTRATIVO



 


Os atos administrativos discricionários se sujeitam ao controle do poder judiciário? De que forma pode ser elidida a presunção de legitimidade e veracidade dos atos administrativos? A validade do ato administrativo se vincula aos motivos indicados como seu fundamento?

 

Estas são algumas das perguntas que são analisadas pelo Direito Administrativo no capítulo relativo aos atos da administração.

 

O assunto é do interesse do estudante de direito, do bacharel que se prepara para as provas da OAB e do candidato dos concursos públicos a carreiras jurídicas, administrativas e policiais.

 

DEFINIÇÃO DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

 

JOSE CRETELLA JÚNIOR define o ato administrativo como “a manifestação de vontade do Estado, por seus representantes, no exercício regular de suas funções, ou por qualquer pessoa que detenha, nas mãos, fração de poder reconhecido pelo Estado, que tem por finalidade imediata criar, reconhecer, modificar, resguardar ou extinguir situações jurídicas subjetivas, em matéria administrativa”.

 

CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO define o ato administrativo como a “declaração do Estado ou de quem lhe faça as vezes, expedida em nível inferior à lei – a título de cumpri-la – sob o regime do direito público e sujeita a controle de legitimidade por órgão jurisdicional”.

 

As definições do conceito na doutrina suscitam alguns elementos comuns: (i) o ato administrativo constitui em declaração/manifestação do Estado ou de quem lhe faça as vezes; (ii) o ato administrativo se sujeita ao regime jurídico administrativo e, portanto, possui todas as prerrogativas e restrições próprias do poder público; (iii) produz efeitos jurídicos imediatos, sujeita-se à lei e é passível de controle judicial.

 

Quando ao ponto “iii”, a professora MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO entende que os atos da administração que não produzem efeitos imediatos não se enquadram no conceito aqui analisado. São os atos de opinião como pareceres e laudos, os atos enunciativos ou de conhecido como atestados, certidões e declarações, e os atos materiais como a reforma de um prédio ou a limpeza de uma rua.    


ATRIBUTOS DOS ATOS ADMINISTRATIVOS

 

Os atributos dos atos administrativos distinguem estes atos dos atos de direito privado, o que permite afirmar que se submetem ao regime jurídico de direito público.

 

Há a PRESUNÇÃO DE LEGITIMIDADE dos atos administrativos que se refere à conformidade do ato com a lei. Em decorrência desse atributo, presume-se até prova em contrário que os atos administrativos foram emitidos com observância da lei.

 

Há igualmente a PRESUNÇÃO DE VERACIDADE dos atos administrativos, que diz respeito aos fatos: presumem-se verdadeiros os fatos alegados pela administração, o que ocorre com certidões, atestados, declarações e informações dotadas de fé pública.

 

As justificativas dadas pela doutrina para atribuir a presunção de legitimidade e veracidade aos atos da administração envolvem a soberania do poder estatal, a necessidade de se assegurar celeridade aos atos administrativos e a sujeição da administração ao princípio da legalidade.

 

A IMPERATIVIDADE é outro atributo dos atos administrativos e por meio dele os atos do ente estatal se impõem a terceiros, independentemente de sua concordância. Note que a imperatividade também é uma das características que distingue o ato administrativo do ato privado já que este último não pode criar qualquer obrigação para terceiros sem a sua concordância.

 

Finalmente, a AUTOEXECUTORIEDADE é o atributo pelo qual o ato administrativo pode ser posto em execução pela própria Administração, sem a necessidade de intervenção do Poder Judiciário.

 

PODER DISCRICIONÁRIO E PODER VINCULADO

 

Os atos administrativos podem se dividir em atos discricionários e atos vinculados.

 

Quando o poder da administração é vinculado a lei não abre opções ao ente estatal. Diante de determinados requisitos a Administração deve agir de tal ou qual forma. Ademais, diante de um poder vinculado, o particular tem um direto subjetivo de exigir da autoridade a edição de determinado ato, sob pena de, não o fazendo, sujeitar-se à correção judicial. É o caso da edição de uma portaria de aposentadoria de um servidor que atingiu os requisitos legais.

 

Há outras situações em que a lei deixa certa margem de liberdade de decisão ao administrador diante do caso concreto. Neste caso os poderes da administração são discricionários porque a adoção de uma ou outra solução é feita segundo critérios de oportunidade, conveniência, justiça, equidade, próprios da autoridade, porque não definidos pelo legislador.

 

Note que discricionariedade não é o mesmo que arbitrariedade. A discricionariedade implica liberdade de atuação nos limites traçados pela lei e quando a administração ultrapassa esses limites a sua decisão passa a ser arbitrária e contrária à lei. Exemplos do poder discricionário são a autorização para o porte de armas e a exoneração de um ocupante de cargo em comissão.

 

Tradicionalmente se afirma que o controle judicial dos atos administrativo se dá apenas no caso dos atos discricionários quando o juiz ou tribunal analisará exclusivamente a legalidade do ato. Já os atos administrativos discricionários não comportariam análise de mérito do poder judiciário, já que a escolha baseada nos critérios de oportunidade e conveniência são exclusivos da administração, sob pena de violação ao princípio da separação de poderes.

 

Esta posição foi evoluindo nos tribunais: entende-se hoje que o judiciário deve verificar se, ao decidir discricionariamente, a autoridade administrativa não ultrapassou os limites da discricionariedade, devendo ser invalidados judicialmente atos promovidos com vício de desvio de poder, por irrazoabilidade ou desproporcionalidade, por inexistência de motivação, por infringência dos princípios da moralidade, segurança jurídica e boa fé.

 

Não se confunde portanto controle de mérito  dos atos administrativos pelo judiciário (indevido) e controle dos limites legais da discricionariedade no ato administrativo (devido).

 

BIBLIOGRAFIA

 

DI PIETRO, Maria Sylvia. “Direto Administrativo”. Ed. GEN Forense. 34ª Edição.     


Imagem: Dois Índios em uma canoa - Two Indians in a Canoe Biard, François-Auguste

Óleo sobre tela | (sem data) Musée du Quai Branly | Paris - França Dimensões da obra: 50,2 x 61,0 cm Século XIX

segunda-feira, 17 de maio de 2021

ATUAÇÃO DO ESTADO NA ORDEM ECONÔMICA

 A ATUAÇÃO DO ESTADO NA ORDEM FINANCEIRA – APORTES TEÓRICOS




 

É bastante conhecida a periodização, suscitada pelos doutrinadores do Direito Constitucional, referente  aos estágios evolutivos dos direitos fundamentais e sua positivação nas constituições.

 

Alguns falam em “gerações” e outros em “dimensões” dos direitos fundamentais.  

 

A Magna Carta Inglesa (1215) é o marco de surgimento dos direitos fundamentais, assegurando limitações ao poder do Rei, especialmente por parte de setores sociais então insatisfeitos com a cobrança de tributos pela realeza.

 

Posteriormente, a positivação dos direitos fundamentais encontra resposta na Declaração de Independência dos EUA (1776) e na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, proveniente da Revolução Francesa de 1789. Pode-se aqui falar de uma Primeira Geração dos direitos fundamentais baseadas na imposição de limites ao Estado e no resguardo dos direitos individuais, tidos como “naturais”.  

 

Estes direitos fundamentais de primeira geração são expressos nos 78 incisos do artigo 5º da CF/88.

 

Os direitos fundamentais de Primeira Geração tratam dos chamados direitos e liberdades “negativas” (limitação do poder do estado e positivação dos direitos individuais). Após experiências históricas como a Revolução Mexicana de 1917, a Revolução Russa de 1917 e a República de Weimar na Alemanha de 1919, observou-se o advento do que ficou conhecido como a 2ª Geração dos Direitos Fundamentais. Trata-se agora de direitos e liberdades “positivos”, de prestações do Estado mediante obtenção de recursos para a sua efetivação.

 

Estes direitos fundamentais de segunda geração são vistos no artigo 6º da CF/88, a saber:

 

Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  

 

Nestes marcos, ao se analisar a atuação do Estado na ordem financeira, deve-se levar em consideração que a Constituição Brasileira, seguindo as tendências históricas, não se limita a enunciar os limites do poder político, ou propor apenas direitos fundamentais intangíveis, mas também determina a prestação de serviços públicos pelo Estado e até mesmo a intervenção do ente estatal na economia.

 

Superando os primeiros modelos constitucionais que surgem no contexto do liberalismo (XVIII), nossa Carta Magna admite e, em alguns casos, determina a participação do Estado na ordem econômica e financeira, inclusive em regime de monopólio (artigo 177).

 

A regra geral de atuação do Estado na ordem econômica encontra-se no artigo 173, caput, da Carta Política:

 

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

 

A atuação direta do Estado na economia é portanto subsidiária.

 

Ela se justifica quando o setor privado não tiver capacidade de agir suficiente e satisfatoriamente, ou quando não tiver interesse em fazê-lo. Esta intervenção também pode ocorrer em situações de imperativos de segurança nacional ou relevante interesse coletivo.

 

A participação  dá-se necessariamente por pessoas jurídicas, geralmente as empresas públicas (exemplo: Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos) e Sociedades de Economia Mista  (exemplo: Banco do Brasil).

 

As empresas públicas e sociedades de economia mista sujeitam-se a regras próprias que  derrogam o regime puramente privado. Exemplos: a criação de subsidiárias e a participação em empresas privadas sujeitam-se a autorização legislativa (artigo 37, inciso XIX e XX); a contratação de pessoal permanente dá-se por meio de concurso público (artigo 37, incisos II, XI e XVII); e seus empregados e servidores podem responder por atos de improbidade administrativa (artigo 37 § 4º).

 

Importante anotar que a regra da responsabilidade civil extracontratual objetiva (artigo 37 § 6º) NÃO se aplica às empresas públicas e sociedades de economia mista que exerçam atividade econômica em sentido estrito. A regra é aplicável apenas às pessoas jurídicas de direito público e de direito privado que prestam serviços públicos.

 

A intervenção do Estado na economia não pode gerar desiquilíbrios,  favorecimentos que violem o regime de livre concorrência. Buscando garantir o equilíbrio econômico quando da intervenção do Estado na esfera econômica, a Constituição estabelece no seu artigo 173, § 2º, que “as empresas públicas e sociedades de economia mista não poderão gozar de privilégios fiscais não extensivos ao setor privado”.

 

Finalmente, além da atuação direta do Estado na economia, a CF/88 igualmente prevê a sua intervenção indireta, como agente normativo e regulador.

 

Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. (artigo 174).

 

Quadro – “Estudo Para Frei Caneca” – Antônio Parreiras - Óleo sobre tela - 1918

 

Paulo Marçaioli – OAB/SP 431.751 - Advogado em Valinhos/SP – (11) 953226494

segunda-feira, 10 de maio de 2021

PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA

 PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA




 

Os princípios oferecem coerência e harmonia ao ordenamento jurídico, procurando eliminar lacunas e contradições.

 

Os princípios surgem como parâmetros para a interpretação do conteúdo das demais regras jurídicas, apontando as diretrizes aos aplicadores da lei.

 

É conhecida a diferenciação que os juristas fazem entre regras e princípios.

 

Ambas são espécies de normas jurídicas.

 

As regras são normas de baixo grau de abstração, são mandamentos de definição e aplicam-se obedecendo a regra do “tudo ou nada”, ou seja, devendo o conflito entre elas ser resolvido pela eleição da regra aplicável ao caso concreto.

 

Os princípios são normas de alto grau de abstração, são mandamentos de otimização e, quando conflitantes, não se excluem por meio da regra do “tudo ou nada”, mas pela ponderação dos princípios à luz do caso concreto.

 

No direito administrativo, os princípios estão localizados no caput do artigo 37 da CF/88:

 

Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 19, de 1998)

 

Entende-se que o rol dos princípios administrativos do artigo 37 da CF/88 é exemplificativo, podendo-se mencionar outros princípios aplicáveis à administração pública como os princípios da supremacia do interesse público sobre o particular, da motivação dos atos administrativos, da autotutela, da razoabilidade, da proporcionalidade e da segurança jurídica.

 

Neste artigo mencionaremos três dos princípios constitucionais da administração pública.

 

PRINCÍPIO DA LEGALIDADE

 

O princípio da legalidade no âmbito do direito administrativo se refere à limitação legal dos poderes do Estado. Por força dos interesses que representa, a atividade administrativa está toda ela subordinada ao texto de lei. A legalidade, portanto, tem sentido diferenciado quando se fala de administração pública e quando se fala de interesses do particular. Enquanto aos particulares é conferia a possibilidade de fazer, na defesa de seus interesses e do seu patrimônio, tudo aquilo que a lei não proíbe, a administração, na defesa dos interesses da coletividade, só poderá fazer aquilo que a lei expressamente autoriza.  

 

Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;

 

PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE    

 

O princípio da impessoalidade impõe a posição neutra do Poder Público em relação aos administrados, só produzindo discriminações que se justifiquem em vista do interesse público. O princípio trata portanto da neutralidade em relação aos cidadãos e da proibição de discriminações gratuitas. O princípio se expressa na abertura de certame licitatório para contratação da proposta mais vantajosa e na realização de concurso público para escolha dos servidores, afastando-se o favorecimento gratuito de pessoas.

 

PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE

 

O princípio da publicidade se traduz no dever de a Administração manter transparência dos seus atos, incluindo-se a obrigação de oferecer, quando solicitado, todas as informações que estejam em seu banco de dados. A publicidade possibilita que a coletividade tenha ciência dos atos de governo como requisito para impor ou cobrar comportamentos.

 

De forma a regulamentar este princípio constitucional foi editada a Lei nº 12.527/2011 – Lei de Acesso a Informações Públicas.  

 

Paulo Marçaioli, advogado inscrito na OAB/SP 431.751. (11) 953226494. paulomarcaioli@gmail.com 


BIBLIOGRAFIA

 

CARNAÚBA, Aline Soares Lucena. “Resumo de Direito Constitucional”. JHMIZUNO ED. 2020.

 

Quadro – “Estudo Para Frei Caneca” – Antônio Parreiras - Óleo sobre tela - 1918

segunda-feira, 3 de maio de 2021

BREVES NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A TEORIA GERAL DA PROVA

 BREVES NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A TEORIA GERAL DA PROVA 



 


A noção de prova transcende o campo do direito. É certo que qualquer decisão humana é resultado de um convencimento produzido a partir do exame de circunstâncias e fatos, ou em outras palavras, da análise dos diversos elementos de prova.

 

Num sentido comum pode-se dizer que a prova é a demonstração da verdade de uma proposição.

 

Juridicamente, a prova se refere à atividade probatória, aos meios ou fontes de prova, ao procedimento pelo qual os sujeitos processuais produzem a prova e ao resultado deste procedimento, que é a convicção final e motivada do juiz.

 

A prova dos fatos se faz por meios adequados a fixa-los em juízo, devendo estes meios serem juridicamente idôneos. Nos termos do artigo 369 do CPC:

 

Código de Processo Civil - Art. 369.  As partes têm o direito de empregar todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, para provar a verdade dos fatos em que se funda o pedido ou a defesa e influir eficazmente na convicção do juiz.

 

Portanto, a legislação em vigor admite qualquer meio de prova, desde que moralmente legítimo e mesmo que não especificado pelo CPC, admitindo o ordenamento as chamadas “provas atípicas”.

 

O direito à prova é um direito fundamental, ou mais especificamente, o conteúdo do direito fundamental ao contraditório. O direito fundamental à prova envolve o direito à adequada oportunidade de requerer provas, o direito de produzir provas, o direito de participar da produção da prova, o direito de se manifestar sobre a prova produzida e o direito ao exame, pelo órgão julgador, da prova produzida.

 

As partes, assim, devem ter amplas oportunidades para demonstrar os fatos que alegam, influindo assim no convencimento do julgador.

 

O direito à produção da prova tem inclusive autonomia suficiente para ser objeto de um processo autônomo denominado “ação probatória autônoma” (artigo 381 do CPC), demanda cuja finalidade única é a produção de uma única prova.

 

A prova no processo civil suscita uma discussão interessante sobre a busca da “verdade” ou a “verdade” como objetivo da prova, pontos expressamente mencionados nos artigos 369 e 378 do CPC.

 

Ora nenhuma decisão pode ser considerada justa se estiver baseada numa reconstrução falsa dos fatos discutidos no processo. Nas lições de Fredie Didier Jr.:

 

“Vistas as coisas sob essa ótica, de que a verdade com que se deve preocupar a ciência e também o processo é sempre relativa e contextual -, parece-nos que a verdade há, sim, de ser buscada no processo. A par do seu escopo de pacificação social (resolução de conflitos), o processo constitui um método de investigação de problemas, mediante a participação em contraditório das partes e cooperação de todos os sujeitos envolvidos. Essa cooperação deve ter por objetivo alcançar a verdade como premissa para uma resolução justa do conflito posto, observadas, sempre, as limitações do devido processo legal (como a proibição de prova ilícita e a exigência de o juiz ater-se à prova produzida no processo). Esta é, ao menos, uma premissa ética que deve nortear a conduta dos sujeitos processuais. A verdade funciona como uma bússola, a guiar a atividade instrutória”.

 

A teoria dominante na doutrina estabelece que a finalidade da prova é produzir o convencimento do juiz, levando-o a alcançar a certeza necessária da decisão.

 

Este posicionamento tradicional da doutrina vem sendo ampliado com uma segundo finalidade da atividade probatória: permitir que as próprias partes se convençam ou não de que são efetivamente titulares do direito que afirmam ter. Ora, antes de ingressar com uma ação judicial, a parte naturalmente deve avaliar os elementos de que dispõe para sustentar sua demanda, bem como as provas que deverá produzir.

 

As provas, ao indicarem às partes as chances do seu êxito, irão, por consequência, determinar o seu comportamento no processo.

 

Entretanto, por conta da compreensão clássica da finalidade da prova, afirma-se que o destinatário da prova é o juiz. Adotando uma versão mais moderna do tema dos destinatários da prova, o Enunciado 50 do Fórum Permanente de Processualistas Civis estabelece: “Os destinatários da prova são aqueles que dela poderão fazer uso, sejam juízes, partes ou demais interessados, não sendo a única função influir eficazmente na convicção do juiz”.

 

Só faz sentido a produção de prova quando há controvérsia quanto aos fatos alegados pelos litigantes. Ademais, fatos irrelevantes para influir na decisão do juiz igualmente não são suscetíveis de prova. Finalmente, o artigo 374 do CPC estabelece que os fatos notórios, os fatos afirmados por uma e confessados pela parte contrária, os fatos admitidos no processo como incontroversos e os fatos em cujo favor milita presunção legal de existência ou veracidade, não dependem de prova.

 

BIBLIOGRAFIA

 

CURSO DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL – VOLUME 2 – Fredie Didier Jr., Paula S. Braga e Rafael A. de Oliveira. – 16ª Edição – Ed. JUSPODIVM.

 

Quadro – “O Sabá das Bruxas” (1789) de Francisco de Goya