segunda-feira, 28 de agosto de 2023

O CICLO DA CANA DE AÇÚCAR POR JOSÉ LINS DO REGO

O CICLO DA CANA DE AÇÚCAR POR JOSÉ LINS DO REGO



  


“A região canavieira da Paraíba e Pernambuco em período de transição do engenho para a usina encontrou no “ciclo da cana de açúcar” de José Lins do Rego a sua mais alta expressão literária.

Descendente de senhores de engenho, o romancista soube fundir numa linguagem de forte e poética oralidade as recordações da infância e da adolescência com o registro intenso da vida nordestina colhida por dentro, através dos processos mentais de homens e mulheres que representam a gama étnica e social da região”. (BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cultrix).

 

José Lins do Rego Cavalcanti (1901/1957) nasceu no Engenho Corredor numa cidade do interior da Paraíba chamada Pilar.


Fez os estudos secundários em Itabaiana e na Paraíba (atual João Pessoa).


Aos quatorze anos, muda-se para o Recife, concluindo o secundário no Ginásio Pernambucano, prestigioso colégio nordestino, por onde passaram Ariano Suassuna e Clarice Lispector.


Na sequência, em 1919, matricula-se na Faculdade de Direito do Recife, onde conhece e se relaciona com o escritor José Américo de Almeida, um pioneiro daquilo que ficou conhecido como a literatura modernista regionalista, da qual fizeram parte Graciliano Ramos, Jorge Amado e Rachel de Queiroz.


Durante a Faculdade de Direito, o nosso escritor conhece Gilberto Freire, de quem receberia o estímulo para se dedicar à arte voltada para as raízes locais. Não seria exagero dizer, nesse sentido, que os romances de José Lins do Rego fossem uma expressão literária daquela civilização do açúcar tão bem descrita por Freire no seu “Casa Grande e Senzala.” (1933).  


Também não seria incorreto dizer que José Lins do Rego tenha sido ao mesmo tempo um romancista e um memorialista. A leitura dos livros que compõe o seu “Ciclo da Cana de Açúcar” retrata diretamente experiências da vida do escritor.


Desde a sua infância no Engenho de Açúcar do Avô, situado no interior da Paraíba; na sua adolescência quando é matriculado num colégio de freiras longe dos domínios da Fazenda Santa Rosa; e o seu retorno, já formado em Direito, à casa do avô. Cada um desses períodos da vida de José Lins do Rego são retratados pela literatura memorialista através do personagem Carlos.


A partir de sua infância em “Menino de Engenho” (1932); passando pela adolescência com “Doidinho” (1933); e a chegada da vida adulta através de “Banguê” (1934).


Daí a importância particular de se conhecer a trajetória da vida de José Lins do Rego, que é indicativa de boa parte das suas obras. São histórias que retratam o período de decadência econômica e civilizatória dos senhores de engenho, cujos domínios são paulatinamente degradados em função do desenvolvimento produtivo instaurado pelas Usinas.


Antigos potentados e grandes senhores de engenho se vêm reduzidos à pobreza por dívidas contraídas junto aos usineiros, cujas fábricas têm uma produtividade incomparável com as antigas técnicas de produção de açúcar herdadas do período colonial.

  

Os usineiros se organizam em sociedades empresariais, emprestam dinheiro aos proprietários de terra com juros usurários e endividam até as famílias mais ricas, que se vêm compelida a entregar as suas terras aos seus credores. A concentração ainda maior de terras é reflexo daquela mudança de horizontes. É justamente este momento em que a grandeza dos engenhos de açúcar já  pertencia irremediavelmente ao passado que é objeto de descrição dos livros de Lins do Rego.  

 

Efetivamente, o escritor presenciou em vida um mundo prestes a desabar: e a decadência da tradicional civilização do açúcar, cujas origens remetem aos primórdios do período colonial, é incorporada à visão de mundo do escritor e do personagem que o representa nos romances. Depois de quase três séculos de predomínio econômico no Brasil, a economia do açúcar decai de forma vertiginosa já em meados do século XIX, sendo substituído pelo café produzido no vale do Paraíba e no interior de São Paulo.

 

A decadência é algo que também aparece nitidamente em algumas histórias de Graciliano Ramos, escritor que mantinha vínculo de amizade com Lins do Rego. Há um evidente paralelo entre o velho senhor de engenho José Paulino do engenho de Santa Rosa (Lins do Rego) e Paulo Honório de São Bernardo (Ramos): o primeiro retratado por Lins do Rego de forma mais lírica e poética e o segundo retratado por Graciliano Ramos de forma mais árida e distante (não necessariamente marcada pela memória afetiva, como no caso do autor de “Fogo Morto”).

 

USINA

 

Usina é o quarto e último livro do ciclo da cana de açúcar. Foi publicado no ano de 1936 e dedicado ao mencionado Graciliano Ramos e ao editor José Olympio. Ambos plenamente relacionados àquele conjunto de escritores da chamada geração modernista de 1930, cujas histórias descrevem questões existenciais e atemporais aclimatadas na região nordestina.

 

O livro dá continuidade à história da Fazenda Santa Rosa que passa à direção de Dr. Juca, filho do velho senhor de engenho José Paulino e tio de Carlos Melo, o bacharel que fracassara no seu intento de presidir os trabalhos.

 

Neste volume vê-se a consolidação de um movimento histórico já sinalizado em “Banguê”: a decadência do engenho de açúcar e do mundo patriarcal a ele vinculado e a constituição da “Usina”, construída pelo Dr. Juca e que enseja um novo ritmo de trabalho ditado pelas máquinas.

 

Na usina a terra é tomada meramente como capital ao passo que no engenho a terra é um bem simbólico imobilizado por grupos familiares por gerações.

 

A nova organização do trabalho dá-se em bases capitalistas substituindo o anterior modo de produção que alguns estudiosos da História do Brasil caracterizaram como feudalismo. Sai de cena o Senhor de Engenho que preside os trabalhos, administra a jurisdição, impõe castigos, concede o perdão e dá a benção. Entra em cena o Capitalista, o dirigente impessoal e frio como suas máquinas, que descarta famílias que lá viviam por gerações como meras peças sem serventia de uma gigante engrenagem.     

 

A reestruturação produtiva envolve a conversão dos roçados de alimentos dos trabalhadores em vastas extensões de plantação de cana. Tudo o que era terra agricultável, nos tempos da usina, devem ser aproveitadas exclusivamente para o plantio de cana. Há mesmo o desvio dos rios onde os camponeses pobres irrigavam sua terra para subsistência para incrementar a produção industrial do açúcar. Antes o pobre tinha água para beber e agora passam fome e sede na caatinga. E é mesmo comum o sentimento de nostalgia dos tempos de José Paulino, especialmente dentre os trabalhadores do eito. Um desejo de retorno a um mundo perdido para sempre.

 

A remuneração passa a ser feita por meio de vales que são trocados por alimentos junto a um barracão controlado pelo usineiro, num regime de servidão por dívidas que mantém situação de exploração em certos aspectos ainda pior do que o dos tempos da escravidão.

 

Num primeiro momento, Dr. Juca alcança um grande êxito comercial ao transformar o banguê de seu avô José Paulino na Usina Bom Jesus. Nessa bonança, o capitalista leva uma vida de  pouca sobriedade e moderação nos seus gastos, direcionados a futilidades. Frequenta uma casa de prostitutas em Recife onde se relaciona com mulher com quem gasta uma fortuna com presentes e viagens. Adquire veículos de luxo e gasta muito contos de réis só com gasolina.

 

Ambicioso, Dr. Juca toma uma iniciativa arriscada: aceita hipotecar suas terras em troca de empréstimo para aquisição de máquinas e tecnologia para a expansão da produção. Para tanto, faz negócio com um americano que alega ter colhido bons frutos com a restruturação tecnológica em plantações de açúcar de Cuba.

Os planos de Dr. Juca fracassam, as máquinas não funcionam como o esperado, torna-se necessário contratar especialistas mediante caríssima remuneração sem qualquer resultado.

Situação que se agrava e leva à queda da Usina após a crise dos preços do açúcar.  


Na história, a usina figura como um ser vivo, com vida própria e que vai desmantelando todo um mundo constituído através da tradição. Esse ser vivo encontra paralelo com a história de seu dono, o Sr. Juca. Ambos passam por um processo rápido (cerca de três anos) de ascensão e queda abrupta. No caso da Usina de Bom Jesus, o seu abandono após o endividamento e a queda dos preços no mercado. E o Dr. Juca após uma doença e a frustração pessoal decorrente do fracasso do seu empreendimento. Usina e Dr. Juca caminham paralelamente do ápice à queda, gradativamente caminham em direção a uma morte lenta e dolorosa.

 

Ao mesmo tempo, a Usina se impõe como uma força natural parecida com uma grande tempestade, que destrói casas, igrejas, roçados e rios para impor a monocultura industrial do açúcar.


BIBLIOGRAFIA 


"Banguê" - José Lins do Rego - Ed. Global 

"Usina" - José Lins do Rego - Ed. Global 


sexta-feira, 4 de agosto de 2023

“A Pena e a Lei” - Ariano Suassuna

 Resenha Livro - “A Pena e a Lei” – Ariano Suassuna – Editora Nova Fronteira


 

“Se cada qual tem seu crime,

Seu proveito, perda e dano,

Cada qual seu testemunho,

Se cada qual tem seu plano,

A marca, mesmo da peça

Devia ter sido essa

De Justiça por Engano!”.

 

A primeira peça teatral escrita por Ariano Suassuna foi uma tragédia chamada “Uma Mulher Vestida de Sol” (1947) redigida quando o autor tinha 20 anos e ainda era estudante de Direito da Faculdade de Recife.

 

Depois de formado, Suassuna retornou à cidade de Taperoá para cuidar de um problema no pulmão. Era uma pequena comarca situada no sertão da Paraíba onde passara a infância: lá retoma o contato com a cultura popular, o que iria marcar a sua produção literária subsequente.

 

Deixando de lado a tragédia, o escritor dedicar-se-ia às comédias que o deixaram famoso. E dentre elas a mais famosa sem sobra de dúvidas foi o “Auto da Compadecida” (1955).

 

As aventuras de João Grilo e Chicó são conhecidas e amadas pelo povo brasileiro, não só por conta das três versões cinematográficas produzidas no país, mas especialmente pela capacidade do escritor de muito bem captar aspectos da psicologia do brasileiro. O humor com que encaramos os problemas da vida. A esperteza e sagacidade que orientam a ação dos personagens quando confrontados com situações extremas. Um sentimento religioso mestiço, envolvendo santos da igreja católica que nos aparecem em sua forma mais íntima e humana, conversando como gente, inclusive apresentando um Jesus Cristo negro de pele. A não presença de heróis, mas de homens com as suas fragilidades e pecados, apenas compreensíveis e perdoáveis pela misericórdia divina.

 

Estas características seriam posteriormente sintetizadas pelo Movimento Armorial (1970) idealizado pelo escritor para propor realização de uma arte erudita brasileira a partir da cultura popular.

 

A peça “A Pena e a Lei” (1957) retoma o fio condutor do “Auto da Compadecida” e suscita a ligação entre o humano e o divino novamente através do cômico. Nas palavras do escritor paraibano, trata-se uma “Tragico-comédia-lírico-pastoril”, qualificação que pode ser estendida para outros trabalhos de Suassuna. E, nessa peça em particular, a descrição de personagens que enfrentam num momento a justiça dos homens para, depois, confrontarem-na com a justiça divina.

 

“A Pena e a Lei” foi concebida para ser apresentada como os espetáculos de mamulengo nordestinos: são aqueles conhecidos fantoches de pano que servem de atores e são conduzidos por varas e barbantes por pessoas que dão voz e movimento aos bonecos.

 

Como se trata de uma espécie de ventrículo, consta que o nome “mamulengo” foi uma adaptação da expressão “mão mole”.

 

O primeiro ato da peça dá-se com os atores de mamulengo: é a fase propriamente terrena da peça em que os personagens são apresentados em suas relações puramente humanas. Surge-nos um triângulo amoroso envolvendo Marieta, o delegado Rosinha e o fazendeiro Vicentão. Ambos prometem travar um duelo em nome do coração da mulher desejada. Ocorre que o subtítulo da peça é “a inconveniência de ter coragem”: ambos se arvoravam como os mais valentes e corajosos da vila de Taperoá mas, estimulados e manipulados pelo negro Benedito (que também ama Marieta), são desmascarados na frente da dama já que ambos fogem do combate pelo medo da morte. E Benedito, pouco antes de tomar a mão da donzela pela sua esperteza, se vê preterido por Pedro, indicado que a sua mesma vivacidade derrotou o oponente mas foi derrotada pelo acaso.

 

O segundo ato da peça propõe ser uma espécie intermediária entre o mamulengo e o teatro ordinário feito por homens de carne e osso. Agora, os personagens representarão como gente, mas imitando bonecos, para indicar que aqui na terra somos seres grosseiros, mas com algo de divino dentro de si.

 

Neste ato vê-se o julgamento de um roubo (ou melhor diria ser um furto) de um novilho. A denúncia do crime foi feita pelo fazendeiro Vicentão que acusa um cabra seu chamado Joaquim de ter-lhe tomado o animal. Na delegacia, acusação e defesa formulam suas alegações e suscitam testemunhas. O julgamento do delegado, conforme a justiça dos homens, é comicamente corrupto: a opinião do juiz Rosinha varia de acordo com agrados em dinheiro e bens que lhe são concedidos pelas partes litigiosas.    

 

E o terceiro ato da peça corresponde ao momento do julgamento dos homens perante Deus, de forma muito parecida com os últimos instantes do “Auto da Compadecida.”. Todos os personagens estão mortos e se vêm na presença do filho de Deus, que no caso é ninguém menos do que o dono do mamulengo. Por outro lado, nesta parte os atores deixam de ser bonecos e comportam-se totalmente como pessoas. E ao invés de serem julgados, em seu desespero diante da notícia da morte, acusam Deus por todos os maus que passaram em vida.

 

Novamente a temática da justiça aparece, agora não mais institucionalizada na sociedade dos homens mas  em sua dimensão atemporal e perfeita. Deus é acusado pelos homens e aceita ser colocado na condição de acusado em um processo judicial celeste.

 

E para resolver a lide, formula perguntas aos homens na condição do seu próprio acusador:

 

- Vale a pena fazer parte da vida, sabendo que a morte é inevitável?

- Vale a pena ser mergulhado nesse espetáculo turvo e selvagem, sabendo que o mal assim marca o sol do mundo?

- Vale a pena viver, sabendo que a vida é um dom obscuro, que nunca será inteiramente entendido e captado em seu sentido enigmático?

 

E, por fim, Deus questiona a todos: se pudessem viver viveriam novamente? Pergunta a que todos respondem afirmativamente acarretando a sumária absolvição de Deus.