quarta-feira, 29 de junho de 2016

“Os Grandes Líderes – Napoleão” – Leslie McGuire

“Os Grandes Líderes – Napoleão” – Leslie McGuire



Resenha Livro 227 - “Os Grandes Líderes – Napoleão” – Leslie McGuire – Ed. Nova Cultural

Biografia é palavra cujo prefixo “Bio” significa vida e “grafia” remete à ideia de escrever, redigir. Trata-se portanto de livros voltados a descrever a história de vida de indivíduos.

Podemos classificar a Biografia como uma espécie do gênero História. E dentre as Biografias, verificamos distintas sub- espécies: há as Biografias autorizadas, em geral realizadas em parceria com o biografado e não raro com omissões acerca de detalhes embaraçosos ou comprometedores; há as biografias não autorizadas, que eventualmente são publicadas quando seu protagonista ainda está vivo, ensejando uma interessante discussão acerca da ponderação entre o direito à intimidade e proteção à imagem e, por outro lado, à liberdade de expressão; há as Biografias históricas stricto senso, com maior densidade teórica e senso crítico, que não só percorre a vida do biografado mas o situa em seu tempo, contextualiza o indivíduo na história; e há Biografias do tipo enciclopédicas, que são mais informativas, remetendo o leitor às datas e fatos relevantes sem um aprofundamento teórico e uma interpretação da história quanto aos seus sentidos.

A coleção “Os Grandes Líderes” da Nova Cultural pode ser classificada nesta última sub-espécie. Em que pese portanto a ausência de uma análise mais profunda acerca do fenômeno da era Napoleônica, a leitura da obra ainda se faz relevante: a rica diversidade de fontes e dados é um ponto de partida essencial para situar um posterior estudo sobre o sentido daquele fenômeno histórico.

Importa ressaltar que a era Napoleônica teve influência decisiva nos rumos da história do Brasil. Durante a chamada Guerra Peninsular, com a deposição do Rei de Espanha em 1808 por imposição de Napoleão e sua substituição por seu Irmão José, diante do bloqueio continental imposto pelo Imperador contra a Inglaterra e com as tropas francesas às porta das fronteiras Portuguesas, não restou outra alternativa à coroa de Portugal que não sua fuga ao Brasil – pela primeira vez no mundo uma colônia seria a sede de uma Coroa Europeia e o Brasil seria elevado à condição de Reino Unido de Portugal e Algaveres. Há no Brasil o fim do exclusivismo comercial o que na prática significa o fim do regime colonial, a abertura dos portos às nações amigas, a criação da imprensa Régia, a Fundação do Banco do Brasil, dentre outras mudanças significativas.

Napoleão nasceu na ilha de Córsega, situada no Mar Mediterrâneo, equidistante da Itália e França. A ilha tem um dialeto próprio e naquela época, apesar de sua proximidade com a Itália, pertencia à França. Sua família é de origem pequeno burguesa – seu pai Carlo é advogado. Aos 10 anos, Napoleão ingressa na Escola Militar de Brienne no norte da França. A sua origem social modesta, o seu sotaque estrangeiro e sua aparência física inusitada fizeram com que o futuro imperador encontrasse dificuldades de relacionamento social em Brienne e posteriormente na Escola Militar Real de Paris, para onde é transferido em outubro de 1784.

“(....) Bonaparte tinha o rosto emoldurado por longos cabelos pretos que pareciam nunca ter sido penteados. O uniforme era-lhe grande demais, assentando  desajeitadamente em sua figura de 1,58 m; suas botas, sem nenhum brilho, tinham os saltos gastos e ficavam tão grandes em suas pernas magras que pareciam pertencer a outra pessoa, e seu francês soava com um sotaque estranho”.

1789 é o ano da tomada de Bastilha, o ano um da Revolução Francesa. Suas causas decorrem da opressão brutal sobre a qual os camponeses estavam submetidos pela aristocracia e pelo clero, além da burguesia que, em ascensão, não admitia ser excluída do poder. É dentro do contexto das jornadas revolucionárias que Napoleão, formado como oficial de artilharia, irá, por etapas e numa escalada vertiginosa, ascender ao poder.

A primeira etapa corresponde ao cerco de Toulan, quando nosso protagonista tinha 24 anos. Tal cidade, localizada no sul da França, estava tomada pelos contra-revolucionários monarquistas, apoiados por tropas Inglesas.

“O capitão Bonaparte começou a estudar o posicionamento de sua artilharia, e se deu conta de que todo o cerco estava muito mal organizado. Os canhões seriam inúteis a menos que se fizessem algumas mudanças importantes. Ele se propôs a efetuar tais mudanças e, como ninguém mais parecia entender tanto quanto ele de artilharia, sua proposta foi aceita”.

O cerco aos Ingleses foi exitoso e Bonaparte teve seu primeiro reconhecimento como dirigente militar eficiente. Sua reputação seria elevada em 5 de Outubro de 1785 com uma exitosa repressão a uma insurreição realista (monarquista) que salvou a Convenção Nacional. Desde então foi nomeado subcomandante.  

A Revolução Francesa granjeava inimigos externos em função das possíveis repercussões do movimento contra as demais coroas europeias. Bonaparte foi assim recrutado para a Missão Italiana cujo pano de fundo era o combate à Áustria. As cidades italianas estavam sob domínio do Império Austríaco e receberam as tropas de Napoleão como libertadores do jugo imperial:

“Os cidadãos de Milão receberam Napoleão jubilosos e de braços abertos. Ele, então, esvaziou os cofres da cidade e, em seguida, marchou em direção ao Sul. Conquistou o grande Ducado da Toscana, os ducados de Módena e Parma, e os Estados papais de Bolonha e Ferrara. Essa intensa atividade ocupou-o durante um mês inteiro e lhe permitiu ficar de posse de grandes quantidades de dinheiro, alimentos, cavalos, munições e armamentos. Napoleão também tomou posse de grandes tesouros culturais destes Estados, enviando para a França muitas pinturas de valor incalculável e inúmeras outras obras de arte”.

Não é a nossa intenção aqui reproduzir toda a trajetória da vida de Napoleão, mas pincelar algumas passagens e tecer algumas reflexões.

Desde a Missão Italiana, há uma solução de continuidade em ascensão com a Missão no Egito, com o fito de combater a Inglaterra e com importante importância cultural no sentido de descobertas arqueológicas por uma missão especial junto às tropas francesas; o golpe do 18 de Brumário que põe termo ao Diretório e instala o consulado, fazendo de Napoleão o 1º Consul aos 30 anos de idade; o ano de 1804 em que o Parlamento faz de Napoleão Imperador, um título hereditário. E momentos de descenso como a invasão da Rússia e a batalha de Borodino que custaram aos franceses centenas de milhares de Morte; posteriormente o exílio, primeiro em Elba, durante 10 meses, e depois em Santa Helena, onde falece no ano de 1821.

O que importa perquirir aqui é qual o sentido mais geral da era Napoleônica? Numa boa síntese, aponta Marx:

“Napoleão criou dentro da França as condições que tornaram possível a livre concorrência para o desenvolvimento, a redistribuição da terra a ser explorada e a possibilidade de pôr em uso a força produtiva da nação, recentemente liberada; fora dos limites da França, acabou com as instituições feudais.”


segunda-feira, 27 de junho de 2016

“Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro

“Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro



Resenha Livro 226 - “Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro

O escritor e jornalista mineiro Ruy Castro deve ter a maior parte de sua reputação nas letras decorrente de seu trabalho como biógrafo. Escreveu sobre a vida de Nelson Rodrigues (“O Anjo Pornográfico” – 2002) e dois trabalhos que lhe renderam o prêmio Jabuti de Livro do Ano: biografias sobre Carmem Miranda (“Carmem – Uma Biografia” – 2005) e Garrincha (“Estrela solitária – Um brasileiro chamado Garrincha” - 1995). Tal experiência, somada aos trabalhos particulares que remetem à cidade do Rio de Janeiro em “Chega de Saudade” (1990) sobre a Bossa Nova e “Carnaval no Fogo” (2003) sobre supracitada cidade, remetem diretamente ao livro “Era no Tempo do Rei”.
              
Trata-se de um gênero literário criativo e particular, uma mistura de ficção e história, um romance que se passa no Rio de Janeiro, em 1810, dois anos após a vinda da família real portuguesa ao Brasil, com o fato político que, nos termos do historiador Caio Prado Jr., põe termo ao nosso período colonial: a elevação do país à condição de reino unido à Portugal e Algarves; a abertura dos portos às nações amigas e o fim do regime colonial baseado no exclusivismo comercial; e iniciativas modernizadoras desde a criação da biblioteca nacional, da imprensa régia e da fundação do Banco do Brasil.

Todos estes elementos históricos surgem como pano de fundo de uma história cuja forma é contada em forma de romance. E sintomaticamente os dois personagens principais são retirados, um da história, e outro do romance “Memórias de Sargento de Milícias” (1852-53) de Manuel Antônio de Almeida. D. Pedro, príncipe regente, então com doze anos e Leonardo, filho do português e meirinho aqui no Brasil Leonardo Pataca, os dois retratados como dois peraltas. O que os igualam é a capacidade de dar nó e pingo d’água em adultos e crianças com diabruras que o colocam como pivetes muito acima da média: o que o separam é a origem social, o que, como se observa frequentemente, não é lá algo impeditivo para duas crianças brincarem, divertirem-se: após se conhecerem, têm toda a cidade do Rio de Janeiro como cenário de suas aventuras.

Os limites tênues entre ficção e história vão se extrapolando adiante com personagens reais como Carlota Joaquina, rainha e tratada como vilã, desleal para com o generoso bonachão D. João VI., seu marido, disposta a conjurar junto a súditos ingleses com quem mantém relações extraconjugais, com o olho na restauração do trono em Espanha pós napoleão e nas Províncias Cisplatinas – sua predileção pelo filho D. Miguel em detrimento de D. Pedro teve efetiva repercussão nos fatos históricos reais e mais uma vez nos deparamos com esta interface entre história e literatura.

“Não que Pedro tivesse alguma coisa contra os ingleses. Ao contrário, pelo que ouvia dos mais velhos, os franceses é que eram os vilões do novo século, os republicanos insidiosos, os vampiros da realeza. Com a falta de cerimônia com que, até bem pouco, guilhotinavam as cabeças coroadas, ninguém de sangue azul estava salvo na Europa. O festival de cabeças cortadas terminara, mas, agora, a França caíra nas mãos de um homem chamado Napoleão, que se autoproclamara imperador e estava ameaçando abocanhar todas as casas reais – a própria Família Real inglesa, para se garantir, botara as barbas de molho. É verdade que, além da vaidade de pretender dominar o mundo, Napoleão tinha razões pessoais para tentar se espalhar pela Europa e pelo norte da África”.

 E para além dos fatos políticos e personagens oficiais que remetem ao que historiadores chamam de história oficial, o romance é rico em descrições vivas de costumes, festas típicas, os beija-mãos junto ao Imperador, a riqueza paisagística dos bairros, sendo perceptível a preocupação do biógrafo em retratar o Rio do século XIX efetivamente conforme a cidade se estabelecia, reproduzindo o nome antigo dos bairros, ruas e morros. O carnaval nos é relatado de forma a nos conduzir a uma festa efetivamente popular, com ocupação de rua e práticas interessantes como a borradeira de água de pimenta nos transeuntes ou ainda pior: a prática do entrudo em que algum espertalhão sorrateiramente jogava de cima de algum prédio farinha, ovo, ou a combinação de ambos nos passantes. Com alguma frequência ocorria alguma briga entre folião e alguém pego de surpresa e dentro da narrativa a segurança na cidade era levada a cabo pelo temido Major Vidigal, memorável personagem do “Memórias”.

Outro fato político bastante comentado pelos historiadores diz respeito às grandes mudanças produzidas na cidade do Rio de Janeiro com a vinda da Família Real. Aquelas mudanças urbanísticas e paisagísticas são frutos de um fato único em toda a história mundial: pela primeira vez uma colônia passaria a ser a sede de uma corte europeia.

“Muitos desses hábitos, como o dos enterros noturnos e em cova rasa, não demorariam a ficar esquecidos no passado carioca. A vinda da Família Real começava a mudar a face do Rio. O intendente Paulo Fernandes Viana, encarregado geral da cidade, estava disposto a acabar com o ranço colonial e, em dois tempos, fazer do Rio uma capital digna de um reino, apta a receber as embaixadas estrangeiras, os fidalgos de outras cortes e a elite dinheirosa da metrópole – mesmo porque, agora, o Rio é que era a metrópole.

Viana parecia picado pelo bicho-carpinteiro. Começou por obrigar os proprietários a derrubar as gelosias de suas janelas – as platibandas de treliça que isolavam as casas do que se passava na rua e contribuíam para o ar abafado e doentio das habitações. No que as janelas se escancararam, o sol entrou pela primeira vez em suas salas e revelou, inclusive, as belas mulheres que elas escondiam”.

Pode ser bastante rica esta combinação de ficção e história reproduzida em “Era no Tempo do Rei”. No âmbito do ensino da história, em tempos em que o incentivo à leitura torna-se um ato militante, este tipo de trabalho pode ser fonte de estudos para aprendizado de história, em especial para jovens – e a ser estudado enquanto método para desenvolvimento a ser trilhado em outras obras acerca da história do brasil, rica também em vasta literatura, de forma a fazer com que a aprendizado da história também possa ser cativante e divertido. Esta é só uma possibilidade elencada aqui a título de exemplo. Que apareçam mais obras com esta perspectiva nas letras brasileiras.      

terça-feira, 14 de junho de 2016

“Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz

“Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz




Resenha Livro  225 - “Memorial de Maria Moura” – Rachel de Queiroz – Coleção Folha Grandes Escritores Brasileiros
               
                
A escritora cearense Rachel de Queiroz (1910 – 2003) pode ser descrita como um dos principais expoentes da Segunda Fase do Modernismo Literário brasileiro. Seu romance de estreia, “O Quinze” de 1930 (ver resenha em: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2011/03/o-quinze-rachel-de-queiroz.html) , tem a mesma relevância pioneira de autores e obras que marcaram época como “Vidas Secas” de Graciliano Ramos, “Fogo Morto” de José Lins do Rego e “A Bagaceira” de José Américo de Almeida.

O que o unifica todos estes autores ao ponto de se poder falar numa escola literária é a tendência às referências paisagísticas e aos contextos dos romances que tiveram como foco o regionalismo, à crítica social, às menções aos problemas da seca, das imigrações, das relações patriarcais e de domínio entre coronéis, seus pátrio poder, agregados e escravos. De certa maneira a 2ª fase do Modernismo é um aprofundamento mesmo do modernismo de vanguarda de 1922 que já tinha em suas cogitações a preocupação por uma arte essencialmente nacional, em sua forma e conteúdo.

A decorrência lógica deste norte seria uma imersão pelos vastos recantos do interior do Brasil, com destaque especial para o sertão nordestino. Um aspecto interessante que também perpassa a obra de todos aqueles autores é um novo estatuto humano dado aos personagens tão simples e humildes que protagonizam as histórias regionalistas. Pela primeira vez, pode-se falar que as narrativas fazem verdadeira imersão sobre a consciência seja de um Luís da Silva de “Angústia” ou seja mesmo da criança “Doidinho” do romance de mesmo nome de José Lins do Rego: o que se pontua aqui é que a pobreza e os personagens a ela submetidos não são vistos como algo pitoresco como num “Memória de Sargento de Milícias” de Manuel Antônio de Almeida ou de uma forma superficial, sem uma abordagem profunda de suas cogitações, esperanças e desenganos, como num “O Cortiço” de Aluísio de Azevedo. Basta recordarmos mais uma vez o personagem Luís da Silva de “Angústia”, um personagem afundado na miséria como um burocrata de terceira categoria que é assolado por sentimentos de desejo sexual amoroso frustrados, culpa, ódio e remorso, remetendo ao memorável estudante Rodion Raskólnikov de “Crime Castigo” do escritor russo F. Dostoiévski.   

“Memorial de Maria Moura” foi escrito em 1992, num momento de plena maturidade artística de Rachel de Queiroz. Vai além de um mero romance regionalista e nas suas 600 e poucas páginas traça uma verdadeira epopeia na qual relata diversas histórias que se entrelaçam tendo como fundo paisagístico o sertão nordestino e um momento histórico que podemos especular durante o século XIX antes da abolição da Escravatura.

A personagem Maria Moura teve como inspiração, segundo o prefácio, Elisabeth I, rainha da Inglaterra entre 1533-1603, e sua trajetória dentro de um contexto radicalmente violento, baseado no domínio regional de coronéis sem qualquer jurisdição estatal, demonstra a bravura de uma sinhazinha que, devido às circunstâncias da vida, transforma-se numa líder de um bando fortemente armado de cangaceiros que viria a instalar uma casa forte em terras distantes em meio ao sertão, tornando-se temida e respeitada por léguas a fio.

Maria Moura era órfã de pai e morando no Limoeiro com sua mãe, a vê se relacionando com o oportunista Liberato. A certa altura, descobre sua genitora enforcada no quarto numa cena simulando suicídio. Depois descobre que tudo fora obra do padrasto com o fim de adquirir a herança da Fazenda. A descoberta da mãe enforcada revela uma cena dramática de forte impacto:

“Eu que descobri. Minha mãe morta, enforcada no armador da parede. Em redor do pescoço, um cordão de punho de rede, os pés a um palmo do chão, o rosto contra a parede. Tombado no tijolo, o tamborete em que ela subiu para acabar com a vida.

Vendo aquilo, eu soltei um grito que me rasgou a garganta e o peito. E me agarrei com Mãe: ela já estava fria, o corpo duro. Gritando sempre, abraçada com ela, me parecia que eu estava afundando num poço sem fim, na escuridão, apavorada”.

A pequena Sinhá desde cedo já começa a revelar a sua força e seduz um criado da fazenda com algumas mentiras para que o mesmo mate Liberato. A execução é bem sucedida. Como depois o criado seduzido passa a cobrar casamento de Maria Moura, recorre a João Rufo, amigo da casa e numa tramoia por meio de um plano muito bem executado, mais uma execução é cometida.
Posteriormente, Tonho e Irineu (primos mal intencionados de Moura) comparecem à casa de Limoeiro – entendem que com a morte da Mãe, fazem jus à propriedade do Limoeiro. Ameaçam-na expulsar de casa. E agora num plano ainda mais extraordinário, enquanto espera a vinda dos homens, Maria Moura espalha fogo por toda a residência (para não deixar um vintém aos oportunistas) e a partir daí parte em fuga com um punhado de homens com algumas poucas armas em direção à Serra dos Padres, onde seu avô contava haver terras de seu dote.

Começaria a partir daqui a epopeia supracitada em que o leitor é levado a conhecer vilarejos e ranchos semi-abitados e abandonados, como se dava a viagem de tropeiros numa época em que não havia estradas e os meios de comunicação para o transporte de bens mínimos como a carne e o sal, da forma mais insalubre, casos verossímeis de pessoas que viviam tão isoladas do mundo no sertão, colhendo água do açude ou fios de água e caçando preá para sobreviver, tal qual índios: um roteiro que interessa não só a apreciação literária, mas o conhecimento da história e geografia do Brasil.

Voltando à Maria Moura, seu bando executa roubos à beira da estrada e com o rendimento das ações adquire cavalos e munições. A protagonista para se fazer respeitada usa roupa de homem e corta seus cabelos curtos, não admite intimidade com seus cabras, adota um forte regramento de hierarquia e efetivamente adquire o respeito deles, e dos demais que se somam ao seu grupo. Trata-se aqui de um verdadeiro empoderamento feminino que envolve acima de tudo a capacidade de liderar, sem hesitar e vacilar por parte de “Dona Moura” (que, assim gostava de ser chamada). Um dos traços de personalidade da protagonista certamente era a valentia. Como discutimos em “Um Certo Capitão Rodrigo” de Érico Veríssimo, não se trata de uma valentia desprendida e inconsequente como do capitão: Dona Moura nas suas cogitações pessoais, revela medos pessoais, mas a valentia aqui significa não a ausência de medo, mas agir a despeito do medo.

“Minha primeira ação tinha que ser a resistência. Eu juntava meus cabras – os três rapazes, João Rufo (que em tempos antes já tinha dado suas provas). Os dois velhos podiam servir para municiar as armas, na hora da precisão. Eu queria assustar o Tonho. Nunca se viu mulher resistindo à força contra soldado. Mulher, para homem como ele, só serve para dar faniquito. Pois comigo eles vão ver. E se eu sinto que perco a parada, vou-me embora com meus homens, mas me retiro atirando. E deixo um estrago feio atrás de mim. Vou procurar as terras da Serra dos Padres – e lá pode ser para mim outro começo de vida. Mas garantida com os meus cabras. Para ninguém mais querer botar o pé no meu pescoço; ou me enforcar num armador de rede. Quem pensou nisso já morreu”.

Sabe-se que Rachel de Queiróz tinha restrições ao movimento feminista de seu tempo. A seu turno, “Memorial de Maria Moura”, além dos interesses históricos e sociológicos referentes à narrativa literária regionalista, mostra-nos um outro viés de empoderamento feminino positivo, diferente do movimento feminista, este negativo, que rebaixa a mulher à vítima, trata-a como hipossuficiente. São muitos os motivos, portanto, para conhecer esta obra.