segunda-feira, 27 de junho de 2016

“Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro

“Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro



Resenha Livro 226 - “Era no Tempo do Rei – Um Romance da chegada da Corte” – Ruy Castro

O escritor e jornalista mineiro Ruy Castro deve ter a maior parte de sua reputação nas letras decorrente de seu trabalho como biógrafo. Escreveu sobre a vida de Nelson Rodrigues (“O Anjo Pornográfico” – 2002) e dois trabalhos que lhe renderam o prêmio Jabuti de Livro do Ano: biografias sobre Carmem Miranda (“Carmem – Uma Biografia” – 2005) e Garrincha (“Estrela solitária – Um brasileiro chamado Garrincha” - 1995). Tal experiência, somada aos trabalhos particulares que remetem à cidade do Rio de Janeiro em “Chega de Saudade” (1990) sobre a Bossa Nova e “Carnaval no Fogo” (2003) sobre supracitada cidade, remetem diretamente ao livro “Era no Tempo do Rei”.
              
Trata-se de um gênero literário criativo e particular, uma mistura de ficção e história, um romance que se passa no Rio de Janeiro, em 1810, dois anos após a vinda da família real portuguesa ao Brasil, com o fato político que, nos termos do historiador Caio Prado Jr., põe termo ao nosso período colonial: a elevação do país à condição de reino unido à Portugal e Algarves; a abertura dos portos às nações amigas e o fim do regime colonial baseado no exclusivismo comercial; e iniciativas modernizadoras desde a criação da biblioteca nacional, da imprensa régia e da fundação do Banco do Brasil.

Todos estes elementos históricos surgem como pano de fundo de uma história cuja forma é contada em forma de romance. E sintomaticamente os dois personagens principais são retirados, um da história, e outro do romance “Memórias de Sargento de Milícias” (1852-53) de Manuel Antônio de Almeida. D. Pedro, príncipe regente, então com doze anos e Leonardo, filho do português e meirinho aqui no Brasil Leonardo Pataca, os dois retratados como dois peraltas. O que os igualam é a capacidade de dar nó e pingo d’água em adultos e crianças com diabruras que o colocam como pivetes muito acima da média: o que o separam é a origem social, o que, como se observa frequentemente, não é lá algo impeditivo para duas crianças brincarem, divertirem-se: após se conhecerem, têm toda a cidade do Rio de Janeiro como cenário de suas aventuras.

Os limites tênues entre ficção e história vão se extrapolando adiante com personagens reais como Carlota Joaquina, rainha e tratada como vilã, desleal para com o generoso bonachão D. João VI., seu marido, disposta a conjurar junto a súditos ingleses com quem mantém relações extraconjugais, com o olho na restauração do trono em Espanha pós napoleão e nas Províncias Cisplatinas – sua predileção pelo filho D. Miguel em detrimento de D. Pedro teve efetiva repercussão nos fatos históricos reais e mais uma vez nos deparamos com esta interface entre história e literatura.

“Não que Pedro tivesse alguma coisa contra os ingleses. Ao contrário, pelo que ouvia dos mais velhos, os franceses é que eram os vilões do novo século, os republicanos insidiosos, os vampiros da realeza. Com a falta de cerimônia com que, até bem pouco, guilhotinavam as cabeças coroadas, ninguém de sangue azul estava salvo na Europa. O festival de cabeças cortadas terminara, mas, agora, a França caíra nas mãos de um homem chamado Napoleão, que se autoproclamara imperador e estava ameaçando abocanhar todas as casas reais – a própria Família Real inglesa, para se garantir, botara as barbas de molho. É verdade que, além da vaidade de pretender dominar o mundo, Napoleão tinha razões pessoais para tentar se espalhar pela Europa e pelo norte da África”.

 E para além dos fatos políticos e personagens oficiais que remetem ao que historiadores chamam de história oficial, o romance é rico em descrições vivas de costumes, festas típicas, os beija-mãos junto ao Imperador, a riqueza paisagística dos bairros, sendo perceptível a preocupação do biógrafo em retratar o Rio do século XIX efetivamente conforme a cidade se estabelecia, reproduzindo o nome antigo dos bairros, ruas e morros. O carnaval nos é relatado de forma a nos conduzir a uma festa efetivamente popular, com ocupação de rua e práticas interessantes como a borradeira de água de pimenta nos transeuntes ou ainda pior: a prática do entrudo em que algum espertalhão sorrateiramente jogava de cima de algum prédio farinha, ovo, ou a combinação de ambos nos passantes. Com alguma frequência ocorria alguma briga entre folião e alguém pego de surpresa e dentro da narrativa a segurança na cidade era levada a cabo pelo temido Major Vidigal, memorável personagem do “Memórias”.

Outro fato político bastante comentado pelos historiadores diz respeito às grandes mudanças produzidas na cidade do Rio de Janeiro com a vinda da Família Real. Aquelas mudanças urbanísticas e paisagísticas são frutos de um fato único em toda a história mundial: pela primeira vez uma colônia passaria a ser a sede de uma corte europeia.

“Muitos desses hábitos, como o dos enterros noturnos e em cova rasa, não demorariam a ficar esquecidos no passado carioca. A vinda da Família Real começava a mudar a face do Rio. O intendente Paulo Fernandes Viana, encarregado geral da cidade, estava disposto a acabar com o ranço colonial e, em dois tempos, fazer do Rio uma capital digna de um reino, apta a receber as embaixadas estrangeiras, os fidalgos de outras cortes e a elite dinheirosa da metrópole – mesmo porque, agora, o Rio é que era a metrópole.

Viana parecia picado pelo bicho-carpinteiro. Começou por obrigar os proprietários a derrubar as gelosias de suas janelas – as platibandas de treliça que isolavam as casas do que se passava na rua e contribuíam para o ar abafado e doentio das habitações. No que as janelas se escancararam, o sol entrou pela primeira vez em suas salas e revelou, inclusive, as belas mulheres que elas escondiam”.

Pode ser bastante rica esta combinação de ficção e história reproduzida em “Era no Tempo do Rei”. No âmbito do ensino da história, em tempos em que o incentivo à leitura torna-se um ato militante, este tipo de trabalho pode ser fonte de estudos para aprendizado de história, em especial para jovens – e a ser estudado enquanto método para desenvolvimento a ser trilhado em outras obras acerca da história do brasil, rica também em vasta literatura, de forma a fazer com que a aprendizado da história também possa ser cativante e divertido. Esta é só uma possibilidade elencada aqui a título de exemplo. Que apareçam mais obras com esta perspectiva nas letras brasileiras.      

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