segunda-feira, 25 de novembro de 2019

“O Marxismo e o Problema Nacional” – J. V. Stálin


“O Marxismo e o Problema Nacional” – J. V. Stálin 



Resenha Livro - “O Marxismo e o Problema Nacional” – J. V. Stálin – Transcrição e HTML: Fernando A. S. Araújo - 1913
                 
Este trabalho de Stálin foi redigido em fins de 1912 e princípios de 1913, em Viena. A brochura foi impressa pela primeira vez em 1913, nos números 3 a 5 da revista bolchevique Prosveschenie (“Ilustração”).

Posteriormente, o estudo seria reeditado pelo Comissariado Para As Nacionalidades quando, no prefácio, Stálin esclarece que “este artigo reflete um período de discussões de princípio sobre o problema nacional no seio da social democracia da Rússia, na época da reação czarista e latifundiária, ano e meio antes de estalar a guerra imperialista, época do crescimento da revolução democrático burguesa na Rússia. Defrontavam-se então duas teorias sobre a nação e, portanto, dois programas nacionais: o austríaco, apoiado pelo Bund e pelos mencheviques, e o russo, bolchevique”.

Não há aqui uma resposta definitiva e universal acerca do problema nacional por parte da social democracia e do marxismo revolucionário. Pelo contrário, Stálin chama a atenção para o fato de que se há um problema que se deva ser equacionado sob o ponto de vista dialético, este é o caso do problema nacional. Isto significa que não é possível estipular diretrizes com alto grau de abstração como forma de atribuir soluções definitivas a problemas como territórios compartilhados por maiorias e minorias nacionais, diferenças linguísticas e o seu tratamento em países autocráticos como a Rússia czarista e países democráticos como a Suíça, o problema da autonomia nacional e sua aplicabilidade em regiões onde grassa o atraso cultural oriundo da religião. E certamente não deve ser a social democracia a endossar a submissão de trabalhadores aos mulás muçulmanos. Se por um lado a social democracia defende a autodeterminação dos povos, por outro não pode compactuar com as práticas obscurantistas de religiões que não contribuem para o desenvolvimento da consciência socialdemocrata, antes criando divisões nacionais no seio da classe.

Sobre as nuanças e transformações da questão nacional, Stálin já inicia seu artigo indicando que a etapa da reação e a derrota da primeira fase da revolução russa (1905-07) contribuiu para obscurecer uma compreensão correta do problema nacional:

“O período da contrarrevolução na Rússia não trouxe somente ‘raios e trovões’, mas também desilusão com respeito ao movimento, falta de fé nas forças comuns. Enquanto acreditavam num ‘futuro luminoso’, lutavam todos juntos, independentemente de sua nacionalidade: os problemas comuns antes de tudo! Mas quando nos espíritos se insinuam as dúvidas, começaram a dispersar-se pelos bairros nacionais: cada um conte só consigo mesmo! O ‘problema nacional’ antes de tudo”.

Verifica-se portanto que no contexto em que a obra foi escrita uma onda de nacionalismos acompanha na Europa o descenso dos movimentos de libertação. Mesmo dentro da social democracia, a atividade de organizações como o Bund e o partido austríaco passaram a sobrepor os interesses de nacionalidade aos interesses de classe: ao ponto dos deputados do Bund apoiarem na Duma da Rússia a política da burguesia em contraponto à política de classe social democrata. O nacionalismo terá outras implicações, com a divisão dos sindicatos por nacionalidade e o acirramento de ânimos entre trabalhadores de nacionalidades diferentes.

Em todo o caso, Stálin desenvolve sua análise acerca do problema nacional partindo da própria definição do conceito de nação e seu desenvolvimento na história. No caso, as nacionalidades coincidem com a superação do feudalismo e a constituição do capitalismo que envolveu, entre outros, um reagrupamento social em torno das nações:

“A nação não é somente uma categoria histórica, mas uma categoria histórica de uma época determinada, da época do capitalismo ascensional. O processo de liquidação do feudalismo e do desenvolvimento do capitalismo é, ao mesmo tempo, o processo de agrupamento dos homens em nações. Assim acontecem as coisas, por exemplo, na Europa ocidental. Os ingleses, os franceses, os alemães, os italianos, etc; se agrupam em nações sob a marcha triunfal do capitalismo vitorioso sobre o fracionamento feudal”.

Nesta ordem de ideias, na Europa oriental onde o desenvolvimento capitalista é mais recente na história, as coisas se processam de forma diferente – o que também aqui implica em particularidades quanto à resolução do problema nacional. Enquanto no ocidente as nações se converteram em estados nacionais, no oriente, em países como a Rússia, formaram-se estados multinacionais, estados formados por várias nacionalidades. E deste universo de nacionalidades, os grupos mais formas se sobrepuseram sobre as minorias nacionais: foi o caso dos magiares na Hungria e os grão-russos na Rússia. Neste contexto, nacionalidades relegadas a um segundo plano não tinham sido capazes de se consolidar economicamente para formar nações completas.

Existem igualmente elementos nacionais de transição, a pulverização pelo território de diferentes minorias nacionais conforme a marcha das condições materiais de vida e até mesmo a extinção de grupos nacionais em suas relações múltiplas.

Neste contexto, a questão nacional em Stálin não responderá de maneira abstrata e geral que a forma mais compatível no que tange os interesses das massas trabalhadoras diga respeito ou a autonomia nacional, ou à federação ou mesmo à separação. Marx em meados do século XIX era partidário da separação da Polônia junto à Rússia, e com razão, pois se tratava de separar uma cultura superior de uma cultura inferior. Já em fins do século XIX a posição da social democracia muda, considerando nos últimos cinquenta anos uma aproximação econômica e cultural entre a Polônia e a Rússia.

Da complexidade do problema nacional para o marxismo não se deve extrair do texto de Stálin o relativismo, como se não houvessem princípios e diretrizes gerais quanto à política social democrata, que se fundamenta na defesa dos interesses fundamentalmente de classe (e não de nacionalidade). Neste contexto, os marxistas lutavam e devem ainda lutar hoje contra toda política de opressão das minorias nacionais:

“A restrição da liberdade de movimentos, a privação dos direitos eleitorais, a perseguição ao idioma, a redução de escolas e outras medidas repressivas afetam os operários em grau não menor, ou maior talvez, que à burguesia. Esta situação só pode frear o livre desenvolvimento das forças espirituais do proletariado de todas as nações submetidas. Não se pode falar seriamente do pleno desenvolvimento das faculdades espirituais do trabalhador tártaro ou judeu quando não se lhes permite fazer uso de sua língua materna nas assembleias ou nos comícios e quando suas escolas são fechadas”.   

terça-feira, 19 de novembro de 2019

“O Crime do Padre Amaro” – Eça de Queirós


“O Crime do Padre Amaro” – Eça de Queirós



Resenha Livro - “O Crime do Padre Amaro” – Eça de Queirós – Iba Mendes Editor Digital – www.poeteiro.com.br

“O Pároco fechou a porta do quarto. A roupa da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da cabeceira pendia a gravura dum Cristo crucificado. Amaro abriu o seu Breviário, ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes bocejos; e então por cima, sobre o teto, através de orações rituais que maquinalmente ia lendo, começou a sentir o tique-tique das botinas de Amélia e o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se”.

José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25 de novembro de 1845 na Póvoa de Varzim em Portugal. Seu pai fora magistrado, formado em Direito em Coimbra e amigo pessoal de Camilo Castelo Branco, expoente do romancismo português.

Aos dezesseis anos Eça de Queirós também ingressou no curso de Direito em Coimbra, quando publicou seus primeiros trabalhos literários. Posteriormente, o escritor exerceria a advocacia e o jornalismo, até o ano de 1870, quando ingressou na administração pública na condição de gestor do concelho de Leiria. O fato é de destaque desde que Leiria é o local onde se passa a maior parte dos eventos deste Crime do Padre Amaro.

Em 1873, Eça de Queirós ingressa na carreira diplomática, exercendo cargos oficiais em Havana, Newcastle e Bristol.

Eça de Queirós e o Realismo Literário

No prefácio da 2ª e 3ª edição do Crime do Padre Amaro, Eça de Queirós chama atenção para o fato de seu trabalho conservar no estilo, no desenho dos personagens, na ação e nos diálogos consideráveis vestígios de “preocupações de Escola e de Partido”. A história de fato se refere a uma intriga eivada de ironia e humor de “clérigos e de beatas tramada e murmurada à sombra duma velha Sé de província portuguesa”. O livro foi escrito no ano de 1875 e se situa num contexto de embate entre duas escolas literárias: uma escola antiga, a ser superada, correspondente ao arcadismo e romantismo, e a nova escola realista.

É importante salientar que o advento do realismo em Portugal antecede o surgimento da mesma escola literária no Brasil a partir do Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) de Machado de Assis. E, mais importante, o realismo português é produto de uma luta, de um movimento que projetava a modernização da velha Portugal, procurando suscitar as ideias liberais em voga em países estrangeiros, particularmente em França.

(Aliás, quando do lançamento do Crime do Padre Amaro, houve quem entendesse que o romance fosse uma imitação de “Faute de L’Abbé Mouret” de E. Zola).

Este embate entre tradicionalismo/conservadorismo e modernização/liberalismo teve como marco a chamada Questão Coimbrã, uma polêmica entre intelectuais e escritores portugueses ligados à velha escola árcade e romântica e o projeto literário realista, voltado à crítica das velhas instituições, a começar pela Igreja Católica.

De uma certa maneira, a própria evolução histórica de Portugal, país pioneiro na Europa na sua constituição de Estado Nacional desde a Revolução de Avis (1383), mas país retardatário no que diz respeito ao desenvolvimento do capitalismo industrial, especialmente se comparado a países como Inglaterra, França e Alemanha: este desenvolvimento histórico suis generis faria com que a disseminação de ideias liberais e republicanas em Portugal não ocorresse sem maiores conflitos diante da sobrevivência e resquício do misticismo religioso.

Dentre as principais características do realismo literário podemos citar a objetividade em oposição ao subjetivismo que informam as narrativas românticas; a crítica social com um intuito reformador e modernizador, sem, contudo, implicar numa orientação propriamente revolucionária, podendo se dizer que a proposta realista coincide com a visão social de mundo burguesa no contexto do capitalismo em sua fase industrial. Ênfase na descrição da vida cotidiana, de modo que os cenários passam também a remeter ao ambiente urbano, local onde se encontram os tipos sociais, desnudando especialmente os interesses pessoais que informam a conduta de padres, beatas, bacharéis, jornalistas, comerciantes etc. Esta forma descritiva foge bastante da tendência da idealização romântica, dando uma feição mais humana e verdadeira aos personagens em suas relações.

Do Crime do Padre Amaro

Este romance de Eça de Queirós pode ser resumido como uma grande caricatura da sociedade portuguesa de meados do século XIX. Em que pese o grosso da ridicularização dê-se em face dos padres e beatas da Igreja Católica, a grande verdade é que nenhum setor da sociedade arcaica portuguesa fica imune ao deboche. Mesmo personagens associados ao que há de mais avançado no pensamento social como jornalistas anti-igreja com aspirações republicanas ou socialistas são retratados antes como pessoas não movidas por ideais igualitaristas, mas pela ambição e a vaidade. Isto para não falar dos relatos de corrupção envolvendo a redação de jornal anti-clerical e as tramoias de João Eduardo e Agostinho.

O fim trágico de Amélia e o seu enlace romântico com o padre Amaro encontram diversas explicações, a começar pela formação nos anos de infância dos dois personagens.

Amaro, órfão de mãe e pai, foi criado pelos cuidados de uma Duquesa e convivia quando criança com algumas mucamas que lhe ensinam a malícia e o entorpecem com seus dengos femininos. Posteriormente, a vacilação e a indecisão serão a marca da conduta do Padre. Já Amélia, desde cedo fora criada num lar repleto de padres, acostumada desde sempre a ter nos clérigos verdadeiros prepostos de Deus. Posteriormente, Amaro irá se utilizar desta condição privilegiada para dirigir a conduta de Amélia, não de acordo com os valores da religião, mas de acordo com os seus mais mesquinhos interesses individuais.

O individualismo e egoísmo do Padre vão se exacerbar às verdadeiras raias do absurdo quando, após engravidar Amélia, irá abandoná-la no povoado de Ricoça, além de cogitar entregar o fruto da conjunção carnal para a “tecedeira de anjos”, com o fim de matar o filho de ambos e evitar o escândalo social.

A visão social de mundo tipicamente burguesa que informa este romance se situava no ano de 1875 num embate intelectual em que Eça de Queirós se somava aos partidários da modernização da sociedade portuguesa. O realismo português, neste sentido, não é como no Brasil de Machado de Assis, uma solução de continuidade, mas um movimento de ruptura em face de ideias e instituições vigentes.

O que é incrível é que aquela crítica social, 150 anos depois, ainda encontra vigência, na medida em que a proposta realista, ao desnudar os interesses que movem as personagens, apresenta homens e mulheres sem máscaras, e, assim, muito mais humanos.



“Abominava então todo o mundo secular por lhe ter perdido para sempre os privilégios: e como o sacerdócio o excluía da participação nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação, na ideia de superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens. Aquele miserável escrevente podia casar e possuir a rapariga, mas que era ele em comparação dum pároco a quem Deus conferia o poder supremo de distribuir o Céu e o Inferno?... E repastava-se deste sentimento, enchendo o espírito de orgulhos sacerdotais. Mas vinha-lhe bem depressa a desconsoladora ideia que esse domínio só era válido na região abstrata das almas; nunca o poderia manifestar, por atos triunfantes, em plena sociedade. Era um Deus dentro da Sé, mas apenas saía para o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a ação sacerdotal a uma mesquinha influência sobre a alma de beatas.... E era isto que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder eclesiástico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a riqueza dos homens...O que lhe faltava era a autoridade dos tempos em que a Igreja era a nação e o pároco dono temporal do rebanho”.