“O Crime do Padre Amaro” – Eça de Queirós
Resenha Livro - “O Crime do Padre Amaro” –
Eça de Queirós – Iba Mendes Editor Digital – www.poeteiro.com.br
“O Pároco fechou a porta do quarto. A roupa
da cama entreaberta, alva, tinha um bom cheiro de linho lavado. Por cima da
cabeceira pendia a gravura dum Cristo crucificado. Amaro abriu o seu Breviário,
ajoelhou aos pés da cama, persignou-se; mas estava fatigado, vinham-lhe grandes
bocejos; e então por cima, sobre o teto, através de orações rituais que
maquinalmente ia lendo, começou a sentir o tique-tique das botinas de Amélia e
o ruído das saias engomadas que ela sacudia ao despir-se”.
José Maria de Eça de Queirós nasceu em 25
de novembro de 1845 na Póvoa de Varzim em Portugal. Seu pai fora magistrado,
formado em Direito em Coimbra e amigo pessoal de Camilo Castelo Branco, expoente
do romancismo português.
Aos dezesseis anos Eça de Queirós também
ingressou no curso de Direito em Coimbra, quando publicou seus primeiros
trabalhos literários. Posteriormente, o escritor exerceria a advocacia e o
jornalismo, até o ano de 1870, quando ingressou na administração pública na
condição de gestor do concelho de Leiria. O fato é de destaque desde que Leiria
é o local onde se passa a maior parte dos eventos deste Crime do Padre Amaro.
Em 1873, Eça de Queirós ingressa na
carreira diplomática, exercendo cargos oficiais em Havana, Newcastle e Bristol.
Eça de Queirós e o Realismo Literário
No prefácio da 2ª e 3ª edição do Crime do
Padre Amaro, Eça de Queirós chama atenção para o fato de seu trabalho conservar
no estilo, no desenho dos personagens, na ação e nos diálogos consideráveis
vestígios de “preocupações de Escola e de Partido”. A história de fato se
refere a uma intriga eivada de ironia e humor de “clérigos e de beatas tramada
e murmurada à sombra duma velha Sé de província portuguesa”. O livro foi
escrito no ano de 1875 e se situa num contexto de embate entre duas escolas
literárias: uma escola antiga, a ser superada, correspondente ao arcadismo e
romantismo, e a nova escola realista.
É importante salientar que o advento do
realismo em Portugal antecede o surgimento da mesma escola literária no Brasil
a partir do Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881) de Machado de Assis. E, mais
importante, o realismo português é produto de uma luta, de um movimento que
projetava a modernização da velha Portugal, procurando suscitar as ideias
liberais em voga em países estrangeiros, particularmente em França.
(Aliás, quando do lançamento do Crime do
Padre Amaro, houve quem entendesse que o romance fosse uma imitação de “Faute
de L’Abbé Mouret” de E. Zola).
Este embate entre tradicionalismo/conservadorismo
e modernização/liberalismo teve como marco a chamada Questão Coimbrã, uma
polêmica entre intelectuais e escritores portugueses ligados à velha escola
árcade e romântica e o projeto literário realista, voltado à crítica das velhas
instituições, a começar pela Igreja Católica.
De uma certa maneira, a própria evolução
histórica de Portugal, país pioneiro na Europa na sua constituição de Estado
Nacional desde a Revolução de Avis (1383), mas país retardatário no que diz
respeito ao desenvolvimento do capitalismo industrial, especialmente se
comparado a países como Inglaterra, França e Alemanha: este desenvolvimento
histórico suis generis faria com que a disseminação de ideias liberais e
republicanas em Portugal não ocorresse sem maiores conflitos diante da
sobrevivência e resquício do misticismo religioso.
Dentre as principais características do
realismo literário podemos citar a objetividade em oposição ao subjetivismo que
informam as narrativas românticas; a crítica social com um intuito reformador e
modernizador, sem, contudo, implicar numa orientação propriamente
revolucionária, podendo se dizer que a proposta realista coincide com a visão
social de mundo burguesa no contexto do capitalismo em sua fase industrial. Ênfase
na descrição da vida cotidiana, de modo que os cenários passam também a remeter
ao ambiente urbano, local onde se encontram os tipos sociais, desnudando
especialmente os interesses pessoais que informam a conduta de padres, beatas,
bacharéis, jornalistas, comerciantes etc. Esta forma descritiva foge bastante da
tendência da idealização romântica, dando uma feição mais humana e verdadeira
aos personagens em suas relações.
Do Crime do Padre Amaro
Este romance de Eça de Queirós pode ser resumido
como uma grande caricatura da sociedade portuguesa de meados do século XIX. Em
que pese o grosso da ridicularização dê-se em face dos padres e beatas da
Igreja Católica, a grande verdade é que nenhum setor da sociedade arcaica
portuguesa fica imune ao deboche. Mesmo personagens associados ao que há de
mais avançado no pensamento social como jornalistas anti-igreja com aspirações
republicanas ou socialistas são retratados antes como pessoas não movidas por
ideais igualitaristas, mas pela ambição e a vaidade. Isto para não falar dos
relatos de corrupção envolvendo a redação de jornal anti-clerical e as tramoias
de João Eduardo e Agostinho.
O fim trágico de Amélia e o seu enlace
romântico com o padre Amaro encontram diversas explicações, a começar pela
formação nos anos de infância dos dois personagens.
Amaro, órfão de mãe e pai, foi criado pelos
cuidados de uma Duquesa e convivia quando criança com algumas mucamas que lhe
ensinam a malícia e o entorpecem com seus dengos femininos. Posteriormente, a
vacilação e a indecisão serão a marca da conduta do Padre. Já Amélia, desde
cedo fora criada num lar repleto de padres, acostumada desde sempre a ter nos
clérigos verdadeiros prepostos de Deus. Posteriormente, Amaro irá se utilizar
desta condição privilegiada para dirigir a conduta de Amélia, não de acordo com
os valores da religião, mas de acordo com os seus mais mesquinhos interesses
individuais.
O individualismo e egoísmo do Padre vão se
exacerbar às verdadeiras raias do absurdo quando, após engravidar Amélia, irá
abandoná-la no povoado de Ricoça, além de cogitar entregar o fruto da conjunção
carnal para a “tecedeira de anjos”, com o fim de matar o filho de ambos e
evitar o escândalo social.
A visão social de mundo tipicamente
burguesa que informa este romance se situava no ano de 1875 num embate
intelectual em que Eça de Queirós se somava aos partidários da modernização da
sociedade portuguesa. O realismo português, neste sentido, não é como no Brasil
de Machado de Assis, uma solução de continuidade, mas um movimento de ruptura em
face de ideias e instituições vigentes.
O que é incrível é que aquela crítica
social, 150 anos depois, ainda encontra vigência, na medida em que a proposta
realista, ao desnudar os interesses que movem as personagens, apresenta homens
e mulheres sem máscaras, e, assim, muito mais humanos.
“Abominava então todo o mundo secular por
lhe ter perdido para sempre os privilégios: e como o sacerdócio o excluía da
participação nos prazeres humanos e sociais, refugiava-se, em compensação, na
ideia de superioridade espiritual que lhe dava sobre os homens. Aquele miserável
escrevente podia casar e possuir a rapariga, mas que era ele em comparação dum
pároco a quem Deus conferia o poder supremo de distribuir o Céu e o Inferno?...
E repastava-se deste sentimento, enchendo o espírito de orgulhos sacerdotais.
Mas vinha-lhe bem depressa a desconsoladora ideia que esse domínio só era
válido na região abstrata das almas; nunca o poderia manifestar, por atos
triunfantes, em plena sociedade. Era um Deus dentro da Sé, mas apenas saía para
o largo, era apenas um plebeu obscuro. Um mundo irreligioso reduzira toda a
ação sacerdotal a uma mesquinha influência sobre a alma de beatas.... E era
isto que lamentava, esta diminuição social da Igreja, esta mutilação do poder
eclesiástico, limitado ao espiritual, sem direito sobre o corpo, a vida e a
riqueza dos homens...O que lhe faltava era a autoridade dos tempos em que a
Igreja era a nação e o pároco dono temporal do rebanho”.
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