sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

“História do Marxismo no Brasil” – Vários Autores


“História do Marxismo no Brasil” – Vários Autores



Resenha Livro - “História do Marxismo no Brasil: o impacto das revoluções” – João Quartim de Moraes e Daniel Aarão Reis (Org.) - Editora Unicamp

“Nos últimos anos do século XIX e na primeira década do XX muitos outros autores poderiam ser lembrados como propagandistas, maiores e menores, das ideias de Marx, tal como Vicente Avelar, Estevam Estrela e Evaristo de Moraes. Num folheto do fim do século XIX, desenganava-se o primeiro com a República, mostrava a miséria do trabalhador nacional e prestava homenagem indiscriminadamente a vários doutrinadores da reforma social, de Bellamy, Oliveira Martins, Kropotkin, Lassale, terminando em Engels e Marx. Da bem ideia da confusão e do despreparo doutrinário que reinava entre os nossos possíveis teóricos do socialismo. Na verdade, ninguém havia lido profundamente, estudado ou se dedicado ao marxismo”. EVARISTO DE MORAES FILHO.

Este primeiro volume do História do Marxismo no Brasil antecede outros 5 volumes dedicados ao tema através de artigos de professores universitários e mesmo militantes que presenciaram pessoalmente esta trajetória. Neste volume trata-se da proto-história do marxismo no Brasil desde o século XIX quando o vocabulário marxista não raro vinha associado às ideias do positivismo e do evolucionismo. Marx, Spencer, Darwin e Haeckal advinham não raro de uma mesma ordem de ideias. Euclides da Cunha fez citações de Marx: mesmo preso a certas noções deterministas, o mais provável é que o cenário de miséria absoluta que presenciou em Canudos deveria despertar no escritor alguns aspectos da crítica social.

Pode-se dizer que no Brasil houve um movimento de desenvolvimento do marxismo distinta do que ocorreu em França ou Rússia. Naqueles países europeus, as ideias de Marx antecederam a problemática do comunismo enquanto no Brasil a problemática do comunismo antecede o marxismo. Serão as revoluções em Europa de 1848[1] e, principalmente, a Comuna de Pais que repercutiram num primeiro momento a ideia de Marx e outros reformadores sociais. Inicialmente, a reação advém da crítica parlamentar. De fato a intervenção do deputado Joaquim Serra constitui a primeira menção direta de Marx no parlamento brasileiro, no contexto da Comuna de Paris. Nessa mesma orientação, a chamada Escola de Recife, de forte conteúdo cientificistas, determinista e materialista, igualmente produz manifestações contrárias ao Marx e seu sistema de ideias. São precursores todavia ao dialogar com as ideias de Marx o Tobias Barreto e o Sílvio Romero. Vale apontar que estas primeiras leituras o mais das vezes não decorreriam da leitura direta do velho mouro mas de artigos de terceiros, em especial Ferri.

No Brasil, diante do ocaso da escravidão e da vinda de imigrantes há difusão de ideias anarcosindicalistas. Poderíamos descrever três vertentes políticas que remontam a este período originário da esquerda no Brasil. Há os anarquistas, que igualmente têm maior peso em países retardatários quanto à revolução industrial, como Espanha, Portugal e Itália. Outra vertente é socialista, de tipo reformista, organizada no Partido Socialista e em círculos operários. E, especialmente a partir do advento da revolução russa, o fortalecimento da orientação marxista-leninista que irá culminar na fundação do PCB em 1922, dirigido por Astrogildo Pereira e Octávio Brandão. Na verdade, o impacto da vitoriosa revolução dos soviets e o acirrado cerco militar a que a URSS viu-se envolvida na guerra civil engendrou a criação de núcleos de apoio à revolução no Brasil. Grupos de apoio à Rússia soviética e que pautavam a criação de um partido revolucionário. Muitos anarcosindicalistas sob o impacto da revolução aderiram ao bolchevismo. Anarquistas que restaram ficaram contra a construção do partido e com o tempo contra a própria revolução russa – mas seriam a partir de 1922 cada vez mais minoritários.

Outros temas abordados neste primeiro volume foi o influxo do movimento comunista vitorioso na China em 1949 e em Cuba em 1959 na trajetória do marxismo do Brasil e das organizações. Parece-nos que o caso de Cuba foi ainda mais impactante por configurar hipótese de êxito revolucionário na América Latina, a 90 milhas dos EUA. Muito influenciado pela experiência cubana Carlos Marighella romperia com o PCB defendendo o modelo da luta armada. Criticou-se muito na esquerda a análise do partido comunista acerca da questão nacional: defendia-se uma aliança política junto à burguesia nacional, em contraponto ao imperialismo (norte americano) em aliança com o latifúndio (feudal ou semi-feudal). Esta solução por etapas desafiou os acontecimentos de Cuba que já em 1961 definiu como socialista sua revolução.

Além da ANL, houve outro racha do PCB, o PCBR que previa a luta armada sem com isso abandonar o marxismo leninismo. Adveio a Ação Popular decorrente do movimento universitário católico. Mesmo as Ligas Camponesas de Francisco Julião invertiam a tática reformista pela via guerrilheira, também influenciados por Cuba. Mais um exemplo nítido da influência da Revolução de 1959 no país.

Não poderíamos estar de acordo com algumas opiniões dos articulistas, especialmente quando se referem a Stálin, “stalinismo” e o sentido real do XX Congresso do PC(us). Inegavelmente as chamadas revelações de Kruschov repercutiriam gravemente no movimento comunista internacional. Mas deve-se levar em conta que a satanização de Stálin em 1956 foi o primeiro passo efetivo para o aniquilamento da própria URSS. Stálin e seu movimento implicou nos momentos de maior potência do movimento socialista, situação capaz de efetivamente desafiar a ordem capitalista mundial. Foi o desmantelamento político da URSS um movimento passo a passo com o obscurecimento vulgar de Stálin.




[1] Mesma data da revolução Praieira de Pernambuco.

quarta-feira, 19 de dezembro de 2018

“A Verdade Como Regra das Ações” – Raymundo Farias Brito


“A Verdade Como Regra das Ações” – Raymundo Farias Brito



Resenha Livro - “A Verdade Como Regra das Ações” – Raymundo Farias Brito – Edições do Senado Federal V. 51

“O homem deve proceder sempre de conformidade com a verdade. Ser verdadeiro, eis pois, a regra suprema das ações. E este princípio que claramente se deduz pela simples compreensão do mecanismo mesmo da ação, também se poderá provar, não só pelo exame crítico da inteligência, mas pela análise mesma do espírito, como ao mesmo tempo pela observação empírica da natureza. Esta, efetivamente, é, em suas manifestações inferiores, puro mecanismo, matéria inconsciente. Vem depois a vegetação; depois a animalidade; e por fim o homem. É no homem que vem primeiro a necessidade orgânica; depois a inclinação e o apetite, o desejo, a paixão, e por fim, a ideia, representação abstrata da ordem das coisas, ou mais precisamente, o conhecimento. O conhecimento é pois a manifestação superior, a última fase, o fim da evolução universal”.

O mais provável é que serão poucos os estudantes, pesquisadores e professores de filosofia e do direito que conhecem as ideias originais do filósofo cearense Raymundo Farias Brito. Nascido em São Benedito, interior do Ceará, em 1862, Farias Brito não foi reconhecido como um pensador de ideias, alguém que contribui para a filosofia não somente lecionando a sua história. A sua própria filosofia de certa maneira pode explicar este esquecimento – vivendo em fins do XIX diante de um contexto de hegemonia das ideias cientificistas, deterministas e positivistas, Farias Brito propõe um caminho do pensamento em torno da busca da verdade, ou mais exatamente, da busca pela verdade como regra da conduta humana. Em que pese as ideias cientificistas então em voga aparentemente sugerirem um mesmo movimento em direção ao conhecimento, observa-se, no Brasil e no Mundo, contexto de abruptas mudanças, com a disseminação das indústrias, das cidades, da formação da classe operária e uma crise de ideias tradicionais que explicavam até então a natureza das coisas através de uma razão universal.  A crítica ao materialismo em Farias Brito leva em consideração o prolongamento natural daquelas ideias: o pessimismo e o cepticismo, uma filosofia essencialmente negativa que eventualmente restrinja os próprios horizontes filosóficos face um contexto de indeterminação e mudanças profundas como, no Brasil, com o fim do II Império, a crise da Igreja Católica e o fim do trabalho escravo.

Farias Brito veio de uma família humilde. Em que pese os baixos rendimentos de seus pais, pôde estudar desde cedo, inicialmente no Ginásio Sobralense. A mãe do filósofo era indígena e fumava o cachimbo. Certa feita, a segunda esposa de Farias Brito queixou-se do hábito da mãe ao que o filósofo respondeu: minha mãe lavou muita roupa e panela para que eu pudesse estudar, não poderia exigir estas coisas dela. Aos 16 anos o filósofo e sua família mudaram do interior do Ceará para Fortaleza fugindo da grande seca de 1877. Um ano depois uma vasta epidemia de varíola atingiria a capital do Ceará matando 26 mil pessoas, número assombroso para a população da época. Em 1881, Farias Brito inicia seus estudos na Faculdade de Direito do Recife. Esta escola tinha então um forte viés cientificista – contrapondo-se de certa maneira à filosofia espiritualista e idealista do nosso filósofo. Na universidade conviveria com Tobias Barreto e Clóvis Beviláqua. Posteriormente, Farias Brito muda-se até Belém do Pará onde leciona Filosofia do Direito na universidade daquele estado.

Consta que Farias Brito tinha a intenção de trocar o norte pela capital no Rio de Janeiro. Prestou concurso para lecionar no colégio Pedro II e diante da banca examinadora  ficou em primeiro lugar. Tradicionalmente, o cargo, a ser escolhido pelo presidente da república, fora sempre determinado pelo primeiro colocado no certame. Ocorre que Farias Brito não tinha quase nenhuma influência política na capital e foi preterido pelo segundo colocado, nada menos do que Euclides da Cunha[1].
Este “A Verdade Como Regra das Ações” corresponde a curso ministrado pelo filósofo para alunos de graduação de direito na Faculdade de Belém. O trabalho é dividido em três partes: na primeira, a que mais nos interesse nos dias de hoje, correspondendo a uma exposição geral das ideias do filósofo, acerca da filosofia, da ciência, do direito e das formas normativas correspondentes à lei moral, jurídica e natural. O segundo Livro trata do direito com a exposição e crítica dos diferentes sistemas desenvolvidos ao longo da história. O terceiro livro faz um resgate da concepção do direito natural dos antigos e dos modernos. Nestes últimos, dá destaque a Hugo Grócio e Kant.

Para Farias Brito o direito é universal, subsiste em todos os povos e sua finalidade é a garantia da ordem social. O direito não se confunde com a moral: moral é a norma de conduta imposta pela consciência ao passo que o direito é a norma de conduta imposta pelo poder público. Lei moral é a autoridade da razão e a lei jurídica é a autoridade do poder público. Ambas são diferentes das leis naturais que são imutáveis, necessárias e irrevogáveis. O grau de perfeição das leis jurídicas não dizem respeito porém ao conceito de justo.  O grau de perfeição das leis jurídicas diz respeito à tradução em maior ou menor fidelidade da consciência pública.  Quando um monarca absolutista governa de maneira despótica, conquanto sua intervenção diga respeito à convicção[2] geral da população, a lei se mantém válida. Porém onde tal tradução não se manifesta com fidelidade, passa a ser legítima mesma a revolução, conclusão até certo ponto inusitada mas não sem lógica deste filósofo tradicionalista:

“Já não é a lei, mas a força que governa. E nesse caso é legítima a revolução, sendo necessário acentuar que se a opressão chega a tomar proporções exageradas e não é possível vencê-la pela discussão, pela propaganda, pela persuasão, em uma palavra, pela luta de ideias; neste caso, já não é somente um direito, mas um dever moral reagir, empregando a força contra a força. É a força da razão que degenera em inconsciência da força; é uma autoridade que cai por perder a consciência da missão, e é uma consciência nova que se forma: é um poder que extravasa e se abate, degenerando na inconsciência feroz da brutalidade; e é um poder novo que nasce, fundado na inspiração de um novo ideal”.   

Quanto ao procedimento metodológico, observa-se que a filosofia de Farias Brito encontra-se no campo idealista e especulativo. Suas ideias não envolvem tanto as  antinomias ou contradições mas definições que se complementam dentro de um sistema que tem a ambição de ser geral, universal. Verdade e ciência são igualmente distintas  - a filosofia que almeja a verdade produz a ciência tal qual a árvore produz os frutos:

“A ciência é o conhecimento organizado e verificado; a filosofia é o conhecimento em via de formação. Em outros termos: a filosofia é a organização do conhecimento científico; é a investigação do conhecido; é a atividade mesma do espirito, elaborando o conhecimento e produzindo ciência. A filosofia vem pois em primeiro lugar, como princípio da atividade; só depois vem a ciência como produto desta mesma atividade; podendo se dizer, para explicar o fato com uma imagem, a filosofia é como a árvore de que resulta como fruto a ciência.” 

Este “Verdade Como Regra das Ações” foi publicado pela primeira vez em 1905. Uma segunda edição do livro foi publicada pelo Instituto Nacional do Livro em 1953. Meio século se passou para que as Edições do Senado Federal  publicassem a terceira edição em 2005. Num contexto de crise das ideias, da apologia de tudo o que é parcial e relativo, um filósofo mulato que busca criar um sistema filosófico próprio baseado na consciência, na busca da verdade como critério de conduta, na consciência como movimento irresistível em direção ao desenvolvimento do espírito, tudo isso nos parece como caminho válido e apenas aqui progressista para superação da fragmentação e ceticismo cínico que demarca as “verdades” filosóficas do momento.


[1] O presidente de então era Nilo Peçanha.
[2] Em Farias Brito a convicção é a verdade em sua versão subjetiva. Todavia a verdade objetiva não é relativa: é o ponto para onde converge o conhecimento.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2018

“Sobre a Questão da Moradia” – Friedrich Engels


“Sobre a Questão da Moradia” – Friedrich Engels



Resenha Livro - “Sobre a Questão da Moradia” – Friedrich Engels – Editora Boitempo

“A época em que um velho país agrícola passa por tal transição – e, ainda por cima, acelerada por circunstâncias favoráveis – da manufatura e da pequena empresa para a grande indústria é também predominantemente um tempo de ‘escassez de moradia’.  Por um lado, as massas trabalhadoras rurais são atraídas de repente para as grandes cidades, que se transformaram em centros industriais; por outro lado a configuração arquitetônica dessas cidades mais antigas deixa de satisfazer às condições da nova grande indústria e do trânsito que lhe corresponde; suas ruas são alargadas e realinhadas, ferrovias instaladas no meio delas. No momento em que os trabalhadores afluem em massa, as moradias dos trabalhadores são derrubadas aos montes”.

“Sobre a Questão da Moradia” corresponde a três artigos de Engels publicados em 1872-3 no jornal do Partido Operário Social Democrata Alemão (Der Volksstaat). É uma refutação das soluções que a burguesia e a pequena burguesia dão para o problema da moradia (a escassez de moradia corresponde a sintoma da Revolução Industrial por que passa Inglaterra, França e posteriormente Alemanha). E mais: Engels ao abordar a questão busca defender posições teóricas do socialismo científico alemão. Na verdade, este trabalho foi publicado num contexto em que Marx e Engels estabeleceram entre si uma divisão de trabalho: Engels defenderia na imprensa as posições do socialismo científico enquanto Marx se dedicava à pesquisa propriamente científica. O livro é posterior ao “Manifesto do Partido Comunista” (1848) e ao primeiro volume do “O Capital” (1867 – Marx dedicou nada menos do que 25 anos para a publicação de sua crítica da economia política).

Há no Brasil hoje 5 milhões de imóveis ociosos, pouco menos do que o déficit habitacional do país. 

Engels descreve como a revolução industrial, com a sua acumulação e concentração de capital bem como pelo surgimento de novos contingentes de proletários, é um processo histórico que não pode ser contido através de enunciados morais ou jurídicos como postula o socialismo utópico. O modo de produção capitalista engendra e agudiza as contradições entre a cidade e o campo, tratando-se a questão da moradia bem como qualquer outra questão social como passíveis de serem solucionadas apenas através da superação deste modo de produção.

Em sentido oposto, o socialismo utópico entende que a revolução industrial como um todo é um fenômeno regressivo – propõem os utópicos o retorno da fábrica e das máquinas fabris  modernas à produção de mercadorias em pequena escala, através da associação para o trabalho de pequenos produtores. O socialismo utópico é um fenômeno específico das sociedades em transição ao capitalismo, corresponde à infância do proletariado – estes socialistas deparam-se com os horrores sociais do novo mundo fabril com  suas cidades poluídas e amontoados de trabalhadores vivendo em condições degradantes, buscando saídas que no limite são reacionárias como o retorno às condições pré-capitalistas de pequena propriedade[1].

O caráter de classe do socialismo utópico envolve os interesses da pequena burguesia – o seu projeto para a solução da questão da moradia é o singelo programa segundo o qual cada trabalhador teria direito à sua casa, à sua pequena horta, enfim, a uma pequena propriedade. Formulam a questão de forma idealista. O que ocorre nas ideias de Proudhon e Mullberg é uma certa crença, sem qualquer lastro científico, de que o “direito” e a “justiça” não são derivados das relações e das leis econômicas, mas o inverso – o econômico seria uma derivação ou sobredeterminação do jurídico. Há aqui nesta perspectiva utópica um salto salvador da realidade econômica para a fraseologia jurídica: a questão da moradia não deve ser encarada como um problema intimamente relacionado com a revolução industrial e os interesses capitalistas em seu conjunto, mas como um tema que poderia ser resolvido com arranjos legais, no caso, lei que reduza os juros dos contratos de locação de 1% até 0% e a aquisição da propriedade do imóvel a partir do pagamento em parcelas do valor do bem a longo prazo. Em que pese o socialismo utópico dizer respeito a um movimento político específico das sociedades em transição desde a Revolução Industrial – e portanto um conjunto de ideias em certa medida superado – é notável como a orientação social pequeno burguesa coincide com a esquerda pequeno burguesa tal a qual conhecemos hoje, com seu institucionalismo, sua fé cega no direito e nas leis do estado capitalista. E mais importante: o seu hábito de oferecer soluções prontas, institucionais, para questões que só podem ser solucionadas a partir de sua raiz, no caso, através do enfrentamento das contradições entre cidade e campo com a própria superação do capitalismo que engendra tais contradições:

“Em contrapartida, é pura utopia querer revolucionar a atual sociedade burguesa e preservar o agricultor como tal. Somente uma distribuição o mais homogênea possível da população pelo campo, somente uma vinculação íntima da produção industrial com a produção agrícola, em conjunto com a expansão dos meios de comunicação que desse modo se torna necessária – pressupondo a abolição do modo de produção capitalista – são capazes de arrancar a população rural do isolamento e do embrutecimento em que vegeta há milênios, quase do mesmo jeito”.

No segundo artigo, Engels oferece a solução propriamente burguesa para a questão da moradia. Há sociedades beneficentes de industriais e o estímulo ao auxílio mútuo para atenuar as mais precárias condições de moradia dos trabalhadores em Inglaterra e França. Engels desmascara o cinismo destas iniciativas: a preocupação inicial da classe dominante é com a proliferação de doenças (tifo, varíola, cólera), o embelezamento das regiões centrais urbanas com a correspondente expulsão de trabalhadores, além dos riscos de desabamento das moradias. Quando muito, interessa à burguesia o fornecimento de moradias ao trabalhador para incrementar sua produtividade. Curioso que a solução dos proudhonistas para a questão (aquisição da propriedade do imóvel mediante pagamento de parcelas que perfazem o valor do bem) já era então praticado pelos capitalistas ingleses, como fonte de lucros. Aqui no Brasil as primeiras gerações de trabalhadores se viam em situação parecida, com o endividamento do trabalhador face ao patrão, implicando em situação de ainda maior vulnerabilidade.

Muitas passagens sobre as mudanças de paisagem nas cidades, a concentração na periferia dos trabalhadores, sua expulsão em face dos riscos de saúde, a poluição total de novos centros industriais, tudo isso permanece bastante atual. Permanece verdadeira a assertiva segundo a qual o estado capitalista quando muito atuará para reiterar a dissimulação dos fatos: a escassez de moradia é produto do capitalismo, se baseia desde a origem na Revolução Industrial, na expulsão dos camponeses e sua proletarização. Mas também é a cidade o local de referência de uma nova classe social, não presa aos grilhões da mentalidade medieval com seus padres e moralistas. A revolução industrial produz a cidade e o proletariado que livre de seu vínculo secular com a terra e a tradição, bem como concentrado em centros urbanos, poderá erigir-se como classe antagônica à burguesia.   




[1] Na Comuna de Paris, foram os proudhonistas que se opuseram à nacionalização do Banco da França, medida que teria forçado a burguesia de Versalhes a negociar com os insurgentes pressionando para isso a aristocracia. Tal fato foi devidamente criticado por Marx.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

“Curso de Direito Processual do Trabalho” – Enoque Ribeiro dos Santos e Ricardo Antônio Bittar Hajel Filho


“Curso de Direito Processual do Trabalho” – Enoque Ribeiro dos Santos e Ricardo Antônio Bittar Hajel Filho



Resenha Livro - “Curso de Direito Processual do Trabalho” – Enoque Ribeiro dos Santos e Ricardo Antônio Bittar Hajel Filho – Ed. Atlas

Como qualquer outro fenômeno social de grande envergadura, o direito e o seu entendimento irá variar bastante a partir dos pressupostos teórico-metodológicos associados ao entendimento dos problemas jurídicos. Obviamente, nem sempre tais pressupostos exsurgem de forma consciente a partir de uma escolha do intérprete: assim, pode-se falar de uma certa hegemonia do positivismo jurídico que de maneira geral equipara o justo e o direito à sua expressão positivada, nas leis e outras normas jurídicas. O positivismo jurídico certamente cumpre um papel funcional na medida em que busca desvirtuar as decisões dos tribunais como imparciais, assim como os sentidos da norma ou mesmo a própria definição do direito: o direito é a lei e saber o direito é saber as normas jurídicas positivadas e escalonadas a partir da constituição.  Até mesmo as diferentes possibilidades de interpretação da norma jurídica são tecnicamente limitadas a certos arranjos doutrinários de modo a sempre conferir à norma jurídica o primado acerca das definições do justo, livre de influências da história, da sociologia, da filosofia. Daí a noção de Teoria “Pura” do direito do maior expoente do positivismo jurídico, Hans Kelsen.  

Nestes marcos, parece-nos que as teorias críticas do direito que remontam originalmente às ideias de Marx possibilitam por um lado uma visão mais abrangente do problema jurídico – muito mais do que uma expressão da dominação econômica e como um instrumento de dominação de classes desde o estado capitalista, o direito integra o próprio DNA do modo de produção capitalista. Foi e é necessária a criação de figuras jurídicas como o contrato e a noção de sujeito de direito de modo a substituir as formas de trabalho sob a servidão ou sob a escravidão para uma relação baseada na mercantilização da força de trabalho. As transações comerciais exigiram a criação do estado, do processo e do procedimento de modo a garantir segurança e previsibilidade nas operações comerciais. 

A atenuação dos conflitos tipicamente trabalhistas foram pelo menos desde o início do século XX suscitadas como objeto de preocupação do direito, ou do direito do trabalho, garantindo não só a mediação de conflitos com o condão de desafiar a ordem social capitalista constituída mas até mesmo criar condições de dignidade dos trabalhadores e poder aquisitivo no sentido de se desenvolver o mercado de consumo.

Se o direito é especificamente capitalista no sentido de que a forma jurídica como uma espécie de fôrma modulasse e pavimentasse o caminho para a reprodução da sociabilidade capitalista (extração de mais valia absoluta e relativa o que envolve normas sobre jornada de trabalho entre outros; institutos jurídicos de proteção da propriedade; e alienação do trabalho sob a forma assalariada). Certamente o exame do direito do trabalho e do direito processual do trabalho propiciam uma perspectiva privilegiada acerca da própria dinâmica da luta de classes no país e no mundo, possibilitando mesmo fazer algumas previsões envolvendo tendências atuais.

Como a reforma trabalhista perpetrada pelo governo golpista de Michel Temer demonstrou, com a inequívoca pressa com que o projeto de lei foi discutido, votado e aprovado, sem qualquer negociação entre capital e trabalho, e atropelando princípios do direito do trabalho, normas da CLT e da legislação extravagante e em alguns casos atropelando a constituição, este primeiro assalto só foi possível porque a correlação de forças políticas inverteu-se desde o período do fim do governo Dilma até o golpe de estado. Assim, entendemos que para a teoria crítica, não bastará a reflexão filosófica ou sociológica do direito em que pesem serem igualmente temas decisivos – é importante ir além e desvendas as contradições que envolvem o direito positivo, o direito posto, sem com isso reduzir o alcance teórico-metodológico ao nível do positivismo jurídico[1].

Está ainda em curso uma operação que visa enfraquecer tanto o direito do trabalho como instituições consolidadas ao longo da história, como os tribunais superiores e os sindicatos, que ao que tudo indica se opõem em certos aspectos aos interesses atuais do regime golpista que dirige o país. A reforma trabalhista por um lado extinguiu a contribuição sindical e buscou reduzir o papel dos tribunais superiores do trabalho no que tange a conformação de sua jurisprudência vinculante. Para dar um exemplo, temos a terceirização – neste caso as condições objetivas do mundo do trabalho andaram à frente da justiça do trabalho, tendo sido necessário que os juízes discutissem o tema através de analogia com outros institutos. Da mesma forma como o teletrabalho previsto pela reforma já havia sido tratado por interpretação analógica do regime de sobreaviso dos ferroviários.

Acerca da terceirização, há alguns anos foi publicada a súmula 331 do TST que previa:

I. A contratação de trabalhadores por empresa interposta é ilegal, formando-se o vínculo diretamente com o tomador de serviços salvo no caso de trabalho temporário (Lei n. 6.019, de 3.1.1974).
II. A contratação irregular de trabalhador, através de empresa interposta, não gera vínculo de emprego com os Órgãos da Administração Pública Direta, Indireta ou Fundacional (art. 37, II, da Constituição da República).
III. Não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância (Lei 7.102, de 20.6.1983), de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade – meio do tomador dos serviços, desde que inexista a pessoalidade e a subordinação direta.
IV. O inadimplemento das obrigações trabalhistas, por parte do empregador, implica na responsabilidade subsidiária do tomador de serviços, quanto àquelas obrigações, inclusive quanto aos órgãos da administração direta, das autarquias, das fundações públicas e das sociedades de economia mista, desde que hajam participado da relação processual e constem também do título executivo judicial (art. 71 da Lei 8.666/93). (Alterado pela Res. N. 96, de 11.9.2000, DJ 29.9.2000)[1]

A reforma trabalhista inovou ao estabelecer que a terceirização não seria lícita apenas quando a empresa atuasse em atividade meio, mas em atividade fim da empresa contratante. Na prática amplia substancialmente as possibilidades de terceirização enquanto se sabe que o regime de trabalho e a remuneração dos terceirizados são substancialmente reduzidos. 

Aspectos Históricos

A justiça do trabalho foi criada a partir da constituição de 1934 na Era Vargas (1930-45). Num primeiro momento a justiça laboral tinha caráter do tipo administrativo e era ligada ao poder executivo. Haviam juízes classistas, com representação de capital e trabalho e a execução das decisões eram realizadas na justiça comum. Em 1940 a justiça do trabalho ganha maior autonomia . Quando da promulgação da Constituição Federal de 1946, durante o governo do liberal e anti-comunista de Dutra, a justiça do trabalho passou a ser órgão integrante do Poder Judiciário da União desfrutando a partir daqui de condição efetiva de justiça especializada. (Houve com a emenda constitucional 45/2004 ampliação importante da competência da justiça do trabalho com as mudanças do art. 114 da CF/88 que vale a pena ser conhecido). 

Como explicar o atual cenário em que passados meio século, parece haver movimento no sentido de regressão ao séc. XIX, equiparando o direito do trabalho e as relações de empregos equiparadas às regras do direito privado (civil) desconsiderando o princípio da proteção ou especificidades que informam o contrato de trabalho[2]? Como é possível que haja discussões abertas sobre o fim da justiça do trabalho sem que haja qualquer reação dos diretamente envolvido, especialmente os sindicatos dos trabalhadores, face ao risco real e iminente da retirada de mais direitos? Certamente, o cenário aberto pelo fim da 2ª Guerra Mundial, quando o exército vermelho destruiu militarmente o nazi-fascismo e com a consolidação mundial da URSS, estes eventos criaram melhores condições para os trabalhadores obterem direitos e fazerem promover reformas sociais a seu favor. A reforma trabalhista de 2017 passou praticamente sem luta, mas nada significa que o gigantesco proletariado brasileiro permanecerá indefinidamente passivo diante da atual situação.  






[1] É comum encontrar referência a uma suposta nova etapa do direito de forma geral ou ao menos do direito constitucional a partir da expressão “pós-positivismo”. Ainda que haja uma quase unanimidade acerca da auto-aplicabilidade de direitos e garantias fundamentais previstos na constituição, sabemos que, dado o alto nível de arbitrariedade institucional que grassa num país desigual como o Brasil, nem as normas constitucionais nem os princípios (dignidade humana, presunção de inocência, vedação do uso de provas ilícitas) são observados e concretizados no país.   
[2] É o que se constata entre outros do art. 8º da CLT alterado pela reforma: § 3o  No exame de convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho analisará exclusivamente a conformidade dos elementos essenciais do negócio jurídico, respeitado o disposto no art. 104 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), e balizará sua atuação pelo princípio da intervenção mínima na autonomia da vontade coletiva.                (Incluído pela Lei nº 13.467, de 2017)         (Vigência)

domingo, 2 de dezembro de 2018

“Comentários à Reforma Trabalhista” – Homero Batista Mateus da Silva


“Comentários à Reforma Trabalhista” – Homero Batista Mateus da Silva


Resenha Livro - “Comentários à Reforma Trabalhista” – Homero Batista Mateus da Silva – Ed. Revista dos Tribunais

Há uma certa percepção generalizada no pensamento social da esquerda que, influenciado pelo “Contribuição à Crítica da Economia Política[1]” (1859) de Marx, irá reduzir o problema do direito a uma mera expressão ou superestrutura dos movimentos econômicos – o direito é o reflexo ou projeção da dominação econômica cuja expressão jurídica mais importante é o da propriedade privada. Seria a partir da contribuição de Pashukanis no contexto da Revolução Russa que se constataria como o Direito, mais do que uma expressão de dominação político ideológica do estado capitalista, está antes no próprio DNA do modo de produção – não só resultado das alterações societárias produzidas pela indústria, pelo trabalho assalariado e a conformação do estado nacional, mas como elemento que garante a própria reprodução societária capitalista. Neste sentido o direito tal como o conhecemos é especificamente capitalista, afirmará Pashukanis. Institutos jurídicos como a noção de sujeito de direito e a existência de um Estado Nacional que garanta segurança jurídica para as operações econômicas exige que não se reduza o alcance do estudo das leis ao âmbito de sua inserção na história e na sociedade mas produza também discussões sobre o direito positivo em si.

Certamente, levará algum tempo para se descobrir quais serão os efeitos concretos das muitas mudanças na legislação trabalhista durante o inverno do ano de 2017 no Brasil. Um estudo mais acurado das mudanças legislativas deve ter como premissa o contexto político associado ao golpe de estado e a construção de uma maioria parlamentar que propiciasse a retirada de direitos sem a devida reação dos trabalhadores do Brasil. A dura e amarga verdade é que o trabalho insalubre a ser exercido pela mulher grávida (art. 394 CLT), a jornada de 12 por 36 igualmente em ambientes de insalubridade, a formalização do bico por meio do trabalho intermitente ou a relativização do princípio da irredutibilidade salarial (art. 444 CLT)  entre outros, foram discutidas, aprovadas e convertidas em lei numa velocidade até então não vista e sem a reação à altura dos trabalhadores e, especialmente, dos sindicatos. Não houve sequer tempo para que as próprias instituições do estado capitalista assimilassem as mudanças: enquanto via de regra a vacatio legis da lei (como no código civil de 2002 ou o código de processo civil de 2015) duram 1 ano, o tempo entre a publicação e vigência da reforma trabalhista foi de apenas 180 dias.  

Ainda que o objetivo destes comentários seja o de discutir a reforma legislativa de um ponto de vista estritamente jurídico, fica evidente como as mudanças procuraram mostrar-se como suposto meio de tolher o desemprego e modernizar as relações no trabalho. Falsificação do problema nos dois casos. Com relação à urgência, observa-se que a mesma esteve longe de atender a reais necessidades de mudanças/reformas ao menos no que tange os interesses dos trabalhadores. Para ficar com dois exemplos: o capítulo da CLT acerca de saúde e segurança do trabalho que disciplina os efeitos do trabalho sob condições insalubres (calor, frio, contatos com radiação, agentes biológicos, etc.) data ainda dos anos 1970 enquanto os estudos sobre o tema avançaram bastante nos últimos anos – todavia, em nada foi mudada as normas da CLT e deverão ser mantidas as resoluções do MTE acerca do tempo de exposição, grau de insalubridade, espécies de agentes associados ao adoecimento no trabalho etc. Por outro lado, o adicional de penosidade do trabalho, previsto na CF/88 no art. 7º XXIII, ainda carece de regulamentação mas, pelo visto, passou ao largo das preocupações do legislador.

Como se sabe, antes da queda da presidenta Dilma, o governo estabeleceu um movimento sinuoso e equívoco no sentido de procurar conciliar os interesses entre o governo e setores da burguesia ainda indecisos quanto à exigência da derrubada pelo golpe de estado. Foi neste contexto em que se deu a nomeação de Levy, um liberal nomeado ministro da economia. O que se esquece é que Dilma igualmente sinalizou ataques que de certa forma prenunciaram artigos de lei mudados pela reforma trabalhista. Esteve em pauta no governo uma definição legislativa para tema que vinha sendo tratado pela jurisprudência trabalhista em face do vazio legislativo – trata-se da possibilidade de ampliação da terceirização, não só desenvolvida na atividade meio, mas agora desenvolvida na atividade fim da empresa. 

Outra discussão que já havia sido encampado pelo governo derrubado envolve as normas das Convenções e Acordos Coletivos de Trabalho. Até então a negociação coletiva (que é a realizada entre sindicato patronal e de trabalhadores ou entre sindicato de trabalhadores e empresa) não poderia estipular normas com menos direitos do que o previsto em lei. O art. 611-A  muda este panorama:

''Art. 611-A. A convenção coletiva e o acordo coletivo de trabalho têm prevalência sobre a lei quando, entre outros, dispuserem sobre:
I – pacto quanto à jornada de trabalho, observados os limites constitucionais;
II – banco de horas anual;
III – intervalo intrajornada, respeitado o limite mínimo de trinta minutos para jornadas superiores a seis horas;
IV – adesão ao Programa Seguro-Emprego (PSE), de que trata a lei 13.189, de 19 de novembro de 2015;
V – plano de cargos, salários e funções compatíveis com a condição pessoal do empregado, bem como identificação dos cargos que se enquadram como funções de confiança;
VI – regulamento empresarial;
VII – representante dos trabalhadores no local de trabalho;
VIII – teletrabalho, regime de sobreaviso, e trabalho intermitente;
IX – remuneração por produtividade, incluídas as gorjetas percebidas pelo empregado, e remuneração por desempenho individual;
X – modalidade de registro de jornada de trabalho;
XI – troca do dia de feriado;
XII – enquadramento do grau de insalubridade;
XIII – prorrogação de jornada em ambientes insalubres, sem licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho;
XIV – prêmios de incentivo em bens ou serviços, eventualmente concedidos em programas de incentivo;
XV – participação nos lucros ou resultados da empresa.
§ 1º No exame da convenção coletiva ou do acordo coletivo de trabalho, a Justiça do Trabalho observará o disposto no § 3º do art. 8º desta Consolidação.
§ 2º A inexistência de expressa indicação de contrapartidas recíprocas em convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho não ensejará sua nulidade por não caracterizar um vício do negócio jurídico.
§ 3º Se for pactuada cláusula que reduza o salário ou a jornada, a convenção coletiva ou o acordo coletivo de trabalho deverão prever a proteção dos empregados contra dispensa imotivada durante o prazo de vigência do instrumento coletivo.
§ 4º Na hipótese de procedência de ação anulatória de cláusula de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho, quando houver a cláusula compensatória, esta deverá ser igualmente anulada, sem repetição do indébito.
§ 5º Os sindicatos subscritores de convenção coletiva ou de acordo coletivo de trabalho deverão participar, como litisconsortes necessários, em ação individual ou coletiva, que tenha como objeto a anulação de cláusulas desses instrumentos. ''

Observe-se que a Reforma reitera em mais de um artigo o princípio da intervenção mínima à autonomia coletiva – isto está expresso no art. 8º § 3º da CLT, igualmente reformado. Pelo requisito, o judiciário deveria se ater a observar os requisitos formais da norma coletiva de trabalho se omitindo quanto ao mérito.  Um sindicato poderia autorizar a contratação de mão de obra infantil, observados os requisitos formais de elaboração da norma coletiva?

Seja como for, ainda no governo Dilma, houve resistência nas ruas, culminando em grandes atos no largo da batata (SP) contra as reformas. Aqueles movimentos não tinham clareza ou convicção de que o governo do partido dos trabalhadores estava em risco, mas, por outro lado, revelaram-se suficientes para intimidar o governo a engavetar o chamado projeto ACE (acordo coletivo especial, apoiado pela CUT) bem como não passar o projeto da terceirização. Por que então um pacote de ataques aos direitos dos trabalhadores desta feita por um governo com zero popularidade foi concretizado com tanta facilidade e sem resistência?

Talvez aqui não haja exagero na afirmação do Juiz do Trabalho Jorge Souto Maior de que a reforma trabalhista de 2017 poderia ser reduzida em uma única norma fundamental – fica extinto o direito do trabalho no Brasil. Cobrança de honorários de sucumbência ao reclamante trabalhador, fim da contribuição sindical, possibilidade (ainda que em casos por ora restritos) de arbitragem na justiça do trabalho, a rescisão contratual por mútuo acordo, o fim a ultraatividade das normas coletivas do trabalho que deixam de integrar de forma permanente o contrato de trabalho; ataques ao quanto entendido e sumulado pelos tribunais superiores e regras draconianas de produção de súmulas parecem expressar um movimento inverso na história, de reaproximação do direito do trabalho com o direito civil, do direito processual do trabalho ao direito processual civil, do século XXI ao século XIX. 

Um contrato de trabalho não deveria guardar a mais pálida coincidências com um contrato entre particulares como um contrato de comodato ou compra e venda. A margem de escolha de um trabalhador face a seu empregador não deveria ser encarada sobre o viés do pacta sunt servanda. O princípio protetor que reconhece a vulnerabilidade e hipossuficiência do trabalhador face ao empregador são mitigados – talvez aqui o caso mais emblemático seja o do trabalho intermitente, um bico oficial altamente precarizado em que empregado registrado não tem assegurado por até um ano o salário, o trabalho e os benefícios previdenciários.

Temos muito o que estudar e averiguar, particularmente sobre os impactos da reforma trabalhista nos tribunais, a postura dos juízes e das cortes superiores com função de unificar nacionalmente a jurisprudência. Muitas normas serão submetidas ao crivo de constitucionalidade pelo STF. Súmulas deverão ser moduladas e canceladas. A única certeza é a de que apenas uma força material que se baseie na mobilização popular poderá reverter a atual situação defensiva do movimento de trabalhadores no brasil incluindo a revogação da Lei 13.467/17.
  



[1] Livro publicado pouco antes do I Volume do Capital.

sexta-feira, 16 de novembro de 2018

“O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” – Karl Marx


“O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” – Karl Marx



Resenha Livro – “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte” – Karl Marx – Editora Boitempo

Durante algum tempo foi comum certa leitura das obras de Marx sem relacionar os seus trabalhos com a evolução do seu próprio pensamento, inicialmente voltado a temas do direito e da filosofia e ao término de sua vida com o estudo mais detido da história e da economia política. Há parcela de estudiosos de Marx, tendo como referência as ideias de Althusser, que entende haver um corte epistemológico entre um jovem Marx e um Marx maduro tendo como divisor o “Ideologia Alemã” de 1846, publicado somente em 1932 na URSS.

Este  “18 de Brumário” foi escrito entre 1851-2, logo após os eventos em França narrados no trabalho. O livro aborda a 2ª República Francesa de 1841-51, um movimento que se iniciou com a deposição do Rei Luís Felipe, a edificação de uma Assembleia Constituinte para, numa dinâmica descendente, fazer com que a revolução tolha paulatinamente socialistas e trabalhadores, pequeno burgueses democratas, republicanos, para a posterior constituição de hegemonia do Partido da Ordem (formado por monarquistas) e o posterior golpe de estado do sobrinho de Napoleão Bonaparte. A história escrita por Marx já revela de forma nítida a aplicação do materialismo histórico e dialético sobre os eventos em França, destacando o movimento de lutas das classes e suas expressões políticas e partidárias.  

“Sob os Bourbons haviam governado a grande propriedade fundiária com os seus padrecos e lacaios, sob os Orleans as altas finanças, a grande indústria, o grande comércio, isto é, o capital com o seu séquito de advogados, professores e grandíloquos. O reinado legitimo foi apenas a expressão política do domínio tradicional dos senhores de terra, assim como a Monarquia de Julho havia sido apenas a expressão política do domínio  usurpado dos “parveneus” (novos ricos) burgueses. Portanto, o que mantinha essas frações separadas não foram os seus assim chamados princípios, mas as suas condições materiais de existência, dois tipos diferentes de propriedade, foi a antiga contraposição de cidade e campo, a rivalidade entre capital e propriedade fundiária”


Por sinal, algo que marca aquele período é uma dinâmica de opostos: o bonapartismo é a forma política do caos e da base social do lumpesinato e sua missão histórica aparente é garantir a ordem; o roubou é a forma de salvar a propriedade burguesa; o sufrágio universal elege um ditador (Bonaparte). Monarquistas dirigem a república e a eleição de Bonaparte pelo sufrágio universal coloca de joelhos a Assembleia Nacional. Nessa dinâmica são representadas as lutas das classes cuja expressão partidária revela frequentemente aspectos distorcidos da real arena de luta. Por exemplo. A crise interna do Partido da Ordem formado por monarquistas defensores das dinastias Bourbon (legitimistas) e Orleans, na revolução, expressam os interesses conflituosos da burguesia da cidade contra a do campo.

O livro em análise igualmente seria frequentemente recorrente no vocabulário dos marxistas quanto à apropriação de conceitos como cretinismo parlamentar e especialmente “bonapartismo”. Alguns inclusive analisam a dinâmica histórica do Brasil com a vitória eleitoral da extrema direita como a possibilidade da dinâmica de uma etapa política bonapartista. Parece-nos que tal conclusão não se sustenta comparando uma aspecto decisivo da constituição histórica francesa: crise da dominação burguesa aberta por um movimento que se inicia revolucionário mas que logo é dirigido pela contra-revolução. A base social do bonapartismo é o lumpesinato, os setores mais atrasados dos camponeses ainda influenciados pelo pensamento medieval, além das forças armadas e das classes burocráticas que possuem um interesse existencial na preservação do regime. Por outro lado, o texto de Marx sugere que a figura simplória e patética de Bonaparte é não só funcional mas necessária para garantir a dominação geral da burguesia e da propriedade. Em outras palavras a luta de classes na França criou as condições próprias para que um personagem medíocre e grotesco seja chamado a desempenhar papel de decisão. Tal fato culmina-se em 01.11.1851 com o golpe contra-revolucionário lupem de Bonaparte através de movimento regado à propina de álcool e salsichas:

“Cromwell, ao dissolver o Parlamento Longo, foi sozinho até o centro deste, tirou o relógio do bolso para que ele não subsistisse nem por um minuto além do prazo por ele estipulado e enxotou cada um dos parlamentares com insultos divertidos e bem humorados. Napoleão, não possuindo a estatura do seu modelo, ao menos foi até o Corpo Legislativo no dia 18 de Brumário e leu em voz alta, ainda que embargada, a sentença de morte dele. O segundo Bonaparte, que, aliás, estava sob um Poder Executivo bem diferente do de Cromwell ou Napoleão, não buscou o seu modelo nos anais da história mundial, mas nos anais da Sociedade 10 de Dezembro, nos anais da jurisprudência criminal. Em seguida, ele roubou 25 milhões de  francos do banco da França, comprou o general Magnan com 1 milhão e os soldados, um por um, com 15 francos e cachaça, encontrou-se secretamente com os seus comparsas como um ladrão durante a noite, mandou invadir a casa dos líderes mais perigosos do Parlamento e sequestrar Cavaignac, Lamoricieree, Le Flo, Changarnier, Charras, Thiers, Baze etc. enquanto dormiam, ordenou que as tropas ocupasses os postos-chave de Paris bem como o prédio do Parlamento, e logo pela manhã mandou afixar cartazes vistosos em todos os muros, anunciando a dissolução da Assembleia Nacional e a decretação do estado de sítio no département de Seine. Pouco depois, inseriu um documento falso no Moniteur segundo o qual nomes influentes do Parlamento teriam se agrupado em torno dele numa consulta oficial”.

Se a história se repete, primeiro como tragédia e depois como farsa, poderíamos dizer aqui das dinâmicas das duas revoluções francesas – a de 1789 e a de 1848 – como ocasiões em que a classe burguesa na revolução teve direção contraditória. Na primeira a burguesia desempenha um papel histórico revolucionário para a derrubada do antigo regime criando as condições políticas e jurídicas para o desenvolvimento capitalista e se servindo de toda uma tradição filosófica iluminista que desafiou os preconceitos medievais e religiosos em diversos lugares do mundo. Já em 1848, a burguesia francesa teve em sua retaguarda os socialistas e democratas que em fevereiro daquele ano derrubaram a monarquia de Luís Felipe. Em pouco tempo a burguesia assumirá uma linha contra-revolucionário: naquele momento esta classe social não aspira a mudanças societárias  mas à ordem. O sobrinho de Napoleão é uma paródia do tio, uma caricatura que diz respeito à uma nova etapa em que a burguesia revela ao mesmo tempo sua condição de classe dominante e ao mesmo tempo de uma classe frágil, dividida e que eventualmente cede à chantagem de lideranças ocasionais em nome da ordem e da segurança da propriedade. A caricatura de Napoleão deve nos servir como alerta de que já hoje nada de bom e progressivo poderá vir do capitalismo e da proposta societária burguesa.