sábado, 31 de outubro de 2015

“Caio Prado Júnior – O Sentido da Revolução”- Lincoln Secco

“Caio Prado Júnior – O Sentido da Revolução”- Lincoln Secco



Resenha Livro – 198 -  “Caio Prado Júnior – O Sentido da Revolução” – Ed. Boitempo – Coleção Retratos Paulicéia 

Existem diversas formas de se traçar a biografia de um grande vulto da história. Uma possibilidade, talvez de menor valor científico, corresponde a fazer um inventário enciclopédico dos principais feitos do personagem ao longo da história, ficando a cargo do leitor extrair a relevância histórica do biografado. 

Uma biografia como um gênero da história enquanto disciplina é muito mais do que isso. Envolve em primeiro lugar a seleção de indivíduos dignos de serem objeto de uma biografia, o que sem dúvida é o caso de Caio Prado Júnior. Este foi historiador, economista, geógrafo,  filósofo e ativista do partido comunista, além de parlamentar. Destacou-se como historiador do Brasil, praticamente fundado os estudos de nosso passado colonial desde bases materialistas. Projetou-se na história como interlocutor de grandes debates, particularmente sobre a questão agrária, e influenciou o rumo dos acontecimentos da nossa trajetória, como um intelectual orgânico, seja na academia, seja como militante partidário, seja no parlamento. 

Outrossim, não só pela escolha temática uma biografia tem o condão de ser classificada como um ramo da história. Ao lermos sobre a vida, a trajetória pessoal e militante, as ideias e os impactos de pensamento e produção teórica de Caio Prado, o biógrafo Lincoln Secco nos oferece um panorama da história das ideias do Brasil entre os anos de 1930 desde a geração modernista até os anos 1970-1980, até mesmo especificamente a evolução dos embates teóricos específicos da esquerda e do PCB dos quais Caio Prado se envolveu, mais diretamente a partir de sua adesão em 1931 até a casacão de seu mandato em 1948. A biografia é um gênero da história quando a história do indivíduo se confunde com a processualidade ou a dinâmica dos acontecimentos mais gerais em que está inserida, sendo como um ponto cardeal da história das ideias e da cultura, bem como a expressão de diversos contextos históricos aparentemente sem sentido. 

Caio Prado Júnior vem de origem de família rica e tradicional de São Paulo. Por um lado a família Prado, da qual sairiam proprietários de fazendas de cafés, prefeito da cidade e outros parlamentares e também do ramo por parte de avós da família Conde Álvares Penteado, que ainda hoje mantém fundação conhecida na cidade. Importante ressaltar que nas vezes em que esteve preso por envolvimento com atividades políticas ligadas ao PCB, Caio nunca se serviu de suas influências familiares para se safar das penas em detrimento dos demais companheiros – foi preso pela primeira vez em 1935, quatro anos após a adesão ao PCB, em 1948, um ano após sua cassação de deputado constituinte em São Paulo e depois na ditadura militar nos anos 1970. Quando muito, sua ligação com o partido serviu de entreveros na família e fontes de volumosos empréstimos junto ao partido.

É de se colocar que a adesão de Caio Prado, como filho das classes mais abastadas de São Paulo, era vista com desconfiança pelo partido, principalmente em sua fase mais obreirista, durante os anos de 1930, com a ascensão de Prestes na direção do PCB. Lincoln Secco acredita que sua adesão se dava por uma crença de que aquele partido sinalizava um projeto de modernização, uma perspectiva civilizatória, O que tornava explicável aquele aparente paradoxo – um filho da elite mais bastarda, recém saído da tradicional Faculdade de Direito do Largo São Francisco aderindo ao partido do proletariado:

“Tendo alta origem social, ele (Caio Prado Júnior) mais de uma vez falou acerca do quanto a degradação dos que estavam embaixo degradava igualmente os que estavam em cima. (....) Caio Prado Júnior até o fim na mesma linha daquele discurso antes citado: compreendendo que havia uma relação proporcional entre a miséria moral e cultural da população e o baixo nível político das classes dominantes. Tal situação, para ele, não interessava ambas as classes. Nesse sentido, ele se filia muito mais a uma tradição de contestação intelectual  que remonta a José Bonifácio – que via na degradação do escravo a degradação do próprio senhor – e que passa por Manoel Bonfim e outros  que escolheram a defesa da “ das classes dos desprotegidos”. 

Posteriormente, como deputado, ficaria assombrado como mesmo os supostos representantes da classe dirigente o faziam de modo distorcido, prevalecendo as relações patrimoniais e de compadrio.

Caio Prado Júnior enquanto deputado da constituinte não entendia que o papel dos comunistas era o de mera agitação e denuncia do parlamento burguês. Com formação em direito, passou à minucioso estudo das leis financeiras e tributárias e fez projeto de lei que incidisse tributos sobre as grandes propriedades rurais, e diminuísse a oneração fiscal sobre a circulação de mercadorias, desenvolvendo o consumo interno e inviabilizando economicamente terras ociosas que deveriam ser destinadas ao uso produtivo. Nesse sentido, Caio Prado sempre tinha uma orientação prática, tendo como horizonte estratégico o aumento do nível de renda popular, sem demagogias. Por isso criticou asperamente João Goulart (que neste ponto era apoiado pelo PCB) por sua infrutífera proposta de reforma agrária nas beiras das rodovias. O que se quer destacar aqui é que a originalidade de Caio Prado Jr., que depois se traduziria em seus estudos e análises sobre o Brasil, estava sempre em fazer aquilo que Lênin colocava como “análise concreta da situação concreta” – assim, chegou à conclusão de que não havia feudalismo no Brasil partindo de premissas da nossa realidade e não de premissas teóricas com que Marx analisou a Europa, especificamente o campesinato francês. 

Como se sabe, o marxismo no Brasil foi basicamente recepcionado pelo Partido Comunista do Brasil sob os auspícios da Internacional Comunista. Sob esta perspectiva, nasceram tensões entre o pensamento original de Caio Prado e o partido. A verdade é que, ainda que o historiador tenha sido deputado nos anos 1940, ele nunca exerceu (e nunca pareceu querer exercer) um papel de liderança no PCB. Há depoimentos de que nas reuniões costumava ficar calado ou fazer intervenções pontuais, de cunho prático. Como dito, havia desconfianças em relação a ele no partido  e, quando Caio Prado Jr. já era um intelectual de renome, atuava de forma independente através de uma revista de nome de sua próprio editora, a Brasiliense. 

De qualquer forma, um dos grandes pontos do marxismo em Caio Prado Jr. é a superação das esquematizações de cunho quase positivista do nosso marxismo primitivo:

“Apesar desta tradição intelectual pobre, Caio Prado Júnior partiu desde cedo em busca de interpretar sem copiar. Numa carta a Lívio Xavier, de 20 de setembro de 1933, ele escreveu: ‘ É um critério absolutamente errado este de procurar enquadrar artificialmente os fatos brasileiros nos esquemas que Marx traçou para a Europa”. E foi isso que procurou evitar em sua obra. Mais tarde, diria com exagero: “Somos ainda, no âmago de nossa racionalidade, escolásticos inconscientes. Herdamos isso de nossa mãe pátria portuguesa, esse país que, ao contrário do restante da Europa, não teve Renascimento, e prolongou pelos tempos modernos afora o respeito aristotélico dos textos consagrados”. 

Afora o forte tom irônico, certamente o próprio Marx em vida zombaria de seguidores de sua obra que  dela fizessem uma escolástica, perdendo de vida a preocupação científica que o autor alemão procurou dar ao seu trabalho. O compromisso do historiador paulista bem como ativista do PCB foi com a busca pela verdade, o que aliás fez com que dele nascesse o projeto de lei de incentivo à pesquisa científica que hoje conhecemos em São Paulo como Fapesp. 

Outras grandes contribuições de Caio Prado Júnior envolvem sua interpretação pioneira sobre o passado colonial e o conceito de sentido da colonização – que, segundo  Lincoln Secco ainda é parcialmente válido em pleno séc. XXI, para a infelicidade do país; também citamos o  trabalho como editor na Brasiliense e seu enorme volume de produção acadêmica. Como sempre foi coerente com sua visão social de mundo, a universidade jamais soube aproveitá-lo – Caio Prado foi aprovado como professor para lecionar nas faculdades de Direito da USP e na Faculdade de História e Geografia da mesma instituição mas, com o período de exceção, seu nome foi rejeitado. 

Ainda que não se concorde com suas ideias, os revolucionários devem saudar Caio. Caio Prado Jr. deve ser reivindicado pela somatória de seus predicados (economista, geógrafo, historiador, filósofo, parlamentar, militante do PCB) e, mais importante, como alguém que emana luz pelos caminhos da Revolução Brasileiro, por sinal o título de um se seus mais polêmicos e importantes  livros. 

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