sábado, 14 de novembro de 2015

“João Miguel” – Rachel de Queiroz

“João Miguel” – Rachel de Queiroz 




Resenha Livro – 201 -“João Miguel” – Rachel de Queiroz – Ed. Siciliano


Rachel de Queiroz é um dos principais expoentes da 2ª fase do modernismo literário no Brasil. O modernismo é um movimento artístico que transcende a literatura e que tem como referência a Semana de Arte Moderna de 1922. Representa um marco na cultura Brasileira ao indicar o esforço de escritores, poetas e demais artistas em criarem uma arte genuinamente nacional, não só em sua temática, mas com autonomia quanto ao seu estilo. A título de exemplo podemos citar “Macunaíma” de Mário de Andrade, com a reprodução da oralidade e da forma de expressão popular e mesmo a conformação de um herói brasileiro que remete ao índio preguiçoso que vive conforme as contingências da vida uma aventura perpassando centros urbanos e paisagens de densas florestas tropicais.

A 2ª fase do modernismo de certa forma dá uma solução de continuidade a este nacionalismo, desta vez partindo para o regionalismo literário, especificamente da região nordeste, com uma específica presença da crítica social. São deste período obras de autores como Graciliano Ramos e seu “Vida Secas”, Amando Fontes e seu “Corumbas”, José Lins do Rego e seu “Fogo Morto”, além de Rachel de Queiroz. 

“João Miguel” foi publicado em 1932, é o segundo romance de autoria da escritora, restando evidente os traços mais evidentes dos escritores daquela geração: o foco da narrativa junto a personagens das classes populares, a crítica social (que se remete neste romance especificamente ao instituto da prisão), os traços de oralidade que permeiam a linguagem popular e o regionalismo, de uma forma geral. 

A crítica literária envolve mais do que uma mera atividade de classificação formal das obras dignas de nota. Em primeiro lugar, a crítica literária já deve ter como ponto de partida a escolha de quais obras devem ter alguma cidadania literária, possuir alguma relevância, seja poética, seja histórica, a partir da qual ela deverá ter como ponto de partida para reflexões e posteriores discussões. No caso de Rachel de Queiroz, bem como da maior parte dos autores  daquela geração de 1930 supracitados (Graciliano Ramos, José Lins do Rego, etc.), o resgate de suas obras e interpretação tem estes dois interesse, tanto poéticos quanto históricos. 

Neste último aspecto (histórico) não é muito difícil imaginar os motivos: os modernistas seguem um estilo bastante objetivo, próximo ao realismo literário, especialmente quando descrevem o ambiente das cenas, os traços físicos dos personagens e suas interações. No caso de “João Miguel”, temos uma história de um pobre cabra sem pai nem mãe, que sempre viveu da enxada e que, após uma briga no baile, depois de alguns goles de cachaça, mata outro cabra e é levado à prisão. 

Pelo estilo dos modernistas como Rachel, o leitor é levado a conhecer as instalações da prisão, desde células individuais, presos dormindo em suas redes, ou fazendo trabalhos artesanais, o transito relativamente livre dos detentos conforme um sistema informal de conquista de confiança junto ao “seu Doca”, que seria o equivalente ao Diretor do Estabelecimento, presos homens e mulheres juntos. 

O que queremos concluir aqui é que a objetividade seja na descrição do cenário seja na forma de contar a história cria no leitor atual um grande interesse histórico em conhecer, por exemplo, qual é a realidade carcerária do Brasil numa cidade (Baturité do Riachão) da caatinga nordestina nos idos do início do séc. XX. Aliás, aqui, a leitura do romance se combina com alguns pressupostos da história do Brasil: o ambiente em que se dá a narrativa é de um Brasil ainda distante de qualquer traço de modernidade, em que o poder econômico se funda no poder do latifúndio, o Brasil dos coronéis, onde o próprio João Miguel já reconhece, que apenas o pobre vai para a cadeia. A ausência de modernidade também diz respeito a uma cultura patriarcal baseada em relações de favor: não existe distribuição de comida aos presos, a não ser mediante algum pagamento à cozinheira, a disciplina interna é toda ela centralizada na figura de seu Doca que dirige o estabelecimento baseado em relações de confiança pessoal. 

Como dizíamos, para além do interesse histórico, uma crítica literária pode também ser de interesse quando remete a questões mais universais: trata-se do efeito poético da obra de arte que teria o condão de sensibilizar o leitor, proporcionar cogitações ou reflexões mais ou menos relevantes e que vão além do seu tempo. Grandes obras de arte costumar sobreviver ao tempo justamente em função desta característica particular. João Miguel também é uma romance com passagens psicológicas importantes. Esta é uma característica decisiva de autores como Rachel de Queiroz ou Graciliano Ramos. Foram capazes de promover uma certa cidadania filosófica a personagem de origem popular como retirantes nordestinos, ou no caso de “João Miguel”, a um simples preso, que mesmo sem estudo e com uma fala simples, é atormentado por sentimentos que revelam toda uma complexidade pessoal, provando que todo ser humano é um poço infinito de contradições – e desmentido certa concepção elitista e mesmo reacionária que vai no sentido de folclorizar o povo, entender que aquele que sofre é aquele que tem mais conhecimento e cultura. A título de exemplo, vejamos a passagem em que João Miguel sentia vergonha da sua indiferença pela falta de remorso:

“E então João Miguel sentia, como um remorso, a vergonha da sua indiferença. 
Quer dizer que a gente mata um homem, vira um criminoso – um criminoso! – e não fica diferente, sente a cabeça no mesmo lugar, fica com o mesmo coração?
Quando, antes, pensava que se talvez um dia chegasse a se desgraçar, a matar um vivente, haveria de ficar toda a vida com remorso, com a lembrança do defunto, do sangue, no sentido. E estava ali, sentindo o João Miguel de ontem e de sempre”. 

É de se destacar portanto que por meio do narrador afere-se que João Miguel, alguém que viveu sempre no roçado, abandonado sem pai nem mãe, semi-letrado, diante de um narrador capaz de captar seus pensamentos (oniconsciente) é bastante sensível, um traço de inteligência, aqui entendida em seu sentido específico de capacidade de compreender.  Esta característica de buscar junto ao povo seus protagonistas e dele aferir-se histórias com belas projeções poéticas é o que marca a escola modernista, especialmente desde a sua segunda fase regionalista. 

Ao visitar uma loja de revistas e livros na rodoviária do Terminal Rodoviário do Tietê em São Paulo, ou mesmo ao se constatar em busca de livros mais vendidos (em que pese a seriedade de tais pesquisas) não há autores nacionais e muito menos escritores que têm o condão de mudar a visão social de mundo dos leitores, acrescentar conhecimentos acerta da história social do país, promover cogitações filosóficas de maiores alcances. Livros de Machado de Assis e Graciliano Ramos deveria estar sempre dentre os primeiros mais vendidos, os brasileiros deveriam ter mais orgulho de escritores como Rachel de Queiroz. Este blog é um pequeno, minúsculo, esforço para se reverter esta triste situação. 



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