“Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna
Resenha Livro - “Auto
da Compadecida” – Ariano Suassuna – 34ª Ed. Nova Fronteira
“João Grilo – Jesus?
Manuel – Sim.
João Grilo – Mas espere,
o senhor que é Jesus?
Manuel – Sou.
João Grilo – Aquele Jesus
a quem chamavam de Cristo?
Jesus – A quem chamavam,
não, que era Cristo. Sou, por que?
João Grilo – Porque...não
é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos
queimado.
Bispo – Cala-te,
atrevido.
Manuel – Cale-se você.
Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de
minha igreja, mundano, autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita
oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua
obrigação era ser humilde, porque quanto mais alta é a função, mais generosidade
e virtude requer. Que direito tem você de repreender João porque falou comigo
com certa intimidade? João foi um pobre em vida e provou sua sinceridade
exibindo o seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu
essa admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou.
João Grilo – Muito bem.
Falou pouco mas falou bonito. A cor não pode ser das melhores, mas o senhor fala
bem que dá gosto”
O Auto da Compadecida é
peça teatral escrita pelo paraibano Ariano Suassuna no ano de 1955. Seria a
primeira de uma série de comédias que seriam escritas posteriormente: “O Casamento
Suspeitoso” (1957), “O Santo e a Porca” (1957), “A Pena e a Lei” (1959) e “Farsa
da Boa Preguiça” (1960).
Nas notas do autor que
acompanham as falas dos personagens, indicando propostas de encenação, fica
patente a intenção de Suassuna na representação
do enredo na forma de circo.
É um palhaço que abre o
espetáculo e anuncia cada um dos atos, inclusive engajando os atores na
arrumação das cenas. O cenário proposto pelo escritor não poderia ser feito de
forma mais simples.
Logo na introdução,
propõe Suassuna:
“O Auto da Compadecida
foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste. Sua
encenação deve, portanto, seguia a maior linha de simplicidade, dentro do
espírito em que foi concebido e realizado. O cenário (usado na encenação como
um picadeiro de circo, numa ideia excelente de Clênio Wanderley, que a peça
sugeria) pode apresentar uma entrada de igreja à direita, com uma pequena
baulastrada ao fundo, uma vez que o centro do palco representa um desses pátios
comuns nas igrejas do interior.”.
O paralelo com o circo
também pode se referir aos dois personagens principais, João Grilo e Chicó. De
certa forma, ele representam aquele modelo circense dos dois palhaços. João
Grilo sendo o mais espertalhão, que se mete em situações arriscadas. E Chicó o
palhaço mais abobado, que se acovarda e, não raro, atrapalha os planos do seu
parceiros.
A história suscita uma
tradição popular de literatura de cordel. As passagens cômicas do gato que “descome”
moedas, a falsa ressurreição de mortos pelo toque de uma gaita e o enterro de
um cachorro cantado em latim são todas oriundas da cultura popular nordestina.
Neste caso se trata de uma
cultura oral: os cordéis, diferentemente dos livros, não foram feitos para
serem lidos, mas para serem declamados ao público na praça. A proposta do
Teatro de Suassuna é a mesma. Ao término do espetáculo, o palhaço diz que quem
não pode pagar pelo show, como recompensa, que pague com aplausos.
Mais do que uma fonte história
da cultura popular nordestina, a peça é um retrato nítido daquilo que Sérgio
Buarque de Holanda denominava a cordialidade do povo Brasileiro:
“Já se disse, numa
expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de
cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” . A lhaneza no trato, a
hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos
visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na
medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos
padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano
supor que essas virtudes possam significar “ boas maneiras” , civilidade. São
antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e
transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode
exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se
sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a
ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem
notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à
divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras
sociais de demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção
ritualista da vida do que o brasileiro” HOLANDA. S. B. Pg 146-7
Este sentimento emotivo
aparece quando a Compadecida, ao exercer a sua infinita misericórdia, não
permite que os personagens, a despeitos dos seus erros, terminem no inferno.
Na cena da aparição de
um Jesus Cristo de cor negra, João Grilo manifesta o seu preconceito racial.
Contudo, Jesus condena em primeiro lugar não Grilo, mas o Bispo, por sua
hipocrisia. O mitra ficou igualmente estupefato, mas achou pertinente censurar
Grilo por pura prudência mundana, covardia ante Jesus. Que fique de lição ao
identitários do nosso atual movimento negro que querem importar ideias
políticas do EUA para o Brasil, desconsiderando que o nosso país se baseou não
na colônia de povoamento, mas de exploração, que a população negra aqui não é
minoria, mas maioria, tendo sido a miscigenação racial, desde o momento que os portugueses chegaram aqui, não a exceção, mas a regra.
Que fique também a
lição de que o povo brasileiro, a despeito dos seus problemas, tem a virtude de
detestar a hipocrisia.
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