SOBRE O ROMANCE “ABDIAS” DE CYRO DOS ANJOS
Resenha Livro - “Abdias” – Cyro dos Anjos – Livraria José Olympio
Editora
“Vivemos num mundo imaginário, construído segundo os conceitos apriorísticos
que formamos das pessoas e coisas que nos cercam. Neste sentido, a vida será efetivamente
como um sonho. Veremos as coisas não como são mas conforme nosso espírito as
concebe. Muitas vezes nos é dado, no curso dos dias, retificar alguns desses
erros do conhecimento. Mas quantos outros, e às veze substanciais, nos
acompanharão até a morte?”.
SOBRE O AUTOR
Cyro Versaini dos Anjos nasceu em 5 de Outubro de 1906 na cidade de
Montes Claros/MG. É um dos muitos exemplos representativos de uma bela tradição
escritores mineiros: Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa e, mais
recentemente, Fernando Sabino, produziram obras não necessariamente
regionalistas, mas que trazem nos seus textos referências ao seu Estado natal.
Cyro dos Anjos permaneceu em Montes Claros até os 18 anos. Naquela
cidade, iniciou os estudos numa Escola Normal e ainda jovem teve contato com
Machado de Assis, Eça de Queiróz e Camilo Castelo Branco. Como veremos na análise
do romance, não são poucos os críticos que ressaltam um tom tipicamente machadiano
nas confissões de “Abdias” e do “Amauense Belmiro”.
Em 1924, nosso escritor fixou-se em Belo Horizonte onde começou a
trabalhar como jornalista, além de iniciar o curso de Direito, concluindo a
graduação em 1932.
Na imprensa mineira, Cyro dos Anjos escreveu no Diário da Tarde (1927),
Diário do Comércio (1928), Diário da Manhã (1929), Diário de Minas (1929/1930),
além de contribuído no “A Tribuna” (1932) sob o pseudônimo de Belmiro Borba,
produzindo as crônicas que seriam o germe do seu primeiro livro, “O Amanuense
Belmiro” (1937).
Faleceu em 4 de Agosto de 1994 na cidade do Rio de Janeiro.
ABDIAS
Este é o segundo livro do nosso romancista, publicado em 1945. Nas
palavras do próprio narrador, se trata de um “caderno de confissões” de um
professor de letras e diretor do Arquivo Histórico na cidade de Belo Horizonte.
O romance é efetivamente escrito na forma de um diário íntimo em que
Abdias, homem de 40 anos, casado e pai de três filhos, relata o seu ingresso
como professor de literatura brasileira num Liceu ou, como se dizia
antigamente, Escola Normal. Tratava-se de instituições de ensino exclusiva para
as mulheres, neste caso dirigido por freiras de origem francesa.
A despeito de a história decorrer de um diário pessoal, não se
verifica no estilo literário a subjetividade típica de uma confissão e muito
menos o sentimentalismo. Pelo contrário, o autor busca a fidelidade da
exposição, inclusive se corrigindo quando deixa transparecer palavras desnecessárias
ou retóricas, sempre conduzindo a narrativa dentro de um certo realismo
literário, que efetivamente remete a esta escola literária:
“O amor é uma forma de loucura e, como a loucura, tem alternativas:
agrava-se subitamente hoje, amanhã se atenua sem sabermos por quê. No estado em
que ontem me achava, teria sido capaz de pôr fogo a uma cidade, só para ver
Gabriela. Mau... Começo a usar da linguagem hiperbólica dos namorados. Há nisso,
sem dúvida, espantoso exagero. Por certo, eu não atearia fogo nem a um monte de
alfafa.”. (Fls. 290).
Como professor de letras, Abdias conhece Gabriela, uma graciosa
normalista filha da tradicional família de políticos de sua cidade natal, em
Várzea dos Buritis. Mesmo casado e com idade para ser o pai aluna, gradualmente
Abdias vai deixando-se tomar pelo coração até o ponto de acreditar amar a estudante
e, nos recônditos da consciência, onde predomina o egoísmo, desejar a morte de
sua dedicada esposa Carlota.
A história se passa nos anos 30 e em algumas passagens o autor lança
luz sobre este contexto histórico de ascensão do nazismo e risco iminente de
deflagração da Guerra Mundial.
Com a Guerra Civil Espanhola em curso, ainda havia, no meio intelectual
frequentado por Abadias, a crença de que Inglaterra e França seriam capazes de
deter o expansionismo alemão.
O professor, pessoalmente, não compartilhava destas ilusões:
“Respondi que, infelizmente, a coisa parecia apenas questão de tempo.
A anexação da Áustria, os discursos do Herr Hitler, sua interferência na guerra
civil da Espanha eram indícios de que já se preparara a máquina bélica para
realizar o sonho germânico de conquista do mundo.”. (Fls. 278)
Talvez mais interessante do que o enredo e a trajetória dos fatos
envolvendo Abadias, o livro certamente alcança o que há de mais alto na
literatura brasileira por conta das sondagens psicológicas e de consciência do
narrador.
Em Brás Cubas, Machado de Assis criou um “autor defunto” e “defunto
autor” para que o narrador, livre do peso da consciência e do vexame que pesa
sobre os vivos, pudesse relatar sua vida de forma cruelmente realista, não raro
resvalando no cômico.
Em Abdias, como o romance é escrito na forma do diário, a franqueza
com que se conta a história produz efeito parecido, talvez sem os lances de
humor do Bruxo do Cosme Velho, mas ainda mantendo compromisso com a
objetividade. Realista, sem, com isso, deixar de traduzir o poço de contradição
que é a alma humana.
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