“Os Contos de Lima Barreto”
Resenha Livro – “O Homem Que Sabia Javanês e Outros Contos” – Lima Barreto
– Ed. Principis
“Sofrimentos de toda a ordem caíram sobre o pobre povo da roça e do
sertão; privações de toda a natureza caíram sobre ele; e colaram-lhe a fria
sanguessuga, a ventosa dos impostos, cujo produto era empregado diretamente,
num fausto governamental de opereta, e, indiretamente, numa ostentação ridícula
de ricos sem educação nem instrução. Para benefício geral, nada!
A Bruzunganga era um sarcófago de mármore, ouro e pedrarias, em cujo
seio, porém, o cadáver mal embalsamado do povo apodrecia e fermentava.
De norte a sul, sucediam-se epidemias de loucuras, umas maiores,
outras menores. Para debelar uma, foi preciso um verdadeiro exército de vinte
mil homens. No interior era assim; nas cidades, os hospícios e asilos de
alienados regurgitavam. O sofrimento e a penúria levavam ao álcool, “para
esquecer”; e o álcool levava ao manicômio”. (“O Falso Henrique V – Episódio da História de
Bruzundanga” – Lima Barreto).
Afonso Henrique de Lima Barreto nasceu no ano de 1881, mesmo ano, por
sinal, do nascimento de Monteiro Lobato e sete anos antes da abolição da escravatura
no Brasil.
Como se sabe, Lima Barreto foi escritor que não teve o devido
reconhecimento do público até a sua morte precoce aos 41 anos de idade, de colapso
cardíaco, após constantes crises de depressão e duas internações no Hospício
Nacional (em 1914 e em 1919) pelo uso abusivo de bebida alcóolica.
Monteiro Lobato foi um dos poucos àquele tempo que já reconhecia
plenamente o talento de seu colega escritor carioca: há uma carta do escritor de
Taubaté de data de 01/10/1916 endereçada à Godofredo Rangel em que Lobato tece
fortes elogios a Lima Barreto, na época solenemente ignorado pela elite
intelectual do país por puro preconceito racial.
De uma certa maneira, a literatura regionalista de Lobato, retratada
nos seus contos para público adulto em livros como “Urupês” e “Cidades Mortas”,
teria o mesmo enfoque sobre as condições de vida dos extratos mais baixos da
sociedade Brasileira da Velha República.
No caso de Lobato, o caipira vexado de doenças causadas pela
insalubridade e pelo abandono governamental.
No caso de Barreto, esta ênfase se dá em torno das populações do
subúrbio carioca, envolvendo tipos populares como o funcionário público de
baixo escalão, vendedores ambulantes, vadios de toda a espécie e os demais
trabalhadores livres e pobres da cidade do Rio de Janeiro.
Nos dois casos, foram precursores do romance social e regionalista da
geração de 1930: Rachel de Queiroz, Graciano Ramos, José Lins do Rego, etc.
A temática da ascensão social condicionada aos favores e ao nepotismo
é frequente na literatura limabarretiana:
“Na secretaria dos Cultos, o seu típico e célebre ‘auxiliar de gabinete’
arranjou o sogro dos seus sonhos, num antigo professor do seminário, pessoa
muito relacionada com padres, frades, sacristãos, irmãs de caridade, doutores
em cânones, definidores, fabriqueiros, fornecedores e mais pessoa eclesiástico.
O sogro ideal, o antigo professor, ensinava no seminário uma física
muito própria aos fins do estabelecimento, mas que havia de horripilar o mais
medíocre aluno de qualquer estabelecimento leigo.
Tinha ele uma filha a casar e o ‘auxiliar de gabinete’ logo viu, no
seu casamento com ela, o mais fácil caminho para arranjar uma barrigazinha estufadinha
e uma bengala de ouro.”. (“Três gênios de secretaria”).
Esta lógica do favorecimento pessoal caminha pari passo com a
mediocridade intelectual de um punhado de bacharéis e jornalistas, adoradores
da forma naquilo que havia de pior no parnasianismo, cujo conhecimento não se
media pela sua coerência, clareza e correção, mas pelo diploma universitário e
pelo favor.
Nas palavras do escritor carioca, o bacharel dá-se a importância de
uma sumidade em qualquer departamento do pensamento humano, ao mesmo tempo que
odeia os rábulas e os não formados.
O próprio Lima Barreto dependeu da proteção pessoal do Visconde de
Ouro Preto, que empregara o pai na Imprensa Nacional, e garantiu que o filho matriculasse
na Escola Politécnica. Lima Barreto frequentou o curso entre 1897 e 1903,
abandonando a faculdade sem conclui-la.
Do ponto de vista político, a rebeldia do escritor aproximava-o dos
maximalistas, fazendo-o elogiar a revolução russa, ao mesmo tempo que,
contraditoriamente, odiava a república e encarava-a como um retrocesso em
relação à monarquia.
Nas palavras do escritor em 1918:
“Precisamos deixar de panaceias: a época é de medidas radicais. Não há
quem, tendo meditado sobre este estupendo movimento bolcheviquista
(bolchevique), não lombrigue nele um alcance de universal amplitude
sociológica”.
Ou em outro artigo:
“...cabe bem aos homens de coração desejar e apelar para uma convulsão
violenta que destrone e dissolva de vez essa societas sceleris de políticos,
comerciantes, industriais, prostitutas, jornalistas ad hoc, que nos saqueiam,
nos esfaimam, emboscados atrás das leis republicanas. É preciso, pois não há
outro meio de exterminá-la[1]”.
Em todo o caso, é nítido nos trabalhos de Lima Barreto o ressentimento
pessoal do escritor, que em diversos trabalhos projeta suas dificuldades
pessoais em personagens como Clara dos Anjos, vítima do racismo, como Policarpo
Quaresma, vítima da politicagem da República ou Isaías Caminha, jornalista que
convive com a mencionada “elite intelectual” completamente incapaz de deduzir
ideias próprias e originais.
Contudo, este iconoclastia do escritor se expressava não pelo panfleto
político, mas através do humor, da ironia e de uma certa melancolia, que se
expressam na figura patética (engraçada e ao mesmo tempo triste) de seu mais
famoso personagem, o patriota Policarpo Quaresma.
Nas palavras do crítico Alfredo Bosi, “tal duplicidade de planos, o
narrativo (relato dos percalços do brasileiro em sua pátria) e o crítico
(enfoque dos limites da ideologia) aviva de forma singular a personalidade
literária de Lima Barreto, em que se reconhece a inteligência como força sempre
atuante.”.
BIBLIOGRAFIA
BOSI, Alfredo. “História Concisa da Literatura Brasileira”. Ed. Cultrix.
[1] “A
CRÔNICA MILITANTE DE LIMA BARRETO” – Paulo Marçaioli – In: http://esperandopaulo.blogspot.com/2020/10/a-cronica-militante-de-lima-barreto.html
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