domingo, 7 de janeiro de 2024

As Limitações Constitucionais ao Direito de Propriedade

 As Limitações Constitucionais ao Direito de Propriedade


 


O direito de propriedade é constitucionalmente reconhecido pelo artigo 5º, inciso XXII, que de forma bastante concisa diz ser “ [é] garantido o direito de propriedade”. Contudo, o inciso subsequente do mesmo artigo 5º estabelece um limite geral ao pleno exercício desse direito, vale dizer: “a propriedade atenderá sua função social.”

É da tensão entre o pleno exercício do direito à propriedade e às exigências da coletividade que exsurge as modalidades da intervenção do Estado na propriedade.

Trata-se da relativização do direito à propriedade, cujas hipóteses apenas podem estar determinadas pela própria Constituição Federal, sendo digno de mencionar que mesmo os direitos fundamentais não podem ser entendidos como absolutos. Se o mais absoluto dos direitos, que é o direito à vida, pode ser excepcionado em casos de legítima defesa ou aborto legal, certamente não seria diferente com o direito de propriedade.

A limitação se dá não só nos casos em que a exercício da propriedade não atenda à sua função social mas também em situações em que deve prevalecer o interesse público sobre o interesse do particular.

No que tange às limitações do direito de propriedade decorrentes do não cumprimento da sua função social, pode-se citar a desapropriação para fins de reforma agrária (artigo 184) e a expropriação, que é a tomada da propriedade do particular pelo Estado, sem direito à indenização, onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração do trabalho escravo (artigo 243). Diferentemente da desapropriação, que sempre envolve indenização ao particular.

Já no que toca às limitações do direito de propriedade decorrentes do princípio da supremacia do interesse público, pode-se do tombamento, da servidão administrativa, da requisição administrativa, da limitação administrativa, da ocupação temporária e de algumas espécies da desapropriação.  

A modalidade mais drástica da intervenção do estado na propriedade é a desapropriação, pela qual o Estado retira um bem do patrimônio do particular de forma compulsória e o transfere para o patrimônio estatal.

Trata-se de um meio de aquisição originária de propriedade, pela qual o Estado se torna proprietário do bem livre e desembaraçado de ônus e dívidas. Havendo débitos tributários do imóvel, elas deverão ser deduzidas da indenização devida ao proprietário.

Via de regra, na desapropriação, a indenização dever ser prévia, justa e em dinheiro. Mas a regra geral comporta pelo menos três exceções.

Uma delas, já mencionada acima, é a expropriação do imóvel onde há trabalho escravo ou cultivo de drogas. Neste caso, não há qualquer indenização pela perda da propriedade ao particular.

Há ainda duas outras exceções: (i) a desapropriação para fins de reforma agrária não será prévia e paga em dinheiro, mas paga através de títulos da dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão (artigo 184); (ii) a desapropriação extraordinária urbanística dos municípios, quando a edificação não atender ao Plano Diretor e às diretrizes urbanas da cidade, sendo que, neste caso, a indenização é feita por títulos da dívida pública de emissão previamente aprovada pelo Senado Federal, com prazo de resgate de até dez anos, em parcelas anuais, iguais e sucessivas (artigo 182 § 4º).

Nota-se que as três exceções da regra geral de indenização prévia e em dinheiro na desapropriação envolvem situações em que há previamente um exercício abusivo do direito de propriedade pelo particular.  

Na expropriação, pelo uso do imóvel para atividade ilícita (cultivo de droga ou trabalho escravo).

Na desapropriação para fins de reforma agrária, quando não se observa a função social da terra, não sendo autorizada tal desapropriação quando a terra for produtiva ou quando se tratar de pequena e média propriedade, neste último caso desde que se trate do único bem imóvel do titular.

 

E, por fim, na desapropriação extraordinária urbanística, quando o proprietário subutilize, não utilize ou não promova o adequado uso do bem. Sendo ainda válido ressalvar: (i) esta modalidade de desapropriação é exclusiva dos municípios; (ii) a desapropriação é medida subsidiária e só possível depois de sucessivamente se intentar, primeiro o parcelamento ou edificação compulsório e, depois, a instituição de IPTU progressivo no tempo (artigo 182, § 4º, incisos I, II e III.).

Nota-se que no ordenamento jurídico, a desapropriação é medida extrema e de caráter excepcional, mais relacionada às premissas jus filosóficas oriundas do liberalismo, e menos relacionadas a orientações políticas de tipo socialistas. A regra geral é a de que os direitos individuais se sobreponham ao raio de ação do Estado, que apenas de forma pontual e em situações expressamente determinadas na Constituição, poderá fazer valer o seu poder de limitar o exercício da propriedade privada, sempre em favor da coletividade e indenizando o indivíduo, como meio de não autorizar uma distribuição não equânime dos encargos sociais.  

Além da desapropriação, há formas mais brandas de intervenção do Estado na propriedade, pela qual não há a perda total do domínio pelo particular mas uma limitação do exercício de alguns dos poderes inerentes à propriedade.

É o caso da servidão administrativa, que permite a utilização da propriedade imóvel privada, em caráter de perpetuidade, para execução de obras ou serviços de interesse coletivo. A instalação de um gaseoduto por debaixo de uma propriedade de um particular pode ser citada como um exemplo dessa espécie de intervenção.

Outro exemplo comum é o da ocupação temporária: esta, ao contrário da servidão, é fixada por prazo determinado, sem regime de urgência, para a execução de uma obra pública ou a prestação de um serviço público. Pode ser citado como exemplo a utilização de uma escola privada para alocação de urnas e pessoas para promoção das eleições.

 Há igualmente a requisição administrativa, também temporária, mas instituída em caráter de urgência diante de perigo iminente. No caso de um desastre natural, a propriedade de um particular pode ser requisitada para servir de abrigo às vítimas do evento. Por se tratar de medida de urgência, a requisição administrativa pode ser implementada com base no Poder de Polícia, independentemente de consentimento do particular ou de autorização judicial.

As tensões entre o direito de propriedade, o cumprimento da função social da propriedade e a prevalência do interesse público sobre o privado se resolvem através das várias espécies de intervenção  estatal na propriedade, estudadas no Direito Administrativo.

As condições em que elas podem ser impostas necessariamente estão determinadas na própria Constituição Federal, cabendo à lei apenas regulamentar a execução do direito à intervenção pelo Estado. Sendo ainda válido pontuar que, via de regra, o judiciário está impedido de apreciar e julgar a conveniência e oportunidade do decreto de utilidade pública, ou seja, adentrar no mérito administrativo acerca da decisão da administração de intervir na propriedade do particular, sob pena de violação ao princípio de separação de poderes.

 

Quadro: Saturno a devorar o seu filho (Saturn Devouring His Son) Francisco Jose de Goya y Lucientes

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