sábado, 4 de julho de 2020

“Uma Breve História do Brasil”


“Uma Breve História do Brasil”



Resenha Livro - “Uma Breve História do Brasil” – Mary Del Priore e Renato Venancio – Ed. Crítica – 2ª Edição

Não foram muitos os trabalhos que tiveram êxito em realizar uma síntese efetivamente representativa dos 520 anos de história da civilização brasileira. Mesmo porque, como se sabe, a tendência das pesquisas de história em nível de ensino superior costuma seguir uma outra orientação: o aprofundamento do estudo em torno de temas muito específicos, a pesquisa de fatos e processos históricos relativos a curtos períodos no tempo e circunscritos no espaço. Se por um lado este tipo de pesquisa acadêmica ganha em profundidade, possibilitando com um objeto de pesquisa bem delimitado a apuração de informações em torno de fontes históricas possivelmente não conhecidas, a pesquisa acadêmica ultraespecializada perde em envergadura, dificulta a constatação dos processos de continuidade e sentidos da história e, no limite, não oferecem uma visão de conjunto que auxilie o historiador a indicar os rumos históricos do país, do presente ao futuro.

Dentre os trabalhos exitosos de síntese da história do Brasil, podemos chamar atenção para duas produções, não por acaso, ligadas ao movimento modernista.

“Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda se serve da história e da sociologia weberiana para discutir temas como o patrimonialismo brasileiro de raízes ibéricas e nossa herança rural, expressos no pessoalismo que se contrapõe à impessoalidade do Estado e da lei, no desleixo com que o colono aqui tratou a agricultura reproduzindo na lavoura de cana os métodos arcaicos dos índios sem o uso de arados. Sérgio Buarque chamou atenção também para nossa cordialidade que envolve não exatamente bondade, mas um sentimentalismo intimista que informa inclusive as relações comerciais, para o espanto de viajantes estrangeiros no país.

Outro trabalho muito interessante de síntese da história do Brasil, menos conhecido, é o “Retrato do Brasil” do amigo de Mário de Andrade e pertencente da tradicional família paulista Silva Prado, Paulo Prado. O autor elenca como fatos constitutivos da História do Brasil a cobiça pelo ouro, a luxuria, o romantismo e a sensualidade para chegar a uma conclusão aparentemente paradoxal: o brasileiro seria um povo triste!

Esta “Uma Breve História do Brasil” por outro lado se propõe a objetivos mais modestos.


Trata-se mesmo de uma síntese da história do país destinada ao grande público, através de uma linguagem não acadêmica e, importante, ainda assim se servindo das referências das mais recentes e autorizadas pesquisas acadêmicas. Assim, além de uma visão de conjunto que possibilita ver as arvores além da floresta, o ensaio desmistifica alguns sensos comuns cristalizadas por uma historiografia mais tradicional, de tipo positivista, que muitos de nós tiveram contato no ensino médio.

É o caso por exemplo dos primeiros capítulos da nossa história, quando do descobrimento. Em que pese o classicismo literário e posteriormente o romantismo ter de certa forma idealizado este passado, hoje se sabe quais foram as péssimas condições sanitárias e de alimentação relativas às grandes navegações.

O banho a bordo era impossível. Não havia sequer hábito de higiene de modo que toda a água potável era destinada ao consumo e ao preparo de alimentos. Nas pessoas e na comida, proliferavam todos os tipos de parasita: piolhos, pulgas e percevejos.

Confinados em cubículos, passageiros satisfazia as necessidades fisiológicas, vomitavam ou escarravam próximos a quem comia.

Os alimentos também eram escassos sendo certo que a falta de víveres é um problema mesmo da metrópole naquele período. Por conta da falta de alimentos eram raros “os soldados que escapam das corrupções das gengivas [escorbuto por falta de vitamina C] febres, fluxos do ventre e outras enfermidades” conforme o depoimento de um contemporâneo[1].    

Consta que em determinados momentos de desespero, os marinheiros ingeriam de tudo: solas de sapato, papeis, biscoito repletos de larvas, ratos e até carne humana. Muitos matavam a sede com a própria urina. Outros preferiam o suicídio.

REVOLTAS SOCIAIS

Um senso comum de nítido caráter ideológico refere-se ao discurso segundo o qual no Brasil habita um povo pacífico, avesso a conflitos e, num sentido deturpado, “cordial”.

Desde o primeiro momento que os portugueses colocaram os pés no nosso atual território verificaram-se conflitos e formas de resistência. A inimizade entre diferentes etnias indígenas era preexistente à chegada dos Portugueses sendo certo que o colonizador aproveitou desta divisão para gradualmente melhor ocupar e dominar.

“Lutas seguiam-se. Em meados do século XVI, a Confederação dos Tamoios, primeiro movimento de resistência a reunir vários povos indígenas, como Tupinambás, Goitacazes e Aimorés, teve apoio de huguenotes franceses, terminando com milhares de índios mortos e escravizados. O conflito, conhecido como Guerra de Paraguaçu (1558-59) destruiu 130 aldeias. Por essa época, multiplicam-se as revoltas do gentio, com assaltos a núcleos de colonização e engenhos, mortes de brancos  e escravos negros”.

Houve mesmo formas de resistência que assimilaram a cultura indígena e católica promovida pelos missionários como a Santidade de Jaguaripe (1580-1586): “em meio a danças, transes, cânticos e à fumaça inebriante do tabaco, os índios afirmavam sua vontade de achar uma terra mítica, onde não houvesse portugueses, lutas e massacres, fome e doença: a “terra sem mal”. O fenômeno incorporava e rechaçava valores de dominação colonial ao misturar Tupã com Nossa Senhora, a doutrina cristã com crenças indígenas, cruzes com ídolos de madeira e juntava índios, mamelucos e brancos em seitas cujos cultos dirigiam-se a ídolos híbridos – um Jesus Comprido, Jesu Pocu, por exemplo”.

No período colonial os motins e conflitos são reiterados.

De forma geral eles decorrem de fatores internos e externos. Fatores internos envolvem rivalidades de grupos sociais locais como na Guerra dos Emboabas (Paulistas e Mineiros) e na Guerra dos Mascates (de um lado os senhores de engenho de Olinda e de outro os comerciantes portugueses de Recife). As mobilizações são produto também de revoltas contra o fisco, a arbitrariedade das autoridades coloniais, o monopólio comercial do sal, da cachaça e do tabaco, além da fome e da pobreza. Já os fatores externos dizem respeito ao recrudescimento das pressões colonialistas de Portugal, particularmente mais acentuada ao longo do século XVIII, implicando na Inconfidência Mineira e na Revolta dos Alfaiatas, primeiro movimento colonial de participação popular que propugnava o fim da escravidão. Os temas da independência e da república já surgem também nestas primeiras revoltas.

PERSPECTIVAS

Este trabalho da historiadora Mary Del Priori percorre da colônia à Primeira República, da Revolução de 1930 até o Estado Novo, da constituinte de 1945 até o retorno e suicídio de Getúlio Vargas, do golpe de 1964 até a redemocratização, culminando na chamada Nova República. 

No posfácio, a autora faz um balanço sobre o problema da corrupção suscitado pela Operação Lava Jato e as políticas conciliatórias e assistencialistas dos governos do PT. Diante dos fatos supervenientes da história, do golpe de estado de 2015/2016 à eleição de Bolsonaro e à profunda crise política oriunda da pandemia do COVID-19, o sentido histórico da experiência brasileira sugere uma transição. De junho de 2013 até 2015/2016, culminando no avanço bonapartista de Bolsonaro em 2020, tudo indica que o ciclo da nova república chegou ao fim. Não existe saída por dentro das instituições, o período de conciliação oriundo dos governos anteriores acabou. Os tempos históricos estão acelerados e os rumos do país serão disputados nas ruas.




[1] Francisco Rodrigues Silveira – Memórias de um Soldado na Índia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário