“Uma Breve História do Brasil”
Resenha Livro - “Uma Breve História do Brasil” – Mary
Del Priore e Renato Venancio – Ed. Crítica – 2ª Edição
Não foram muitos os trabalhos que tiveram êxito em
realizar uma síntese efetivamente representativa dos 520 anos de história da
civilização brasileira. Mesmo porque, como se sabe, a tendência das pesquisas
de história em nível de ensino superior costuma seguir uma outra orientação: o
aprofundamento do estudo em torno de temas muito específicos, a pesquisa de
fatos e processos históricos relativos a curtos períodos no tempo e circunscritos
no espaço. Se por um lado este tipo de pesquisa acadêmica ganha em profundidade,
possibilitando com um objeto de pesquisa bem delimitado a apuração de
informações em torno de fontes históricas possivelmente não conhecidas, a
pesquisa acadêmica ultraespecializada perde em envergadura, dificulta a
constatação dos processos de continuidade e sentidos da história e, no limite,
não oferecem uma visão de conjunto que auxilie o historiador a indicar os rumos
históricos do país, do presente ao futuro.
Dentre os trabalhos exitosos de síntese da história
do Brasil, podemos chamar atenção para duas produções, não por acaso, ligadas
ao movimento modernista.
“Raízes do Brasil” de Sérgio Buarque de Holanda se
serve da história e da sociologia weberiana para discutir temas como o
patrimonialismo brasileiro de raízes ibéricas e nossa herança rural, expressos
no pessoalismo que se contrapõe à impessoalidade do Estado e da lei, no
desleixo com que o colono aqui tratou a agricultura reproduzindo na lavoura de
cana os métodos arcaicos dos índios sem o uso de arados. Sérgio Buarque chamou
atenção também para nossa cordialidade que envolve não exatamente bondade, mas
um sentimentalismo intimista que informa inclusive as relações comerciais, para
o espanto de viajantes estrangeiros no país.
Outro trabalho muito interessante de síntese da
história do Brasil, menos conhecido, é o “Retrato do Brasil” do amigo de Mário
de Andrade e pertencente da tradicional família paulista Silva Prado, Paulo
Prado. O autor elenca como fatos constitutivos da História do Brasil a cobiça
pelo ouro, a luxuria, o romantismo e a sensualidade para chegar a uma conclusão
aparentemente paradoxal: o brasileiro seria um povo triste!
Esta “Uma Breve História do Brasil” por outro lado se
propõe a objetivos mais modestos.
Trata-se mesmo de uma síntese da história do país destinada
ao grande público, através de uma linguagem não acadêmica e, importante, ainda
assim se servindo das referências das mais recentes e autorizadas pesquisas
acadêmicas. Assim, além de uma visão de conjunto que possibilita ver as arvores
além da floresta, o ensaio desmistifica alguns sensos comuns cristalizadas por
uma historiografia mais tradicional, de tipo positivista, que muitos de nós
tiveram contato no ensino médio.
É o caso por exemplo dos primeiros capítulos da nossa
história, quando do descobrimento. Em que pese o classicismo literário e posteriormente
o romantismo ter de certa forma idealizado este passado, hoje se sabe quais
foram as péssimas condições sanitárias e de alimentação relativas às grandes
navegações.
O banho a bordo era impossível. Não havia sequer
hábito de higiene de modo que toda a água potável era destinada ao consumo e ao
preparo de alimentos. Nas pessoas e na comida, proliferavam todos os tipos de
parasita: piolhos, pulgas e percevejos.
Confinados em cubículos, passageiros satisfazia as
necessidades fisiológicas, vomitavam ou escarravam próximos a quem comia.
Os alimentos também eram escassos sendo certo que a
falta de víveres é um problema mesmo da metrópole naquele período. Por conta da
falta de alimentos eram raros “os soldados que escapam das corrupções das
gengivas [escorbuto por falta de vitamina C] febres, fluxos do ventre e outras
enfermidades” conforme o depoimento de um contemporâneo[1].
Consta que em determinados momentos de desespero, os
marinheiros ingeriam de tudo: solas de sapato, papeis, biscoito repletos de larvas,
ratos e até carne humana. Muitos matavam a sede com a própria urina. Outros
preferiam o suicídio.
REVOLTAS SOCIAIS
Um senso comum de nítido caráter ideológico refere-se
ao discurso segundo o qual no Brasil habita um povo pacífico, avesso a
conflitos e, num sentido deturpado, “cordial”.
Desde o primeiro momento que os portugueses colocaram
os pés no nosso atual território verificaram-se conflitos e formas de
resistência. A inimizade entre diferentes etnias indígenas era preexistente à
chegada dos Portugueses sendo certo que o colonizador aproveitou desta divisão
para gradualmente melhor ocupar e dominar.
“Lutas seguiam-se. Em meados do século XVI, a
Confederação dos Tamoios, primeiro movimento de resistência a reunir vários
povos indígenas, como Tupinambás, Goitacazes e Aimorés, teve apoio de huguenotes
franceses, terminando com milhares de índios mortos e escravizados. O conflito,
conhecido como Guerra de Paraguaçu (1558-59) destruiu 130 aldeias. Por essa
época, multiplicam-se as revoltas do gentio, com assaltos a núcleos de
colonização e engenhos, mortes de brancos
e escravos negros”.
Houve mesmo formas de resistência que assimilaram a
cultura indígena e católica promovida pelos missionários como a Santidade de
Jaguaripe (1580-1586): “em meio a danças, transes, cânticos e à fumaça
inebriante do tabaco, os índios afirmavam sua vontade de achar uma terra
mítica, onde não houvesse portugueses, lutas e massacres, fome e doença: a “terra
sem mal”. O fenômeno incorporava e rechaçava valores de dominação colonial ao
misturar Tupã com Nossa Senhora, a doutrina cristã com crenças indígenas,
cruzes com ídolos de madeira e juntava índios, mamelucos e brancos em seitas
cujos cultos dirigiam-se a ídolos híbridos – um Jesus Comprido, Jesu Pocu, por
exemplo”.
No período colonial os motins e conflitos são
reiterados.
De forma geral eles decorrem de fatores internos e
externos. Fatores internos envolvem rivalidades de grupos sociais locais como
na Guerra dos Emboabas (Paulistas e Mineiros) e na Guerra dos Mascates (de um
lado os senhores de engenho de Olinda e de outro os comerciantes portugueses de
Recife). As mobilizações são produto também de revoltas contra o fisco, a
arbitrariedade das autoridades coloniais, o monopólio comercial do sal, da
cachaça e do tabaco, além da fome e da pobreza. Já os fatores externos dizem
respeito ao recrudescimento das pressões colonialistas de Portugal,
particularmente mais acentuada ao longo do século XVIII, implicando na
Inconfidência Mineira e na Revolta dos Alfaiatas, primeiro movimento colonial
de participação popular que propugnava o fim da escravidão. Os temas da
independência e da república já surgem também nestas primeiras revoltas.
PERSPECTIVAS
Este trabalho da historiadora Mary Del Priori
percorre da colônia à Primeira República, da Revolução de 1930 até o Estado
Novo, da constituinte de 1945 até o retorno e suicídio de Getúlio Vargas, do golpe de
1964 até a redemocratização, culminando na chamada Nova República.
No posfácio, a autora faz um balanço sobre o problema da
corrupção suscitado pela Operação Lava Jato e as políticas conciliatórias e
assistencialistas dos governos do PT. Diante dos fatos supervenientes da
história, do golpe de estado de 2015/2016 à eleição de Bolsonaro e à profunda
crise política oriunda da pandemia do COVID-19, o sentido histórico da
experiência brasileira sugere uma transição. De junho de 2013 até 2015/2016,
culminando no avanço bonapartista de Bolsonaro em 2020, tudo indica que o ciclo
da nova república chegou ao fim. Não existe saída por dentro das instituições,
o período de conciliação oriundo dos governos anteriores acabou. Os tempos
históricos estão acelerados e os rumos do país serão disputados nas ruas.
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