A
Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado de Friedrich Engels
Resenha
Livro - “A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado” – Friedrich
Engels – Ed. Civilização Brasileira – 2ª Edição
“O
Estado não é, pois, de modo algum, um poder que se impôs à sociedade de fora
para dentro; tampouco é ‘a realidade da ideia moral’ nem ‘a imagem e a
realidade da razão’ como afirma Hegel. É antes um produto da sociedade, quando
esta chega a um determinado grau de desenvolvimento; é a confissão de que essa
sociedade se enredou numa irremediável contradição com ela própria e está
dividida por antagonismos irreconciliáveis que não consegue conjurar. Mas para
que esses antagonismos, essas classes com interesses econômicos colidentes não
se devorem e não consumam a sociedade numa luta estéril, faz-se necessário um
poder colocado aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o
choque e a mantê-lo dentro dos limites da “ordem”. Este poder, nascido da
sociedade, mas posto acima dela se distanciando cada vez mais, é o Estado”.
A
crítica da economia política oriunda do pensamento de Marx e Engels implicou
numa reflexão original sobre o problema do Estado. Este não se refere a um
fenômeno perene na história, perpétuo e inevitável, bem como não pode ter tido
origem na reflexão política de alguns filósofos esclarecidos. O Estado é
produto de um desenvolvimento histórico que envolve a divisão social do
trabalho, com a correspondente necessidade de um ente mediador dos novos
antagonismos de classe. A forma política assume diferentes contornos na
história, mas o Estado é transitório, nesta perspectiva. O Estado não existiu
na maior parte da história humana e não deverá existir numa sociedade não mais
cindida em classes.
Neste
livro publicado por Engels no ano de 1884 o autor se serve das mais recentes
descobertas na área da pré-histórica para relacionar a gênese da vida humana,
das formas de constituição da família e do trabalho, com o advento da
propriedade privada e do Estado.
O
livro foi publicado um ano após a morte de Karl Marx (1818-1883) e está baseado
em escritos não publicados do autor do Capital, de modo que se pode dizer que é
um trabalho escrito em co-autoria.
O
subtítulo do livro, “trabalho relacionado com as investigações de L. H. Morgan”
já revela como a obra se baseia nas, então, mais recentes descobertas sobre as
gens dos povos antigos, particularmente os gregos e romanos, a partir da
pesquisa daquele intelectual norte americano acerca das tribos Iroqueses
(estabelecidas no estado de Nova Iorque).
Conforme
informa Engels:
“O
grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e restabelecido em seus traços
essenciais esse fundamento pré-histórico da nossa história escrita e o de ter
descoberto, nas uniões gentílicas dos índios norte americanos, a chave para decifrar
importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história antiga da Grécia,
Roma e Alemanha. (...) O descobrimento da primitiva gens de direito materno,
como etapa anterior à gens de direito paterno dos povo civilizados, tem para a
história primitiva, a mesma importância que a teoria da evolução de Darwin para
a biologia e a teoria da mais valia enunciada por Marx”.
Engels
se serve de uma classificação tradicional da pré história, dividida entre as
fases relativas ao estado selvagem, à barbárie e à civilização.
Na
infância da humanidade, os homens vivem nas árvores, ao abrigo de grandes feras,
vivem da coleta de frutos e raízes. Posteriormente incluem o peixe na
alimentação, após o aprendizado do uso do fogo. A caça já se torna possível na
fase superior do estado selvagem com o uso regular do arco e flecha.
A
fase da barbárie inicia-se com o uso da cerâmica, a domesticação de animais e o
plantio de plantas. A etapa superior da barbárie envolve a fundição do ferro,
que será utilizado para o arado e para construção de machados e espadas. O arado
de ferro tem uma importância pois possibilita pela primeira vez a agricultura,
o cultivo da terra em larga escala.
A
civilização, a história propriamente dita, nasce com a escrita, quando o homem
também desenvolve a indústria e as artes.
A
forma familiar dos povos pré históricos encontraram fases mais ou menos
condizentes com o desenvolvimento das forças produtivas e da cultura material
relacionados nas três grandes fases supracitadas.
A
forma mais remota de família são os matrimônios por grupos. Engels chama
atenção para como as mulheres tinham um papel de maior consideração social no
comunismo primitivo. Em certas passagens o autor sugere uma maior
respeitabilidade das mulheres no comunismo primitivo do que no capitalismo moderno.
Enquanto
os homens são encarregados da caça e do provento da tribo, as mulheres são
responsáveis pelos cuidados domésticos. Não na forma como a conhecemos hoje: os
cuidados domésticos eram compartilhados pela coletividade e não por
agrupamentos familiares nucleares tal como hoje, cabendo a liderança destes
trabalhos à mulher
“Entre
todos os selvagens e em todas as tribos que se encontram nas fases inferior,
média e até (em parte) superior da barbárie, a mulher não só é livre como
também, muito considerada. Artur Wright, que foi durante muitos anos
missionário entre os iroqueses-senekas, pode atestar qual é a situação da
mulher, ainda no matrimônio sindiásmico: ‘a respeito de suas famílias, na época
em que ainda viviam nas antigas casas grandes (domicílios comunistas de muitas
famílias)...predominava sempre lá um clã (uma gens) e as mulheres arranjavam
maridos em outros clãs (gens)... Habitualmente, as mulheres mandavam na casa;
as provisões eram comuns, mas – ai do pobre marido ou amante que fosse preguiçoso
ou desajeitado demais para trazer sua parte ao fundo de provisões da comunidade!
Por mais filhos ou objetos pessoais que tivesse na casa, podia, a qualquer
momento, ver-se obrigado a arrumar a trouxa e sair porta afora”.
BALANÇOS POSITIVOS E NEGATIVOS DA OBRA
Talvez
o aspecto mais interessante deste trabalho seja mesmo a apropriação dos estudos
de Morgan sobre as gens e a análise da forma reiterada como a sociedade de clãs
deu origem à constituição do Estado. Engels faz esta relação nas histórias da Grécia,
de Roma e dos povos bárbaros (germanos, normandos, etc.). As formas sociais baseadas
nas gens foram sempre se dissolvendo a partir de novas configurações relativas
à divisão do trabalho e à luta de classes correspondente. Conforme o homem
produz em excedente, iniciam-se as trocas comerciais, surgem as mercadorias e
os comerciantes, as transações monetárias, os empréstimos, as hipotecas, o
endividamento. A possibilidade de incrementar a produção criou as condições
para a utilização mais sistemática da mão de obra escrava. É justamente neste
contexto de dissolução das clãs e da divisão social do trabalho superando a
divisão em gens e tribos o ponto de partida da constituição do Estado.
Certamente,
algumas reservas merecem ser feitas com relação ao livro.
A
primeira é a de que as análises materialistas da origem da família, da
propriedade privada e do estado, se são pertinentes, ainda se baseavam num
estado ainda muito incipiente dos estudos da pré história. Basta dizer que não
se cogitava em 1884 os atuais conhecimentos da genética e da arqueogenética.
A
forma apologética com que Engels se refere às comunidades gentílicas certamente
deveria ser mais bem mediatizadas face ao que a mais recente arqueologia tem a
dizer, especialmente, quanto à cultura dos povos da pré-história. Aliás, em que
pese a análise materialista corretamente partir das condições econômicas para a
explicação mais geral dos processos históricos, Engels prescinde da cultura e
generaliza aspectos do problema da família de uma forma pouco convincente.
Olhando para o comunismo primitivo e suas formas de sociabilidade doméstica,
chega a postular no comunismo do futuro a noção dos cuidados domésticos como
questão de ordem pública.
A
monogamia para Engels, sempre estará vinculada ao domínio do homem pela mulher,
o que é discutível. Provavelmente, no afã de criticar a moralidade burguesa da
época, o amigo de Marx forçou a mão quanto às sociedades gentílicas, que
parecem até melhores do que a atual civilização. As ressalvas parecem-nos
válidas já que o texto pode servir de pretexto para a defesa de políticas
identitárias ou esquerdistas que se opõem ideologicamente à família. Não nos
parece ser o caso.
Nenhum comentário:
Postar um comentário