A Literatura Infantil de Graciliano Ramos
O escritor alagoano Graciliano Ramos é reconhecido por uma literatura que
se situa no campo do modernismo, já em sua segunda fase. Junto com outros
escritores como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Amando Fontes e Jorge
Amado, desenvolveu uma arte de tipo regionalista, descrevendo tipos e pessoas
dos extratos mais baixos da sociedade, sem com isso cair em caricaturas, ou estereótipos
superficiais.
Estes escritores foram, neste sentido, muito além da literatura naturalista
do século XIX que, se por um lado, foram pioneiros em chamar a atenção e dar
protagonismo a personagens oriundos do povo, faziam-no não sem uma certa
superficialidade, chegando a definir as personalidades como que condicionadas
ao meio social, dentro da perspectiva do determinismo, ou como que determinadas
pela raça, sob a influência do darwinismo e o pensamento cientificista típico do
período.
A perspectiva de Graciliano Ramos e dos demais escritores de sua geração
é completamente diferente. Naqueles escritores modernistas, as personagens populares
aparecem com suas contradições humanas, suscitam sentimentos e ações que não se
explicam apenas pela pobreza do meio ou da raça, os seus atos e palavras não se
encerram em lógicas binárias de bem ou mal, certo ou errado, heróis e vilãos.
Talvez apenas Jorge Amado, na primeira fase de sua produção literária,
chegaria mesmo a dar um colorido de heroísmos aos tipos populares, como nos
camponeses dos campos de cacau (“Cacau” – 1933) e nos menores infratores da lei
no seu famoso “Capitães de Areia” de 1937.
No que se refere a Graciliano Ramos, ficaram na memória dos seus leitores
a saga da família retirante de uma seca no sertão nordestino, quando a
bestialização dos seres humanos, que se comunicam com grunhidos e interjeições,
convive com a humanização da natureza, nitidamente da cachorra, ironicamente
designada de Baleia.
A seca e a transitoriedade da vida humana surgem como uma fatalidade,
ainda que a arbitrariedade do soldado amarelo que agride e prende Fabiano
sugira que as coisas não necessariamente deveriam ocorrer da forma como
ocorrem.
Além dos seu “Vidas Secas” (1938), livros como “São Bernardo” (1934) e “Angústia”
(1936) certamente são o que há de melhor em todo a história da literatura em
língua portuguesa.
Menos conhecidos são os trabalhos de literatura infantil do nosso
escritor. No caso de “Alexandre e Outros Heróis” (1940) e “A Terra dos Meninos
Pelados” (1937) descobrimos um tipo de literatura diferente dos romances de
adulto supracitados. O realismo da literatura de adulto se confunde com o
fantástico, com o pensamento lúdico da criança.
Alexandre é um típico contador de histórias dos tempos passados. A sua
apresentação é feita logo na introdução:
“No Sertão do Nordeste vivia antigamente um homem cheio de conversas,
meio caçador e meio vaqueiro, alto, magro, já velho, chamado Alexandre. Tinha
um olho torto e falava cuspindo a gente, espumando como um sapo-cururu, mas
isto não impedia que os moradores da redondeza, até pessoas de consideração, fossem
ouvir as histórias fanhosas que ele contava”.
Ainda na introdução, o escritor alerta que as histórias de Alexandre não
são originais, mas pertencem ao folclore do Nordeste, sendo possível que
algumas tenham sido escritas.
Em que pese o contador de história jurar que os eventos narrados são reais,
aconteceram de fato, são-nos narrados a história de um papagaio inteligente que
defende presos no tribunal, de uma cachorra “moqueca” que fazia compras na
feira para o seu dono, identificando e protestando com latidos a entrega de uma
nota falsa, histórias de Alexandre montado numa onça que confundira cm cavalo. Há
um aspecto de folclórico nas histórias, animais de roça como a cobra e a onça, que
frequentemente despertam o medo na imaginação dos camponeses, aparecem em
situações inusitadas.
As histórias populares são contadas aos mesmos ouvintes. O cego preto
Firmino é incrédulo e questiona detalhes da narrativa de Alexandre, sem,
contudo, lograr identificar inequivocamente a falsificação. O mestre Gaudêncio
é curandeiro e Libório é cantador de emboadas, desejoso de transformar em
música as histórias de Alexandre. Das Dores é afilhada do contador de história
e benzedeira de mal olhado. Finalmente, Cesária é a mulher de Alexandre,
ratifica e confirma as narrativas do marido ajudando com datas e números. Os
ouvintes das histórias são pessoas tão despojadas como Alexandre. Este, por sua
vez, cria por sua cabeça um mundo imaginário que compensa a sua penúria.
A “Terra dos Meninos Pelados” também é uma narrativa fantástica, desta
vez não oriunda da imaginação de um velho contador de histórias, mas da mente lúdica
de uma criança.
Raimundo era careca, tinha um olho azul e outro preto. Cansado da
mangação das outras crianças, ingressa mundo mágico em que um carro, quando
parecia ir atropelá-lo, para o movimento e explica à criança que naquelas
bandas ninguém se machuca. Uma laranjeira gigante é capaz de falar e dá uma
laranja à criança. O rio fecha a si mesmo, juntando as suas margens, para
facilitar a travessia dos passantes. Finalmente, Raimundo se depara com um
mundaréu de crianças que, como ele, são carecas, cada uma com um olho de cor diferente.
É interessante observar que mesmo no mundo imaginário da terra dos meninos
pelados, há um menino anão que também é objeto de mangação pelas demais
crianças – mesmo no mundo da fantasia, existem as dificuldades do mundo real.
Se em Alexandre, o real se sobrepõe ao imaginário com a morte do contador
de histórias (“não reparem na falta não meus amigos. Vou dormir.”), também no conto
dos meninos pelados, Raimundo termina tendo que sair do mundo fantástico ao mundo
real:
“Raimundo começou a descer a serra de Taquariu. A ladeira se aplanava. E
quando ele passava, tornava a inclinar-se. Caminhou muito, olhou para trás e
não enxergou os meninos que tinham ficado lá em cima. Ia tão distraído, com
tanta pena, que não viu a laranjeira no meio da estrada. A laranjeira se
afastou, deixou passagem livre e guardou silêncio para não interromper os
pensamentos dele.
Agora Raimundo estava no morro conhecido, perto de casa. Foi-se chegando
muito devagar. Atravessou o quintal, atravessou o jardim e pisou na calçada.
As cigarras chiavam entre as folhas das árvores. E as crianças que embirravam
como ele brincavam na rua”.
Bibliografia
RAMOS, Graciliano. "Alexandre e Outros Heróis". Ed. Martins Editora.
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