quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

“A Casa do Morro Branco” – Rachel de Queiroz

 

“A Casa do Morro Branco” – Rachel de Queiroz



 


Resenha Livro - “A Casa do Morro Branco (contos)” – Rachel de Queiroz – Editora Siciliano – São Paulo 1999

 

Os romances da escritora cearense Rachel de Queiroz se situam dentro de uma corrente literária comumente classificada como a 2ª Fase do Modernismo Literário. Se na primeira geração modernista, escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del Picchia suscitam de maneira pioneira uma forma literária especificamente nacional, deixando de basear a literatura em modelos e escolas literárias estrangeiras como se verificou desde o romantismo, o realismo e o naturalismo, esta segunda geração de certa maneira aprofunda o projeto nacionalista, só que por meio do regionalismo.

 

Não se verifica no regionalismo de escritores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos ou Jorge Amado o mero pitoresco, o folclórico, ou uma descrição dos tipos populares como se os personagens fossem quase que inteiramente condicionados pelo meio social da pobreza, pela raça e pela geografia, como acontece de maneira nítida nos romances naturalistas. É certo que os escritores naturalistas foram pioneiros em dar algum protagonismo a personagens oriundos do povo, como nas descrições do Cortiço de Aluízio de Azevedo ou dos tipos do subúrbio carioca suscitados posteriormente por Lima Barreto.

 

Com os modernistas, contudo, os personagens do povo surgem como algo que vai além do superficial e do folclórico, os seus dramas e suas contradições fazem como que as suas histórias vão além de um mero juízo do certo ou do errado, do herói e do vilão. No regional se alcança o universal, do contato com as condições de vida do povo simples do campo, das vilas e cidades, entramos em comunhão com a experiência trágica que informa em qualquer tempo e lugar a trajetória humana.

 

A qualidade artística daqueles escritores regionalistas se comprova justamente pela atualidade dos dilemas suscitados pelos seus personagens, perdidos em rincões afastados no interior do país, há muitos e muitos anos.

 

São características da arte modernista deste período situado entre 1930 e 1945, uma narrativa de tipo realista, com compromisso do narrador em descrever de forma fiel pessoas e cenários. Há uma inequívoca valorização da cultura popular do país, um nacionalismo que se expressa em tendências culturais regionais. A temática do cotidiano e uma linguagem coloquial estão sempre presentes. E, aqui se destacando das narrativas naturalistas, há uma preocupação com a análise psicológica das personagens, sempre se sondando as intenções, as palavras que foram pensadas e não foram ditas, as hesitações, os sentimentos contraditórios que acompanham os atos, fugindo assim de uma explicação das pessoas e de suas atitudes por uma mera justificativa “científica” da influência do meio social, da raça e do meio ambiente.

 

A “Casa do Morro Branco é uma antologia de 14 contos de Rachel de Queiroz.

 

Nas pequenas histórias coexistem temas que são atemporais e remetem àquela universalidade que a arte aspira ao possibilitar um contato íntimo do leitor com as experiências e emoções de personagens distantes no tempo e no espaço. E temas nitidamente regionalistas, por exemplo, no conto com certo tom de humor denominado “Telefone” que descreve os embates de duas famílias de coronéis (Major Francisco Leandro, chefe do partido marreta, e Benvido Assunção, chefe rabelista) na pequena cidade de Aroeiras na Paraíba.

 

A chegada do primeiro telefone na cidade, instalado apenas na delegacia, na estação de trem, na Câmara, na casa do juiz e na residência dos dois chefes políticos rivais, é o ponto de partida da narrativa. Ironicamente, o instrumento que serve para a comunicação e aproximação de pessoais irá detonar um conflito na cidade com consequências trágicas.

 

De maneira geral, os contos têm como protagonistas as gentes simples do campo e das pequenas comarcas do nordeste. “Vozes d’África”, nesse sentido, é não só uma narrativa literária, mas um documento para o historiador conhecer a vida de camponeses humildes cuja origem ancestral comum é dos escravos africanos. As casas em que moram é de taipa e não têm cerca ao redor “porque os donos de terra tão sem valia não se interessam por divisas”. O telhado das casas de pau a pique é de sapé apanhado “ali mesmo, no morro, porque sapé comprado está custando dois cruzeiros e cinquenta centavos o molho pequeno”. O chão da casa é de barro batido e “a criançada é tanta, que só de pensar dá agonia”:

 

A luz que se gasta em casa é querosene, que o carreiro traz da bomba da Ribeira. Mas nestes tempos de dificuldade e carestia, muitas vezes a mãe tem acendido a velha candeia de azeite que a sogra lhe deixou de herança. A luz faz cada lista preta na parede que chega a subir para o sapé – mas alumia que chegue.

 

Noite de lua todos se juntam no terreiro varrido, em frente à casa. As crianças rodam na gangorra e os mais velhos ficam sentados em redor do poço, conversando com alguma visita. E tudo é tão bonito e tão quieto, que a mãe sempre acaba falando em aproveitar uma noite daquelas, que caia em tempo de festa do Senhor São Jorge (na frente de estranho ela não fala Ogum), para fazer um terço, enfeitar a frente de casa de bandeirinhas e, no último dia, comerem um leitão de forno. Mas sempre é interrompida por uma briga da criançada ou uma queda da gangorra. Levanta-se, bate as saias, vai acudir o menino e suspira:

 

- Ai que vida, Jesus!”

 

Outros contos desta coletânea fogem um pouco da orientação realista e se estendem ao campo do fantástico e do irreal, como “Ma-Hôre”, uma trágico- cômica história de uma expedição interplanetária mal sucedida, após contatos extraterrestres no planeta W-65; e as histórias de fantasmas e espíritos suscitadas em “A Presença de Leviatã”, “O homem que plantava maconha ou Exu Tranca Rua” e “Cremilda e o Fantasma”.

 

Fica o convite para editores do país darem uma nova edição a este livro de contos, aparentemente esquecido, de Rachel de Queiroz.

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