“A Casa do Morro Branco” –
Rachel de Queiroz
Resenha Livro - “A Casa do
Morro Branco (contos)” – Rachel de Queiroz – Editora Siciliano – São Paulo 1999
Os romances da escritora
cearense Rachel de Queiroz se situam dentro de uma corrente literária comumente
classificada como a 2ª Fase do Modernismo Literário. Se na primeira geração
modernista, escritores como Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Menotti Del
Picchia suscitam de maneira pioneira uma forma literária especificamente
nacional, deixando de basear a literatura em modelos e escolas literárias
estrangeiras como se verificou desde o romantismo, o realismo e o naturalismo, esta
segunda geração de certa maneira aprofunda o projeto nacionalista, só que por
meio do regionalismo.
Não se verifica no
regionalismo de escritores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos ou Jorge
Amado o mero pitoresco, o folclórico, ou uma descrição dos tipos populares como
se os personagens fossem quase que inteiramente condicionados pelo meio social
da pobreza, pela raça e pela geografia, como acontece de maneira nítida nos romances
naturalistas. É certo que os escritores naturalistas foram pioneiros em dar
algum protagonismo a personagens oriundos do povo, como nas descrições do
Cortiço de Aluízio de Azevedo ou dos tipos do subúrbio carioca suscitados posteriormente
por Lima Barreto.
Com os modernistas,
contudo, os personagens do povo surgem como algo que vai além do superficial e
do folclórico, os seus dramas e suas contradições fazem como que as suas
histórias vão além de um mero juízo do certo ou do errado, do herói e do vilão.
No regional se alcança o universal, do contato com as condições de vida do povo
simples do campo, das vilas e cidades, entramos em comunhão com a experiência trágica
que informa em qualquer tempo e lugar a trajetória humana.
A qualidade artística
daqueles escritores regionalistas se comprova justamente pela atualidade dos
dilemas suscitados pelos seus personagens, perdidos em rincões afastados no
interior do país, há muitos e muitos anos.
São características da
arte modernista deste período situado entre 1930 e 1945, uma narrativa de tipo
realista, com compromisso do narrador em descrever de forma fiel pessoas e cenários.
Há uma inequívoca valorização da cultura popular do país, um nacionalismo que
se expressa em tendências culturais regionais. A temática do cotidiano e uma linguagem
coloquial estão sempre presentes. E, aqui se destacando das narrativas naturalistas,
há uma preocupação com a análise psicológica das personagens, sempre se sondando
as intenções, as palavras que foram pensadas e não foram ditas, as hesitações, os
sentimentos contraditórios que acompanham os atos, fugindo assim de uma
explicação das pessoas e de suas atitudes por uma mera justificativa “científica”
da influência do meio social, da raça e do meio ambiente.
A “Casa do Morro Branco é
uma antologia de 14 contos de Rachel de Queiroz.
Nas pequenas histórias
coexistem temas que são atemporais e remetem àquela universalidade que a arte
aspira ao possibilitar um contato íntimo do leitor com as experiências e emoções
de personagens distantes no tempo e no espaço. E temas nitidamente
regionalistas, por exemplo, no conto com certo tom de humor denominado “Telefone”
que descreve os embates de duas famílias de coronéis (Major Francisco Leandro,
chefe do partido marreta, e Benvido Assunção, chefe rabelista) na pequena
cidade de Aroeiras na Paraíba.
A chegada do primeiro
telefone na cidade, instalado apenas na delegacia, na estação de trem, na
Câmara, na casa do juiz e na residência dos dois chefes políticos rivais, é o
ponto de partida da narrativa. Ironicamente, o instrumento que serve para a comunicação
e aproximação de pessoais irá detonar um conflito na cidade com consequências
trágicas.
De maneira geral, os
contos têm como protagonistas as gentes simples do campo e das pequenas
comarcas do nordeste. “Vozes d’África”, nesse sentido, é não só uma narrativa
literária, mas um documento para o historiador conhecer a vida de camponeses humildes
cuja origem ancestral comum é dos escravos africanos. As casas em que moram é
de taipa e não têm cerca ao redor “porque os donos de terra tão sem valia não
se interessam por divisas”. O telhado das casas de pau a pique é de sapé
apanhado “ali mesmo, no morro, porque sapé comprado está custando dois cruzeiros
e cinquenta centavos o molho pequeno”. O chão da casa é de barro batido e “a
criançada é tanta, que só de pensar dá agonia”:
“A luz que se gasta em
casa é querosene, que o carreiro traz da bomba da Ribeira. Mas nestes tempos de
dificuldade e carestia, muitas vezes a mãe tem acendido a velha candeia de
azeite que a sogra lhe deixou de herança. A luz faz cada lista preta na parede que
chega a subir para o sapé – mas alumia que chegue.
Noite de lua todos se
juntam no terreiro varrido, em frente à casa. As crianças rodam na gangorra e
os mais velhos ficam sentados em redor do poço, conversando com alguma visita.
E tudo é tão bonito e tão quieto, que a mãe sempre acaba falando em aproveitar
uma noite daquelas, que caia em tempo de festa do Senhor São Jorge (na frente
de estranho ela não fala Ogum), para fazer um terço, enfeitar a frente de casa
de bandeirinhas e, no último dia, comerem um leitão de forno. Mas sempre é
interrompida por uma briga da criançada ou uma queda da gangorra. Levanta-se,
bate as saias, vai acudir o menino e suspira:
- Ai que vida, Jesus!”
Outros contos desta
coletânea fogem um pouco da orientação realista e se estendem ao campo do
fantástico e do irreal, como “Ma-Hôre”, uma trágico- cômica história de uma expedição
interplanetária mal sucedida, após contatos extraterrestres no planeta W-65; e
as histórias de fantasmas e espíritos suscitadas em “A Presença de Leviatã”, “O
homem que plantava maconha ou Exu Tranca Rua” e “Cremilda e o Fantasma”.
Fica o convite para
editores do país darem uma nova edição a este livro de contos, aparentemente
esquecido, de Rachel de Queiroz.
Nenhum comentário:
Postar um comentário