“Marcoré” – Antônio Olavo Pereira
Resenha - “Marcoré” – Antônio Olavo Pereira – José Olympio
Editora – 13ª Edição
“Minha terra tem um viver
miúdo, semelha o curral de Sabino. O gado se movimenta pelas pastagens em grupos
distintos, come, trabalha, muge, ama. Os bezerros correm, saltam as moitas. Os
bois velhos são afastados, vão para o cutelo”.
Um principal traço
distintivo deste romance do escritor paulista Antônio Olavo Pereira é a ausência
de heróis, a quase inexistência de grandes conflitos dramáticos que
desencadeiam tragédias humanas. Pelo contrário, a história vai se passando com
a descrição da experiência cotidiana de homens e mulheres de uma cidade do
interior paulista em meados do século XX. Uma criança que nasce, um casamento
que se desfaz, um coronel que morre de velhice, um padre que cuida de suas ovelhas,
tudo se passando como se se sucedem as estações, ou o “gado miúdo de Sabino”.
Isso não significa que a leitura
da história em algum momento descambe no tédio. Pelo contrário! Segundo o
posfácio de Antônio Houaiss:
“Obra essencialmente anti-heróica,
vinculada com o cotidiano em fidedigna coerência, consegue, não obstante,
manter um nível de excepcional interesse em todas as suas páginas – pela sabedoria
com que são conotados os acidentes do efêmero, nos planos de vida que se cruzam
dentro da trama”.
A história é narrada em
primeira pessoa por Mariano, um oficial maior que trabalha no cartório de seu
sogro numa provinciana cidade do interior paulista. Quando do início na
narrativa, Mariano tem 40 anos, está há 10 anos casado com Sílvia e, após uma
longa espera e expectativa, descobrem finalmente a gravidez.
Os primeiros instantes do
livro remetem à noção de paternidade. Desde a gravidez, ser pai já significa ser
forçado a modificar hábitos enraizados. Silvia nega o sexo ao seu marido, já na
gestação. Após o nascimento de Marco Aurélio, vulgo Marcoré, Sílvia confessa a
Mariano que ao longo das dificuldades do parto, fez uma promessa religiosa em
que abriria mão da relação carnal em definitivo, desde que a criança nascesse e
crescesse com saúde. A esposa consente mesmo que Mariano mantenha mesmo relação
extra conjugal: sua preocupação e sua dedicação é exclusiva para Marcoré.
Sobre a notícia de que Sílvia
renunciava em definitivo à relação carnal, comenta Mariano:
“Já senhora de si e
vendo-me rendido, mudou de assunto com habilidade. Eu continuava atordoado, mas
já consciente de que passáramos a representar dois corpos perfeitamente distintos,
tanto quanto possível sintetizados na criança de cílios longos que dormia ao
lado de nossa cama. Tinha a sensação de que uma cunha se introduzira entre nós,
de que uma fenda se produzira em nossa intimidade”.
É interessante notar que o
nascimento da criança cria de fato uma fenda, primeiro separando os pais,
depois colocado em oposição Mariano e sua sogra, D. Ema, e por fim cindindo Marcoré
e seu pai. Todo o núcleo familiar que reside sobre o mesmo teto, Mariano, Sílvia,
D. Ema, o sogro Seu Camilo passam a viver em função de Marcoré, de sua
felicidade e de sua alegria. Este engajamento é tragicamente o ponto de partida
da dissolução da família, acarretando num final em que a solidão e a tristeza
parece ser o horizonte comum da vida todos.
Depois da morte dos
parentes e do abandono pelo filho, que se muda para São Paulo, o narrador em seus instantes finais suscita sentimentos
de solidão que não envolvem revolta, mas o cansaço físico e espiritual oriundos
da velhice, bem como o reconhecimento da fatalidade do drama vivido:
“A noite avança, há uma
paz profunda na casa deserta. Não mais que lembranças de seus mortos lhe povoam
o silêncio de trevas. Todos os ruídos de vida que me chegam são insólito, vêm
da cidade que se prepara para receber o Ano Novo.
Nenhum sentimento de
revolta ou inconformidade. Tenho o coração calmo, embora fatigado por toda uma existência
de equívocos. Nenhuma constrição também, pois me recuso a aceitar o papel que
me foi atribuído por meu filho. No balanço geral, cuido só ter havido vítimas,
sem discriminação possível dos culpados”.
Para Houaiss, o estilo da linguagem do livro é
conciso, “preciso, enxuto, correto e sábio”. Antônio Cândido menciona “ainda a
perfeição da língua e da composição, sem uma falha, sem o menor deslize, de um
gosto apurado e, ao mesmo tempo, de uma total eficácia”. A obra igualmente
recebeu elogios de Rachel de Queiroz, Gilberto Freyre e José Lins do Rego, além
de ter o autor recebido o prêmio Coelho Neto pelo romance da Academia
Brasileira de Letras. Trata-se de um romance intimista, na melhor tradição dos
romances de Graciliano Ramos: a franqueza do narrador e o intimismo com que
partilha suas emoções remontam ao Paulo Honório de São Bernardo e ao Luís da Silva
de Angústia.
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