Resenha Livro - “O
Reformismo e a Contrarrevolução – Estudos Sobre o Chile” – Ruy Mauro Marini –
Tradução de Diógenes Moura Breda - Ed. Expressão Popular – São Paulo - 2019
“O regime militar imposto
em 11 de Setembro de 1973 encerrou uma etapa da vida chilena que, começando
pelo aprofundamento das contradições interburguesas e pela radicalização do
movimento popular, levou finalmente, por mediação, inclusive, da formação de um
governo de esquerda que esses acontecimentos tornaram possível, à crise do
sistema de dominação burguês. A oposição entre os órgãos de Estado, a divisão
crescente entre as fileiras militares, o surgimento de órgãos embrionários de
poder à margem do Estado foram a expressão da crise global que se desencadeou
no seio da sociedade chilena. O drama da Unidade Popular e, em particular, das
forças que a hegemonizaram – o Partido Comunista e a corrente allendista – foi não
compreender que a vitória de 1970, reafirmada em 1973 (quando a coalização
governamental atingiu 44% da votação nas eleições parlamentares) não era a manifestação
de um simples processo acumulativo, que permitisse esperar o aumento
progressivo da força eleitoral da esquerda até o momento de poder alcançar, em
1976, não só a eleição de um novo governo de esquerda, mas também de uma maioria
parlamentar: essa vitória era antes uma explicitação das contradições de classes,
que não deixavam outra saída senão o enfrentamento direto entre elas”. (MARINI, Ruy Mauro. “Duas Estratégias No
Processo Chileno”).
A passagem supracitada ressalta
um traço bastante peculiar da história política do Chile, que se convencionou chamar
“a via chilena ao socialismo”. Em 04/09/1970 com a eleição de Allende e da
Unidade Popular, observa-se a ascensão de um governo de esquerda que propõe a
passagem ao socialismo respeitando à legalidade e os limites institucionais vigentes.
A Unidade Popular (UP) nada mais era do que uma coalizão eleitoral envolvendo
marxistas e sociais democratas, desde o início compromissada com o sistema
político vigente. O que Ruy Mauro Marine chama atenção, contudo, é que o
problema colocado à esquerda chilena não era o da transição ao socialismo, mas um
problema anterior, que correspondia à questão da tomada do poder – e que não se
confunde com a vitória eleitoral no governo. Esta ilusão das esquerdas perpassa
todo o período de setembro de 1970 até 11 de Setembro de 1973, quando do golpe
militar contrarrevolucionário. Uma lição essencial do processo é o de que o
reformismo, ao abalar o regime de dominação burguês, sem, contudo, preparar o
povo para a revolução, estará condenado a ser a antessala da contrarrevolução.
No caso da experiência chilena, uma contrarrevolução nitidamente fascista e brutal,
com o assassinato de 3.000 pessoas e o exílio de outros 200.000,00. A “via chilena ao socialismo”, ou a pretensão
de transformar estruturalmente a sociedade burguesa sem propor ultrapassar os
seus próprios limites, ainda suscita lições importantes e atuais.
Antecedentes
Os artigos reunidos nesta
coletânea preparada pela Editora Expressão Popular em parceria com a Adunirio[1],
são textos escritor no calor da hora, entre 1970 e 1974. Importante frisar que
Ruy Mauro Marini acompanhava os acontecimentos in loco. Depois do golpe
militar de 1964 no Brasil, Marini exilou-se no México, após ter sido preso e
torturado no CENIMAR/RJ. Na década de 1970 transfere-se ao Chile onde leciona
na Universidade de Santiago até o golpe de setembro de 1973.
Ruy Mauro Marini também integra
o comitê central do MIR, movimento da esquerda revolucionária, que compõe uma
ala mais à esquerda da Unidade Popular.
No que se refere à luta da
UP contra os golpistas nos anos de 1970-1973, observa-se que dentro da frente
de esquerda há duas tendências. Uma tendência ligada ao allendismo e ao Partido
Comunista buscava a realização de acordos com a burguesia, particularmente com
a Democracia Cristã. O MIR de outro lado defendia o controle operário da
produção como forma de combater a sabotagem e o desabastecimento encorajado
pelos setores patronais.
Em artigos de março de
1973, Marini já acentua uma escalada de um movimento fascista chileno impulsionado
pelo grande capital nacional e internacional, se fortalecendo sob a base da
luta econômica levada à cabo pela direita com a especulação e os mercados
paralelos. A especulação na frente econômica lança a pequeno burguesia contra a
classe trabalhadora, cria confusão nas fileiras dos setores populares próximos
ao proletariado e fortalece a coesão burguesa. A escalada não impediu que poucos
meses antes do golpe, Allende, seguindo a tendência geral da conciliação,
propusesse um plebiscito para deliberar sobre sua renúncia, além de colocar nada
menos do que Augusto Pinochet como chefe do exército.
Os artigos de Ruy Mauro
Marini igualmente abordam o tema da economia e da sociedade chilena na década
de 1960/70 e as condições históricas que possibilitaram a vitória eleitoral da
UP.
A vitória eleitoral de
Allende se deu em margem apertada, contando com 36% ou 1/3 dos votos. A
esquerda venceu eleitoralmente muito em função da divisão eleitoral da direita,
representada pelo Partido Nacional e pela Democracia Cristã. A década de 1960 é
um período de estagnação econômica do Chile. A perda do dinamismo industrial
estimula a divisão entre os grupos capitalistas. É certo, por outro lado, que a
eleição de Allende se dá no contexto de crise profunda do sistema de dominação burguês
e escalada ininterrupta do movimento de massas, em especial no campo. O autor
suscita dados convincentes neste sentido, como o aumento no número de sindicalização,
e do movimento grevista, com destaque para os setores mais dinâmicos politicamente.
Balanço de uma derrota
O reformismo da UP
certamente não se confunde com a experiência dos partidos ditos progressistas no
Brasil no período de Lula e Dilma Rousselff. Allende nacionalizou a indústria
do cobre, a principal do país, nacionalizou grandes e médias indústrias, promoveu
a reforma agrária, aumentou os salários
e congelou os preços de mercadorias, promoveu reformas que efetivamente se
contrapunham aos interesses gerais da burguesia.
Contudo, o seu reformismo,
pelo próprio fato de abalar a sociedade burguesa até os seus alicerces sem se
atrever a destruí-la, acabou se transformando de fato na antessala da
contrarrevolução.
Nos momentos de maior
acirramento da luta de classes no ano de 1973 as organizações operárias
propunham o armamento e a autodefesa. É sintomático
que Allende e os reformistas firmassem acordo com a direita determinando que
forças do governo desarmassem os operários na marra, poucos instantes antes do golpe de 1973.
A “via chilena ao
socialismo”, qual seja, “a conquista gradual e pacífica do poder político, sem
a ruptura brusca da ordem burguesa, acompanhada da liquidação das bases da
dominação imperialista, latifundiária e monopólica, através de medidas
formuladas com a perspectiva de construção do socialismo[2]”
redundou num inequívoco fracasso cujas lições aparentemente não foram mesmo
aprendidas pela própria esquerda chilena. Naquele país o fim da ditadura
militar ocorreu mediante uma pactuação semelhante (mas não idêntica) da chamada
Nova República brasileira, com a reiteração da política da esquerda de
conciliar e fazer acordos com a direita. Quando das explosões de mobilizações da
juventude chilena nestes últimos anos, verificou-se uma desconfiança tanto com
relação à direita, quanto com à esquerda tradicional, algo parecido com o
sentimento de desconfiança da juventude em junho de 2013. Que a leitura destes
artigos do revolucionário mineiro Ruy Mauro Marini contribua para que as novas
gerações extraiam as lições das derrotas históricas e dos limites do reformismo, mesmo na sua
versão mais radical com a “via chilena”.
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