“A Rosa do Povo” – Carlos Drummond de Andrade
Resenha
Livro - “A Rosa do Povo” – Carlos Drummond de Andrade – Editora Record – 36ª
Edição – 2006
“E
que a hora esperada não seja vil, manchada de medo,
submissão
ou cálculo. Bem sei, um elemento de dor
rói sua
base. Será rígida, sinistra, deserta,
mas
não a quero negando as outras horas nem as palavras
ditas
antes com voz firme, os pensamentos
maduramente
pensados, os atos
que
atrás de si deixaram situações.
Que
o riso sem boca não a aterrorize,
E a
sombra da cama calcária não a encha de súplicas,
Dedos
torcidos, lívido
suor
de remorso.
E a
matéria se veja acabar: adeus composição
Que um
dia se chamou Carlos Drummond de Andrade
(...)"
(“Os
Últimos Dias” – Rosa do Povo – Carlos Drummond)
Quando
Carlos Drummond de Andrade publicou o poema parcialmente reproduzido acima no
ano de 1945, o poeta tinha 43 anos e apenas estava começando a se projetar no
mundo literário do país.
Em
1942 assina contrato com a José Olympio, editora que publicaria os trabalhos do
escritor por 41 anos. O seus primeiros livros, “Alguma Poesia” (1930), “Beijo das
Almas” (1934) e “Sentimento do Mundo” (1940) tiveram respectivamente 500, 200 e
150 exemplares, tiragens promovidas e parcialmente pagas do bolso do próprio
poeta. Foram apenas distribuídas aos seus amigos.
Aos
poucos o reconhecimento artísticos viria, em resposta a um labor que já vinha
de muitos anos. No caso do poema supracitado, o tema, como se nota, é a morte e
o receio do instante final. No caso do nosso poeta, a morte só viria em 1987,
quando Carlos Drummond tinha 84 anos e um reconhecimento nacional e internacional
de sua obra. O escritor morreu doze dias após a morte de sua filha, a também escritora
Maria Julieta, vítima de um câncer. CDA escreveu em um diário após o
falecimento da filha “Assim terminou a vida da pessoa que mais amei neste mundo”.
Os
poemas de “A Rosa do Povo” foram escritos entre 1943/1945. O livro foi
publicado em 1945: em que pese ter recebido boa acolhida do público e da
crítica, não teve edições autônomas posteriores pela José Olympio.
Nas
palavras do escritor na introdução escrita 40 anos depois da primeira edição:
“Quis
a Record (editora) fazê-lo voltar à situação primitiva, como obra que, de certa
maneira, reflete um ‘tempo’, não só individual, mas coletivo no país e no
mundo. Escrito durante os anos cruciais da Segunda Guerra Mundial, as
preocupações então reinantes são identificadas em muitos de seus poemas,
através da consciência e do modo pessoal de ser de quem os escreveu. Algumas
ilusões feneceram mas o sentimento moral é o mesmo – e está dito o necessário”.
É
certo que a situação política do Brasil e do Mundo envolvia o prestígio da
democracia, o rechaço ao nazi-faciscmo, e, em especial, o fortalecimento das
simpatias dos povos pela URSS que, no contexto imediato do pós II Guerra, saiu-se
inequivocamente como a maior responsável pela vitória militar sobre o nazi-facismo,
com todas as consequências que esta vitória teve para os rumos da humanidade.
Hoje
em dia, o senso comum decorrente de um discurso ideológico da guerra fria,
certamente terá dificuldade de compreender o respeito que a URSS presidida por
Stálin despertou pelos povos mundo afora, inclusive no Brasil. Em 1939 e em
1942 a revista norte-americana Times elegeu Stálin como homem do ano. Depois de
estar praticamente sempre na ilegalidade desde 1922, o PCB não só conquistou a legalidade
em 1945, como elegeu uma ampla bancada comunista na assembleia constituinte de
Dutra, da qual foram parte Luís Carlos Prestes, Carlos Marighella, Jorge Amado
e Maurício Grabois.
No
ano de 1942 houve a batalha de Stalingrado (1942/1943). A batalha é conhecida
como um ponto de virada dos limites da expansão nazista no território soviético,
a partir de onde o exército vermelho empurraria as tropas nazistas até Berlin. Nada
menos do que três poemas deste “Rosa Do Povo” fazem menção à Stalingrado, à
vitória militar dos comunistas sobre os nazistas e ao socialismo: “Cidade
Prevista”, “Carta a Stalingrado” e “Telegramas de Moscou”. O primeiro destes
três poemas canta e anuncia um novo mundo, antevisto pelos poetas, um futuro
que supera o atual “mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é bolo com
flores”:
“Um
mundo, enfim ordenado,
Uma pátria,
sem fronteiras,
Sem leis
e regulamentos,
Uma terra
sem bandeiras,
Sem igrejas
nem quartéis,
Sem dor,
sem febre, sem ouro,
Um jeito
só de viver,
Mas nesse
jeito a variedade,
A multiplicidade
toda
Que há
dentro de cada um.
Uma
cidade sem portas,
De casas
sem armadilha,
Um país
de riso e glória
Como
nunca houve nenhum.
Este
país não é meu
Nem vosso,
ainda, poetas.
Mas
ele será um dia
O país
de todo homem”.
Não
seria nada exato, contudo, caracterizar a
poesia e prosa de CDA como um trabalho militante e, muito menos, como ideologicamente
comprometidas com o socialismo. Mesmo neste “Rosa do Povo”, que é provavelmente
o mais politizado dos livros do escritor mineiro, os temas especificamente políticos
não são maioria.
Pelo
contrário, as temáticas variam da forma de fazer poemas, da rotina e do
trabalho burocrático dos funcionários públicos, do amor e até do contar
histórias em poesia. O que é interessante de se notar é que os temas dos poemas
parecer terem sido agrupados de tal forma que é recomendável a leitura na ordem
proposta pelo escritor – o livro parece uma espécie de ópera ou grande musical
em que se intercalam momentos de maior e menor tensão.
O
poeta começa nos poemas “A consideração do Poema” e “Procura da Poesia” apresentando
sua proposta literárias: versos livres, sentimentos que variam da tristeza ao humor
e à ironia, a total oposição à poesia parnasiana como todo bom poeta modernista.
Logo
no início do livro o escritor afirma que não rimará a palavra sono com a
incorrespondente palavra outono, mas rimará com a palavra carne ou outra que
lhe convém. Mais do que poemas ideologicamente de esquerda, o crítico Affonso
Romano de Sant’Anna vê uma relação entre este trabalho e o existencialismo,
corrente filosófica que suscita uma tentativa e impossibilidade de inserção
plena do indivíduo no mundo. Um mal estar que se expressa talvez no mais auto
ponto poético de “A Rosa do Povo”, o poema “A Flor e Náusea”.
Certamente,
não se trata de um desespero ante uma realidade sem saída, como vimos.
Stalingrado, na distante Rússia, ainda remete a um ponto de esperança. E talvez
seja mesmo imprescindível salientar que a última palavra redigida no último
poema da coletânea seja justamente a palavra esperança:
“Poder
de voz humana inventando novos vocábulos e dando sopro aos exaustos.
Dignidade
da boca, aberta em ira justa e amor profundo,
Crispação
do ser humano, árvore irritada, contra a miséria e a fúria dos ditadores,
Ó Carlito,
meu e nosso amigo, teus sapatos e teu bigode caminham numa estrada de pó e
esperança”.
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