“Memórias da Casa dos Mortos” – Fiódor Dostoiévski
Resenha Livro - “Memórias da Casa dos Mortos” – Fiódor Dostoiévski – Tradução e Notas: Oleg Almeida – Ed. Martin Claret
“Três dias depois de chegar ao presídio, recebi a ordem de proceder ao trabalho. Lembro-me, sobretudo, daquele primeiro dia de trabalhos forçados, se bem que, no decorrer dele, não me tivesse acontecido nada de muito incomum, pelo menos levando em consideração tudo quanto era incomum por si só naquele meu estado. Aliás, era também uma das primeiras impressões minhas, continuando eu ainda a examinar, sôfrego, tudo ao meu redor. Passei os três primeiros dias atormentado pelas sensações mais penosas. “Eis o fim da minha viagem: estou na cadeia!” – repetia a mim mesmo a cada minuto. “Eis o meu paradeiro por muitos e longos anos, meu canto em que entro com tanta desconfiança, com uma sensação tão dolorosa...E quem sabe mesmo? Talvez eu chegue, quando o deixar daqui a muitos anos, a ter saudades dele!...” – acrescentava não sem mesclar às minhas lamúrias aquela malvadez que resulta, por vezes, na necessidade de a gente irritar, deliberadamente, a sua ferida, como se quisesse desfrutar da sua dor, como se encontrasse um verdadeiro prazer na consciência de toda a imensidão da sua desgraça. A própria ideia de que chegaria, com o passar do tempo, a lamentar aquele meu canto enchia-me de pavor: já então é que pressentia em que grau monstruoso o homem se adapta ao seu ambiente. Mas isso estava ainda por vir e, por enquanto, tudo o que me rodeava era hostil e medonho...”.
Em Janeiro de 1850, Dostoiévski, aos 29 anos e com dois livros já publicados, ingressou na chamada Casa dos Mortos, presídio de regime especial na cidade siberiana de Omsk, município “sujo, militarizado e depravado no mais alto grau”, nas palavras do escritor.
Consta que desde 1847 Dostoiévski frequentava as reuniões de um grêmio socialista liderado por Mikhail Petrachévski, um político e filósofo russo que intentava implantar no seu país as ideias do socialista utópico francês Charles Fourier. O contexto histórico é o da Rússia dos czares, ou, mais especificamente, do reinado de Nikolai I (1825/1855), um período particularmente difícil para aqueles que tencionavam a reconstrução liberal do Império Russo.
O grêmio foi considerado subversivo e foi desmantelado em 23/04/1849. Consta que Dostoiévski quando de sua prisão, não negou a sua afinidade com as ideias do socialismo utópico: “Sou livre pensador no mesmo sentido em que podem chamar de livre pensador toda pessoa que sente, no fundo do seu coração, o direito de ser cidadão e de desejar o bem de sua pátria, pois encontra no coração o amor por ela e a consciência de que nunca a prejudicou de maneira alguma”.
O processo judicial contra o grupo de Petrachévski foi concluído em novembro de 1949. Dostoiévski foi punido com a cassação dos seus direitos civis e oito anos de trabalhos forçados em presídios siberianos.
Neste livro de memórias da prisão siberiana, não há muitas menções às opiniões políticas do escritor e ao programa de reformas liberais defendido pelo grêmio do qual fazia parte. Trata-se antes de uma relato objetivo das condições de vida carcerária, com retratos dos demais presos que conviveram com autor, dos hábitos de contrabando, das bebedeiras de vinho, dos trabalhos forçados, dos castigos corporais, das tentativas de fuga, etc.
Um ponto que chama atenção ao longo da narrativa é como o regime social derivado da servidão, com a divisão de classes entre fidalgos e servos, proprietários e mujiques, se expressa no ódio e desconfiança da esmagadora maioria dos presos com os poucos ricos com quem compartilham a prisão – incluído o próprio escritor, que é visto pelos companheiros de cela como um dos “fidalgos”. A desconfiança e a convivência forçada com os presos que nitidamente não gostam dos proprietários torna a experiência da cadeia torturante.
Os relatos sobre os castigos corporais das prisões russas são bastante interessantes, não só pelo conhecimento histórico que proporcional, mas pelo retrato literário com que o escritor descreve estas situações limites. O medo do castigo é agudo e suprime toda a essência moral do homem - as sentenças preveem até 3 ou 4 mil golpes de varas, quando 400/500 açoitadas já são suficientes para matar um homem.
Talvez as passagens em que o escritor suscita uma crítica social sejam justamente quando tece críticas aos castigos corporais. Para o autor o direito de aplicar castigos corporais degenera e degrada o homem. O medo do castigo faz não raro que o preso cometa um novo crime, como atacar fisicamente um soldado, com o escopo de promover um novo julgamento e postegar, ainda que por alguns dias, o momento apavorante das açoitadas.
O comércio ilegal de bebida, no caso o vinho, também é algo que ocupa parte importante do tempo dos presos. Toda a bestialidade do preso é revelada com a bebedeira. Os mesmos passam, um ou dois anos economizando, de copeque em copeque, trabalhando duro na cadeia, para gastar todo o montante em um dia de farra e bebedeira. Como numa espécie de ciclo, após a farra, recomeça-se o trabalho árdua e a economia com vista exclusiva à próxima farra.
O povo da Rússia chama o crime de desgraça e o criminoso de desgraçado. A compaixão pelos presos se revela nas esmolas dadas aos detentos e nas festas religiosas, como o natal. Com uma habilidade de descrever a psicologia das personagens para além do aspecto puramente moral (não se esquecendo que se trata de criminosos, em geral assassinos, parricidas, ladrões, etc.) é notável como estas memórias, escritas em meados do século retrasado na longínqua Sibéria, remonta-nos a homens que nos parecem próximos ou até íntimos.
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