O DEMÔNIO FAMILIAR DE JOSÉ DE ALENCAR
“EDUARDO –
Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por um demônio familiar, do
qual dependia o sossego e a tranquilidade das pessoas que nela viviam. Nós, os
brasileiros, realizamos infelizmente esta crença; temos no nosso lar doméstico esse
demônio familiar. Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães,
os folguedos de nossos irmãos e uma parte das atenções da família! Mas vem um
dia como hoje, em que ele na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz
doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de todos esses objetos
santos, um jogo de criança. Este demônio familiar de nossas casas, que todos
conhecemos, ei-lo.”.
José
Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, que na época era um povoado nas
cercanias de Fortaleza. Seu pai fora padre, mas largou a batina para dedicar-se
à vida política. José de Alencar estudou na Faculdade de Direito do Largo São
Francisco em São Paulo, onde foi colega de Álvares de Azevedo (1831-1852) e
Bernardo Guimarães (1825-1884).
Exerceu o
jornalismo, a crítica literária e a política. Foi deputado pelo partido
conservador e ocupou o cargo de ministro da justiça no gabinete Itaboraí.
Defendeu a escravidão. Para os heróis do identitarismo que defendem a censura
de Monteiro Lobato e o fogo nas estátuas, é possível que este fato os autorize
a deixar de conhecer nosso escritor, sem grandes remorsos.
Na literatura,
é muito lembrado como o escritor romântico de obras com centralidade na figura
do índio. Seria um primeiro movimento literário nacionalista, senão na forma,
que ainda se baseava na tradição literária francesa, no conteúdo.
Ficaram
conhecidos do público as obras indianistas deste nosso escritor: O Guarani
(1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).
Na sua crítica
à Gonçalves Magalhães, o escritor cearense dizia que a forma literária dos
épicos era meio inadequado de retratar a nacionalidade: havia muito pouco tempo
desde o fim da colônia e início da constituição da nação para se cogitar uma
mitologia brasileira.
Também não se
filiava Alencar à perspectiva dos cronistas que intentaram retratar de forma
documental os índios brasileiros. Para o escritor, os índios deveriam ser
retratados através do romance.
A idealização
do bom selvagem, decorrência do pensamento romântico e com referência clara a
Jean-Jacques Rousseau, geraria críticas já no tempo de Alencar. Manifestou-se o
entendimento de que o autor era um artista de gabinete, que buscava retratar
realidades regionais sem nunca tê-las conhecido de perto. Estas críticas tinham
sua razão de ser: de fato, nunca se propôs a fazer uma antropologia dos índios
brasileiros.
Talvez não
seja tão conhecida do público sua peça de teatro “O Demônio Familiar” escrita
em 1817 e que de certa forma já antecipa alguns temas do movimento
abolicionistas, a despeito do nosso escritor cearense ter sido ele próprio do
partido conservador e partidário da escravidão.
A história se
passa no seio familiar do Dr. Eduardo, sua irmã Carlotinha, sua amiga Henriqueta,
e outras figuras de uma ascendente burguesia citadina situada no Rio De
Janeiro.
Carlotinha ama
Alfredo, mas é induzida a casar com Azevedo. Henriqueta ama Eduardo, mas tem os
seus intentos igualmente frustrados por uma aparente força oculta. Alfredo
intenta casar por interesse com Henriqueta, mas deseja Carlotinha. Por de trás
dos desencontros amorosos opera Pedro, um escravo doméstico, que lança mão de
uma série de artifícios para manipular as relações entre as personagens de acordo
com os seus caprichos. Troca as cartas de um para destinatários de outro. Mente
e manipula.
Pedro neste caso
é o próprio Demônio Familiar: tem o desejo íntimo de ascender de escravo
doméstico para cocheiro, possibilitando usar belas roupas e transitar pela
cidade conduzindo os cavalos e sendo observado por todos. Diante deste desejo,
Pedro busca induzir os demais personagens ao casamento dentro dos seus
interesses pessoais, puramente pecuniários. No caso, o enlace não dizia
respeito às verdadeiras intenções das partes, mas ao que era possivelmente mais
conveniente do ponto de vista financeiro ao escravo. Com casamentos bem sucedidos
financeiramente, garantiria o seu sonho de ascensão social.
É como se Pedro
traçasse durante a peça diversos nós com as suas mentiras, quase implicando na
desagregação do seio familiar. No último instante da peça, Eduardo desfaz todos
estes nós, chamando a atenção dos parentes e dos amigos de que os desencontros
não decorrem de um problema pessoal de mal caráter do escravo, mas da própria inconveniência
da escravidão, ao menos no seio da família.
Na trilha da tradição
romântica, o seio familiar “deve ser tão sagrado como um túmulo.”.
Mais de 50 anos
depois, outro escritor retomaria esta tese, já com um conteúdo inequivocamente
abolicionista. No seu “Vítimas Algozes” (1869), Joaquim Manuel de Macedo retoma
o tema da influência negativa da escravidão nas famílias proprietárias. Os
paralelos entre Pedro do Demônio Familiar e Lucrécia na sua relação com Cândida
do Vítimas Algozes são patentes.
Crescia a
percepção de que a escravidão já envolvia prejuízos culturais e morais muito
maiores do que os seus eventuais
proveitos financeiros. Diríamos hoje, com um certo anacronismo, tratar-se de
livros “racistas” que defendem a abolição da escravatura menos pela situação de
miséria do escravo e mais pelos efeitos desta tragédia na vida dos
proprietários, dos brancos.
No final da
peça, Eduardo, após descobrir as mentiras do seu escravo, pune-o com a sua
liberdade.
Diz ao Demônio
Familiar, após entregar sua carta de alforria:
“EDUARDO -
Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante,
porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão
uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho
honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro
beija-lhe a mão).”.
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