sábado, 4 de dezembro de 2021

O DEMÔNIO FAMILIAR DE JOSÉ DE ALENCAR

 O DEMÔNIO FAMILIAR DE JOSÉ DE ALENCAR






“EDUARDO – Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por um demônio familiar, do qual dependia o sossego e a tranquilidade das pessoas que nela viviam. Nós, os brasileiros, realizamos infelizmente esta crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos e uma parte das atenções da família! Mas vem um dia como hoje, em que ele na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de todos esses objetos santos, um jogo de criança. Este demônio familiar de nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo.”. 

 

José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, que na época era um povoado nas cercanias de Fortaleza. Seu pai fora padre, mas largou a batina para dedicar-se à vida política. José de Alencar estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em São Paulo, onde foi colega de Álvares de Azevedo (1831-1852) e Bernardo Guimarães (1825-1884).

 

Exerceu o jornalismo, a crítica literária e a política. Foi deputado pelo partido conservador e ocupou o cargo de ministro da justiça no gabinete Itaboraí. Defendeu a escravidão. Para os heróis do identitarismo que defendem a censura de Monteiro Lobato e o fogo nas estátuas, é possível que este fato os autorize a deixar de conhecer nosso escritor, sem grandes remorsos.

 

Na literatura, é muito lembrado como o escritor romântico de obras com centralidade na figura do índio. Seria um primeiro movimento literário nacionalista, senão na forma, que ainda se baseava na tradição literária francesa, no conteúdo.

 

Ficaram conhecidos do público as obras indianistas deste nosso escritor: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).

 

Na sua crítica à Gonçalves Magalhães, o escritor cearense dizia que a forma literária dos épicos era meio inadequado de retratar a nacionalidade: havia muito pouco tempo desde o fim da colônia e início da constituição da nação para se cogitar uma mitologia brasileira.

 

 

Também não se filiava Alencar à perspectiva dos cronistas que intentaram retratar de forma documental os índios brasileiros. Para o escritor, os índios deveriam ser retratados através do romance.

 

A idealização do bom selvagem, decorrência do pensamento romântico e com referência clara a Jean-Jacques Rousseau, geraria críticas já no tempo de Alencar. Manifestou-se o entendimento de que o autor era um artista de gabinete, que buscava retratar realidades regionais sem nunca tê-las conhecido de perto. Estas críticas tinham sua razão de ser: de fato, nunca se propôs a fazer uma antropologia dos índios brasileiros.

 

Talvez não seja tão conhecida do público sua peça de teatro “O Demônio Familiar” escrita em 1817 e que de certa forma já antecipa alguns temas do movimento abolicionistas, a despeito do nosso escritor cearense ter sido ele próprio do partido conservador e partidário da escravidão.

 

A história se passa no seio familiar do Dr. Eduardo, sua irmã Carlotinha, sua amiga Henriqueta, e outras figuras de uma ascendente burguesia citadina situada no Rio De Janeiro.

 

Carlotinha ama Alfredo, mas é induzida a casar com Azevedo. Henriqueta ama Eduardo, mas tem os seus intentos igualmente frustrados por uma aparente força oculta. Alfredo intenta casar por interesse com Henriqueta, mas deseja Carlotinha. Por de trás dos desencontros amorosos opera Pedro, um escravo doméstico, que lança mão de uma série de artifícios para manipular as relações entre as personagens de acordo com os seus caprichos. Troca as cartas de um para destinatários de outro. Mente e manipula.

 

Pedro neste caso é o próprio Demônio Familiar: tem o desejo íntimo de ascender de escravo doméstico para cocheiro, possibilitando usar belas roupas e transitar pela cidade conduzindo os cavalos e sendo observado por todos. Diante deste desejo, Pedro busca induzir os demais personagens ao casamento dentro dos seus interesses pessoais, puramente pecuniários. No caso, o enlace não dizia respeito às verdadeiras intenções das partes, mas ao que era possivelmente mais conveniente do ponto de vista financeiro ao escravo. Com casamentos bem sucedidos financeiramente, garantiria o seu sonho de ascensão social.

 

É como se Pedro traçasse durante a peça diversos nós com as suas mentiras, quase implicando na desagregação do seio familiar. No último instante da peça, Eduardo desfaz todos estes nós, chamando a atenção dos parentes e dos amigos de que os desencontros não decorrem de um problema pessoal de mal caráter do escravo, mas da própria inconveniência da escravidão, ao menos no seio da família.

 

Na trilha da tradição romântica, o seio familiar “deve ser tão sagrado como um túmulo.”.

 

Mais de 50 anos depois, outro escritor retomaria esta tese, já com um conteúdo inequivocamente abolicionista. No seu “Vítimas Algozes” (1869), Joaquim Manuel de Macedo retoma o tema da influência negativa da escravidão nas famílias proprietárias. Os paralelos entre Pedro do Demônio Familiar e Lucrécia na sua relação com Cândida do Vítimas Algozes são patentes.

 

Crescia a percepção de que a escravidão já envolvia prejuízos culturais e morais muito maiores  do que os seus eventuais proveitos financeiros. Diríamos hoje, com um certo anacronismo, tratar-se de livros “racistas” que defendem a abolição da escravatura menos pela situação de miséria do escravo e mais pelos efeitos desta tragédia na vida dos proprietários, dos brancos.  

 

No final da peça, Eduardo, após descobrir as mentiras do seu escravo, pune-o com a sua liberdade.

 

Diz ao Demônio Familiar, após entregar sua carta de alforria:

 

“EDUARDO - Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão).”.   

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