Resenha livro #89 “Estado,
Ditadura do Proletariado e Poder Soviético” – Lênin – (Org. Antonio Roberto
Bertelli) – Coleção Fundamentos Oficina de Livros
É muito oportuna a seleção e publicação destes escritos de Lênin
relacionados à teoria da transição, aos problemas do estado soviético, da ditadura do proletariado e das exigências
colocadas pela conjuntura aos revolucionários que partiam das tarefas da tomada
do poder propriamente dito (escritos antes de outubro de 1917), para a
consolidação e sobrevivência do estado operário durante os anos da guerra civil
(escritos entre outubro de 1917 e 1918) e os escritos posteriores, do período
da NEP e da necessidade de se avançar no terreno da formação e educação (ideia
da “revolução cultural” presente nos textos de Lênin entre 1921-23).
A doença impediria Lênin de escrever a partir de 1923 até sua morte em
1924.
Os textos presentes nesta coletânea são, na sua ordem cronológica: “A
Catástrofe que nos ameaça e como Combatê-la” (escrito em setembro de 1917); “Poderão
os bolcheviques manter o poder?” (escrito entre setembro e outubro de 1917); “Primeira
versão do artigo ‘As tarefas imediatas do poder proletário’ (ditado em março de
1918); “As tarefas imediatas do poder soviético” (escrito em abril de 1918);
Reunião do CEC de toda a Rússia – 29 de abril de 1918 (Informe sobre as tarefas
imediatas do poder soviético); “Seis teses sobre as tarefas imediatas do poder
soviético” (escrito em abril de 1918); “Infantilismo de ‘esquerda’ e a
mentalidade pequeno burguesa (publicado em maio de 1918); “As eleições para a
Assembleia nacional constituinte e a ditadura do proletariado” (publicado em
dezembro de 1919); “O Imposto em espécie (a significação da nova política
econômica e suas condições (publicado em maio de 1921); “Sobre o Cooperativismo”
(publicado em maio de 1923); Como devemos reorganizar a Inspeção Operária e
Camponesas (Proposição ao XII Congresso do partido) (publicado em Janeiro de
1923); e “Melhor pouco, porém melhor” (março de 1923).
É possível visualizar três momentos distintos nos textos, que
correspondem mesmo a momentos diferentes da revolução russa. O que é
particularmente interessante é que mesmo o tom, a forma como Lênin se expressa
de alguma forma diz respeito também a diferentes humores daquela transição
difícil que Lênin, lembrando Marx, lembra equivaler a um duro parto. Este “duro
parto” ou a teoria da transição socialista é o grande tema de todos estes
artigos reunidos.
Os dois primeiros, A Catástrofe que nos ameaça e como Combatê-la”
(escrito em setembro de 1917) e “Poderão os bolcheviques manter o poder?”
(escrito entre setembro e outubro de 1917) são os dois únicos escritos quando
os bolcheviques não estavam no poder. Este esteve com Kerensky, apoiado pelos
esseristas e mencheviques, durante a fase “democrático-burguesa” da revolução
russa (iniciada em fevereiro de 1917). Os textos são escritos em tom de
polêmica, o primeiro apontando o programa mínimo dos bolcheviques e o segundo
aprofundando o tema anterior. Nesta contexto de combate de ideias prévio à
tomada do poder pelos bolcheviques (o que envolvia fazer com que o proletariado
e, posteriormente, as massas camponesas aderisse as ideias bolcheviques), Lênin
elenca 6 argumentos utilizados contra os bolcheviques e o contra argumentará. Vamos
citar alguns deles.
O primeiro argumento: “O proletariado está isolado das demais classes
do país”. Lênin mostra com números que os bolcheviques já contavam então com a maioria
nos sovietes de deputados, operários, soldados e camponeses, “com a maioria da
pequena burguesia, tanto no que se refere ao problema da coalizão com a
burguesia (as quais os bolcheviques se posicionam contra), como na entrega
imediata das terras dos latifundiários aos comitês camponeses”. E o mesmo poderia
ser acrescentado com relação ao problema da paz. Por defenderem o programa que
mais correspondia aos anseios das massas, os bolcheviques tomariam o poder. O fracasso do governo de coalizão certamente
faria com que a massa dos camponeses cada vez mais passasse para o campo
bolchevique, sendo certo que estes mesmos bolcheviques, sob a liderança de
Lênin, nada mais fizeran do que oferecer a política apenas defendido na
retórica pelos esseristas, qual seja, a nacionalização da terra e o confisco
dos latifundiários.
Outros dados oferecidos aqui e em demais momentos nos textos de Lênin
mostram como o mapeamento dos votos nos sovietes revelam as divisões de classe
fundamentais na Rússia. Proletariado, burguesia e campesinato (pequeno-burguesia).
O proletariado vota majoritariamente com os bolcheviques, mesmo antes de
outubro. O partido da burguesia, dos latifundiários e dos elementos
contra-revolucionários são os kadetes. O campesinato apoia os esseristas mas, sob a já mencionada falência
do governo de coalização, os camponeses seguirão a direção do proletariado na
revolução russa, o que seria decisivo para sua vitória e sobrevivência. Concessões
como a NEP e o imposto em espécie diziam respeito tanto à tática de aliança
junto aos camponeses como à estratégia socialista, fazendo avançar e criando cada vez melhores condições para o
capitalismo de estado.
O segundo argumento utilizados pelos adversários do partido
bolchevique é que “o proletariado está isolado das verdadeiras forças vivas da
democracia”. Além de ridicularizar estas “frases mortas”, Lênin reitera que a
tendência é de crescimento do apoio dos bolcheviques, justamente pela inércia
do governo Kerensky, particularmente no tocante à manutenção da guerra.
O terceiro argumento é o de que o proletariado “não poderá
tecnicamente apoderar-se do aparelho do Estado”. Lênin reconhece haver uma
dificuldade em ensinar os trabalhadores a governar, mas bem lembra que o fato
de ser difícil não faz com que os socialistas devam deixar de cumprir a tarefa
de governar. É importante pontuar que neste momento Lênin está ainda próximo da
perspectiva de seu “Estado e Revolução” do que estaria, por exemplo, nas suas
análises dos anos 1920. Antes, o modelo de estado socialista em Lênin
assemelha-se à Comuna de Paris, o que vem a ser, neste artigo, à defesa dos
sovietes. Posteriormente, haverá um outro discurso, voltado à defesa do
Capitalismo de Estado, a antessala necessária ao socialismo. (Dedicará uma
polêmica inteira junto aos comunistas de esquerda e Bukharin acerca do capitalismo
de estado). Vejamos o que diz Lênin: “O proletariado não pode ‘apoderar-se’ do
aparelho do estado e ‘colocá-lo em marcha’. Porém, pode destruir tudo o que há
de opressor , de rotineiro, de incorrigivelmente burguês no velho aparelho de
estado, e substituí-lo por um novo
aparelho, próprio. Este aparelho são, precisamente, os soviets de deputados operários,
soldados e camponeses.”.
Destacamos outra passagem bastante expressiva acerca do papel do
estado em Lênin naquela conjuntura:
“O Estado é o órgão de dominação de uma classe. De que classe? Se é da
burguesia, então é o Estado cadete-Kornilov-‘Kerensky’, que esteve ‘korniloviano
e keresnkiano’ os operários da Rússia durante mais de seis meses. Se é do
proletariado, se estamos falando de um estado proletário, isto é, da ditadura
do proletariado, então, pode o controle operário se reverter no registro da
produção e distribuição dos produtos por todo o povo, universal, onipresente,
mais preciso e escrupuloso.
Esta é a dificuldade principal, a tarefa principal da revolução
proletária, isto é, da revolução socialista. Sem os soviets esta tarefa seria,
pelo menos para a Rússia, impraticável.”
Será por este aporte segundo o qual a detenção rígida e inflexível do
poder político pelo proletariado no estado operário parte das razões que Lênin
mostrará para afastar as críticas à NEP, ao reestabelecimento do capitalismo em
pequena escala, ao imposto em espécie e até mesmo à polêmica referente à
contratação de técnicos capitalistas que irão colaborar e educar o proletariado
a organizar a grande produção.
A organização da produção. Esta é a temática permanente do que
poderíamos colocar como a segunda fase do pensamento leniniano evidenciado
pelos textos, indo da “Primeira versão do artigo ‘As tarefas imediatas do poder
proletário’ (ditado em março de 1918) até “As eleições para a Assembleia
nacional constituinte e a ditadura do proletariado” (publicado em dezembro de 1919).
Aqui o grande líder revolucionário chega a ser talvez repetitivo, ainda que
deva sempre observar que os escritos do período são todos destinados a mais
ampla circulação, sendo necessário o tom didático (mas nem por isso
superficial) e acrescentaríamos até um certo doutrinarismo, com todas as
reservas à utilização do termo, até porque pela própria posição política de
Lênin, a última coisa que podemos é caracterizá-lo como dogmático. (Certamente
foi um ortodoxo, que é coisa diferente). De qualquer forma, as questões de
ordem colocadas por Lênin são: montar um aparato de registro e controle da
produção de forma a punir severamente a especulação e restabelecer disciplina e
autodisciplina dentro do trabalho, o que se explica pela enorme devastação da
Rússia naqueles anos em que acumulou guerra mundial, revolução e guerra civil.
A cidade e o campo estão assolados pelo espectro da fome, sendo essencial organizar
imediatamente a produção, fazer com que o estado operário resista, se
estabeleça como uma trincheira, tirando proveito da divisão inter-imperialista
que implicou numa pequena trégua. Esta trégua precisa ser aproveitada, voltando
o país para a organização do trabalho. Desenvolver a capacidade técnica,
reorganizar os transportes, construir cooperativas e unificá-las, mesmo junto
às burguesas. Aplicar trabalho obrigatório, inicialmente para os ricos. E
aproveitar os técnicos capitalistas, na medida em que o socialismo depende das
mais modernas técnicas de produção capitalista.
Finalmente, poderíamos identificar uma terceira e última fase, que vai
de “O Imposto em espécie (a significação da nova política econômica e suas
condições (publicado em maio de 1921) e “Melhor pouco, porém melhor” (março de
1923). Aqui, uma mudança qualitativa diz respeito ao olhar de Lênin e dos
bolcheviques para a situação internacional. Se no período anterior predominam
menções no sentido de que a revolução nos país capitalistas avançados estaria
em marcha e em pouco tempo tomaria corpo, criando melhores condições para a
revolução russa, já nos anos 1920, percebe-se que o movimento revolucionário
desloca-se do continente europeu para o oriente. A China e a Índia começam a
dar sinais de mobilização revolucionária enquanto nos países avançados o
imperialismo dá sobrevida ao capitalismo.
Há um tom mais amargurado nestas últimas intervenções de Lênin. A
franqueza com que ele descreve o que é o estado russo naquele ano não encontra
igual em nenhum chefe de estado na história – o que realça a grandeza de Lênin
como dirigente. Lênin diz: “Nosso aparelho estatal é até tal ponto deplorável,
para não dizer detestável, que primeiro devemos refletir profundamente de que
modo lutar contra duas deficiências, recordando que estas deficiências advêm do
passado, que, apesar de ter sido radicalmente mudado, não foi superado, não
chegou à etapa de uma cultura que ficou num passado distante”.
Lênin passa a insistir aqui numa revolução cultural que eduque os
operários, eleve a civilização russa, prepare a nova classe dominante, para a
produção e para as atividades no estado e no partido. Lênin defende rigorosos
exames de admissão para postos de chefias, envolvendo conhecimento sobre
organização do trabalho e instituições políticas soviéticas. Defende que os
melhores quadros vão às províncias nos interiores – as vezes são mais úteis lá
do que em algum centro burocrático. Defende melhores salários pera técnicos
mais bem preparados como medida transitória. A necessidade de criar bons
exemplos são ressaltadas, já que a nova sociedade exigia novos homens. Quando
falávamos que há um tom mais amargo nos últimos textos de Lênin, há de se
colocar que este tom é sutil. E sempre em seus textos, como parte de uma convicção
política interior, Lênin esteve longe de trabalhar para desmotivar seus
leitores. Mesmo nos tempos mais difíceis, esforçava-se mostrar otimismo com
relação ao futuro. Tinha compromisso com a certeza da vitória.
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