quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

“A Revolução Brasileira” – Caio Prado Jr.

Resenha Livro # 92 “A Revolução Brasileira” – Caio Prado Jr. – Editora Brasiliense



Este ensaio do historiador marxista Caio Prado Júnior foi escrito em 1966, cerca de dois anos após, portanto, o golpe militar de abril de 1964. A recente e importante derrota política das esquerdas brasileiras certamente deve ter sido um dos elementos que levou Caio Prado a escrever este ensaio. Trata-se acima de tudo de uma grande polêmica contra a ortodoxia marxista nacional que, servindo-se de forma dogmática do marxismo, levou-nos a erros políticos decisivos, que vão da errada caracterização das classes sociais no campo até as ilusões em torno de uma suposta “burguesia nacional” que estaria em antinomia com o imperialismo.

Foram muitos os erros políticos da esquerda oficial brasileira decorrentes de uma forma inadequada da aplicação do marxismo. Neste sentido, é muito interessante notar como Caio Prado Jr. diferencia-se daquela tradição desde um ponto de vista eminentemente leninista, ainda que Lênin seja muito pouco citado no seu estudo. É certo que um dos traços essenciais do pensamento de Lênin diz respeito à necessidade da “análise concreta da situação concreta”, ou seja, do esforço voltado à análise concreta dos elementos econômicos, sociais e políticos de uma dada realidade para, num momento posterior, extrair dos fatos observados as interpretações, o momento teórico da análise. Ora vai em sentido estritamente oposto a linha ortodoxa combatida por Caio Prado. Esta parte da teoria como elemento apriorístico a partir do qual os fatos históricos devem se enquadrar, necessariamente. Não se parte do concreto ao abstrato, mas das abstrações decorrentes da análises de realidades inteiramente distintas da brasileira, de forma a “forçar a mão” ou a “torturar os fatos” para que eles correspondam aos enunciados marxistas, seja identificando um elemento camponês do tipo russo, praticamente inexistente no Brasil, seja constatando supostos traços “feudais” ou “semi-feudais” na realidade sócio-econômica do campo brasileiro, seja encarando a intervenção do imperialismo de forma equivalente em realidades inteiramente distintas, como a latino-americana em confronto com a asiática.

No que se refere ao problema camponês, Caio Prado, sempre partindo da perspectiva leninista da análise concreta, evidencia como a formação histórica brasileira resultou num campesinato com perspectivas e interesses de classe inteiramente distintos do camponês europeu medieval. No Brasil, primeiro com a escravidão e depois com o trabalho assalariado, o trabalhador rural se via muito mais num liame empregatício do que sob o domínio pessoal dos grandes proprietários de terra. O trabalhador rural brasileiro, ao contrário do camponês europeu, cedia sua força de trabalho a uma empresa dirigida pelos latifundiários enquanto, no esquema europeu, o papel empresarial cai menos na figura do proprietário e mais na própria pessoa do camponês, que explora da forma como lhe interessa a terra, sendo os proprietários antigos nobres que apenas surgem como proprietários e arrendatários da terra. Na Europa, o camponês remete mais à pequeno-burguesia enquanto no Brasil remete mais ao proletariado.  

O que é importante destacar aqui são as graves implicações políticas decorrentes de uma análise errônea da realidade brasileira, quando se busca simplesmente adequá-la a esquemas teóricos prontos derivados de outra realidade nacional. No que se refere ao camponês europeu, a reivindicação mais importante, mais sentida por aquela classe social era a distribuição da terra – a entrega da terra aos camponeses, como foi feito na Rússia pelos revolucionários bolcheviques. Ora, coisa inteiramente distinta é a situação do trabalhador rural brasileiro. Enquanto a esquerda ortodoxa replicava a consigna da “Terra ao Camponês!”, o que Caio Prado evidencia é que as relações de trabalho no campo engendram reivindicações eminentemente salariais e trabalhistas, apresentando aspecto meramente secundário a luta “pela terra”. Este descompasso entre a teoria e a prática, entre a análise concreta da situação concreta e a ação política daí decorrente, esta dissonância contribuiria significativamente para manter a esquerda no isolamento – o que foi de fato evidenciado pela derrota de abril de 1964.

A questão da suposta existência do feudalismo no Brasil também passa a ser bastante reveladora da forma esquemática e dogmática com que a esquerda tradicional analisava o problema do campo no Brasil. Partindo de uma sucessão de modos de produção correspondentes à experiência europeia – qual seja, escravismo, feudalismo e capitalismo – houve aqueles que se esforçaram em encontrar uma evolução histórica idêntica no Brasil.

Segundo Caio Prado não há sob qualquer hipótese qualquer elemento feudal ou semi-feudal na evolução histórica brasileira. Nosso ponto de partida na história refere-se à integração do território brasileiro e sua povoação nos quadrantes do capitalismo em sua fase comercial. Vigorou aqui o sistema da plantation, baseado no latifúndio, na monocultura exportadora e na mão de obra escrava. O que é importante assinalar é que, após o fim da escravidão, certamente resquícios da velha e brutal forma de exploração do trabalho seriam assimilados dentro de uma perspectiva de super-explorar o trabalho e empreender a acumulação capitalista.

Ou seja, onde os marxistas dogmáticos viam resquícios de “feudalismo” que seria incompatíveis com o desenvolvimento do capitalismo, muito pelo contrário, tratar-se-iam de reminiscências de todo modo muito bem adequadas ao capitalismo. Mais uma vez, a errônea análise na teoria significaria erros políticos que contribuiriam para o isolamento da esquerda.

O sistema de parceria e a forma de pagamento in natura dos salários eram identificados como aspectos de um “resquício feudal” que deveria ser eliminado. A esquerda apresentava como bandeira para os trabalhadores no campo o fim do salário in natura e a forma assalariada sendo que os próprios trabalhadores pensavam de outra forma: sentindo-se menos como camponeses num regime “semi-feudal” e mais como trabalhadores rurais que não se prendem à terra e que desejam melhor condição de trabalho e remuneração, a maior parte daqueles trabalhadores na verdade preferia o pagamento do salário in natura, na medida em que a inflação crônica implicava na corrosão salarial.

O fato é que o feudalismo é uma relação social, econômica e política particular da evolução histórica europeia. A ligação do camponês com a terra, lá, possuía caráter milenar, houve a consolidação de uma nobreza proprietária da terra a que pouco se dedicava à atividade empresarial. Coisa inteiramente distinta ocorreu no Brasil. Nas nossas terras, não havia antes dos Portugueses significativas parcelas populacionais sedentárias, que trabalhassem no campo e que tivessem de ser desmobilizadas para a formação do empreendimento colonial. A nossa colonização foi desde sua origem uma empresa capitalista comercial e mercantil, e assim foi povoado nosso território, tendo como base o trabalho escravo africano. Aquilo que a ortodoxia via como “feudalismo”, como os sistemas de parceria, quando muito apresentavam semelhanças com aquele modo de produção em todo secundários, sempre predominando no país o grande empreendimento rural agro-exportador.  

“A Revolução Brasileira” é um interessantíssimo ensaio crítico sobre os limites programáticos das forças de esquerda no Brasil, bem como uma bela contribuição, baseada no método leninista da “análise concreta”, para a interpretação de nossa realidade social, econômica e política.

Há algumas passagens em que Caio Prado refere-se ao nosso “Capitalismo Burocrático” que curiosamente antecipariam mesmo a experiência do Partido dos Trabalhadores no poder: onde falsamente as esquerdas viam uma “burguesia nacional progressista e anti-imperialista”, Caio Prado Jr. revela uma fração importante da nossa burguesia que se apoia na apropriação privada dos recursos públicos, muitas vezes passando-se ainda assim como aliados dos movimentos populares. Se já então a esquerda se via cheia de ilusões em torno de políticos demagogos ligados ao nosso capitalismo burocrático, ainda hoje se pode dizer, frente à terceira gestão consecutiva do PT no poder, governando sempre para os ricos, como aquela ilusão – também decorrente de uma má teorização – tem nos afastado da perspectiva revolucionária.

O fato é que a Revolução Brasileira (cujo programa é inteiramente revisto por Caio Prado Jr.) ainda é uma tarefa que está para ser realizada. Do ponto de vista metodológico, a lição do historiador paulista ainda permanece viva e atual: nunca partir de definições apriorísticas mas antes dos fatos e dados da realidade para deles procurar os rumos possíveis para a Revolução Brasileira.
       

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