Este ensaio do historiador marxista Caio Prado Júnior foi escrito em
1966, cerca de dois anos após, portanto, o golpe militar de abril de 1964. A
recente e importante derrota política das esquerdas brasileiras certamente deve
ter sido um dos elementos que levou Caio Prado a escrever este ensaio. Trata-se
acima de tudo de uma grande polêmica contra a ortodoxia marxista nacional que,
servindo-se de forma dogmática do marxismo, levou-nos a erros políticos
decisivos, que vão da errada caracterização das classes sociais no campo até as
ilusões em torno de uma suposta “burguesia nacional” que estaria em antinomia
com o imperialismo.
Foram muitos os erros políticos da esquerda oficial brasileira
decorrentes de uma forma inadequada da aplicação do marxismo. Neste sentido, é
muito interessante notar como Caio Prado Jr. diferencia-se daquela tradição
desde um ponto de vista eminentemente leninista, ainda que Lênin seja muito
pouco citado no seu estudo. É certo que um dos traços essenciais do pensamento
de Lênin diz respeito à necessidade da “análise concreta da situação concreta”,
ou seja, do esforço voltado à análise concreta dos elementos econômicos,
sociais e políticos de uma dada realidade para, num momento posterior, extrair
dos fatos observados as interpretações, o momento teórico da análise. Ora vai
em sentido estritamente oposto a linha ortodoxa combatida por Caio Prado. Esta
parte da teoria como elemento apriorístico a partir do qual os fatos históricos
devem se enquadrar, necessariamente. Não se parte do concreto ao abstrato, mas
das abstrações decorrentes da análises de realidades inteiramente distintas da
brasileira, de forma a “forçar a mão” ou a “torturar os fatos” para que eles
correspondam aos enunciados marxistas, seja identificando um elemento camponês
do tipo russo, praticamente inexistente no Brasil, seja constatando supostos
traços “feudais” ou “semi-feudais” na realidade sócio-econômica do campo
brasileiro, seja encarando a intervenção do imperialismo de forma equivalente
em realidades inteiramente distintas, como a latino-americana em confronto com
a asiática.
No que se refere ao problema camponês, Caio Prado, sempre partindo da
perspectiva leninista da análise concreta, evidencia como a formação histórica
brasileira resultou num campesinato com perspectivas e interesses de classe
inteiramente distintos do camponês europeu medieval. No Brasil, primeiro com a
escravidão e depois com o trabalho assalariado, o trabalhador rural se via
muito mais num liame empregatício do que sob o domínio pessoal dos grandes
proprietários de terra. O trabalhador rural brasileiro, ao contrário do
camponês europeu, cedia sua força de trabalho a uma empresa dirigida pelos
latifundiários enquanto, no esquema europeu, o papel empresarial cai menos na
figura do proprietário e mais na própria pessoa do camponês, que explora da
forma como lhe interessa a terra, sendo os proprietários antigos nobres que
apenas surgem como proprietários e arrendatários da terra. Na Europa, o camponês
remete mais à pequeno-burguesia enquanto no Brasil remete mais ao proletariado.
O que é importante destacar aqui são as graves implicações políticas
decorrentes de uma análise errônea da realidade brasileira, quando se busca
simplesmente adequá-la a esquemas teóricos prontos derivados de outra realidade
nacional. No que se refere ao camponês europeu, a reivindicação mais
importante, mais sentida por aquela classe social era a distribuição da terra –
a entrega da terra aos camponeses, como foi feito na Rússia pelos
revolucionários bolcheviques. Ora, coisa inteiramente distinta é a situação do
trabalhador rural brasileiro. Enquanto a esquerda ortodoxa replicava a consigna
da “Terra ao Camponês!”, o que Caio Prado evidencia é que as relações de
trabalho no campo engendram reivindicações eminentemente salariais e
trabalhistas, apresentando aspecto meramente secundário a luta “pela terra”. Este
descompasso entre a teoria e a prática, entre a análise concreta da situação
concreta e a ação política daí decorrente, esta dissonância contribuiria
significativamente para manter a esquerda no isolamento – o que foi de fato
evidenciado pela derrota de abril de 1964.
A questão da suposta existência do feudalismo no Brasil também passa a
ser bastante reveladora da forma esquemática e dogmática com que a esquerda
tradicional analisava o problema do campo no Brasil. Partindo de uma sucessão
de modos de produção correspondentes à experiência europeia – qual seja,
escravismo, feudalismo e capitalismo – houve aqueles que se esforçaram em
encontrar uma evolução histórica idêntica no Brasil.
Segundo Caio Prado não há sob qualquer hipótese qualquer elemento
feudal ou semi-feudal na evolução histórica brasileira. Nosso ponto de partida
na história refere-se à integração do território brasileiro e sua povoação nos
quadrantes do capitalismo em sua fase comercial. Vigorou aqui o sistema da plantation, baseado no latifúndio, na
monocultura exportadora e na mão de obra escrava. O que é importante assinalar
é que, após o fim da escravidão, certamente resquícios da velha e brutal forma
de exploração do trabalho seriam assimilados dentro de uma perspectiva de
super-explorar o trabalho e empreender a acumulação capitalista.
Ou seja, onde os marxistas dogmáticos viam resquícios de “feudalismo”
que seria incompatíveis com o desenvolvimento do capitalismo, muito pelo
contrário, tratar-se-iam de reminiscências de todo modo muito bem adequadas ao
capitalismo. Mais uma vez, a errônea análise na teoria significaria erros
políticos que contribuiriam para o isolamento da esquerda.
O sistema de parceria e a forma de pagamento in natura dos salários
eram identificados como aspectos de um “resquício feudal” que deveria ser
eliminado. A esquerda apresentava como bandeira para os trabalhadores no campo
o fim do salário in natura e a forma assalariada sendo que os próprios
trabalhadores pensavam de outra forma: sentindo-se menos como camponeses num
regime “semi-feudal” e mais como trabalhadores rurais que não se prendem à
terra e que desejam melhor condição de trabalho e remuneração, a maior parte
daqueles trabalhadores na verdade preferia o pagamento do salário in natura, na
medida em que a inflação crônica implicava na corrosão salarial.
O fato é que o feudalismo é uma relação social, econômica e política
particular da evolução histórica europeia. A ligação do camponês com a terra,
lá, possuía caráter milenar, houve a consolidação de uma nobreza proprietária
da terra a que pouco se dedicava à atividade empresarial. Coisa inteiramente
distinta ocorreu no Brasil. Nas nossas terras, não havia antes dos Portugueses significativas
parcelas populacionais sedentárias, que trabalhassem no campo e que tivessem de
ser desmobilizadas para a formação do empreendimento colonial. A nossa
colonização foi desde sua origem uma empresa capitalista comercial e mercantil,
e assim foi povoado nosso território, tendo como base o trabalho escravo
africano. Aquilo que a ortodoxia via como “feudalismo”, como os sistemas de
parceria, quando muito apresentavam semelhanças com aquele modo de produção em todo
secundários, sempre predominando no país o grande empreendimento rural
agro-exportador.
“A Revolução Brasileira” é um interessantíssimo ensaio crítico sobre
os limites programáticos das forças de esquerda no Brasil, bem como uma bela
contribuição, baseada no método leninista da “análise concreta”, para a
interpretação de nossa realidade social, econômica e política.
Há algumas passagens em que Caio Prado refere-se ao nosso “Capitalismo
Burocrático” que curiosamente antecipariam mesmo a experiência do Partido dos Trabalhadores
no poder: onde falsamente as esquerdas viam uma “burguesia nacional
progressista e anti-imperialista”, Caio Prado Jr. revela uma fração importante
da nossa burguesia que se apoia na apropriação privada dos recursos públicos,
muitas vezes passando-se ainda assim como aliados dos movimentos populares. Se
já então a esquerda se via cheia de ilusões em torno de políticos demagogos
ligados ao nosso capitalismo burocrático, ainda hoje se pode dizer, frente à
terceira gestão consecutiva do PT no poder, governando sempre para os ricos,
como aquela ilusão – também decorrente de uma má teorização – tem nos afastado
da perspectiva revolucionária.
O fato é que a Revolução Brasileira (cujo programa é inteiramente
revisto por Caio Prado Jr.) ainda é uma tarefa que está para ser realizada. Do
ponto de vista metodológico, a lição do historiador paulista ainda permanece
viva e atual: nunca partir de definições apriorísticas mas antes dos fatos e dados
da realidade para deles procurar os rumos possíveis para a Revolução
Brasileira.
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