sábado, 18 de setembro de 2021

“Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna

 “Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna

 




Resenha Livro - “Auto da Compadecida” – Ariano Suassuna – 34ª Ed. Nova Fronteira

 

“João Grilo – Jesus?

Manuel – Sim.

João Grilo – Mas espere, o senhor que é Jesus?

Manuel – Sou.

João Grilo – Aquele Jesus a quem chamavam de Cristo?

Jesus – A quem chamavam, não, que era Cristo. Sou, por que?

João Grilo – Porque...não é lhe faltando com o respeito não, mas eu pensava que o senhor era muito menos queimado.

Bispo – Cala-te, atrevido.

Manuel – Cale-se você. Com que autoridade está repreendendo os outros? Você foi um bispo indigno de minha igreja, mundano, autoritário, soberbo. Seu tempo já passou. Muita oportunidade teve de exercer sua autoridade, santificando-se através dela. Sua obrigação era ser humilde, porque quanto mais alta é a função, mais generosidade e virtude requer. Que direito tem você de repreender João porque falou comigo com certa intimidade? João foi um pobre em vida e provou sua sinceridade exibindo o seu pensamento. Você estava mais espantado do que ele e escondeu essa admiração por prudência mundana. O tempo da mentira já passou.

João Grilo – Muito bem. Falou pouco mas falou bonito. A cor não pode ser das melhores, mas o senhor fala bem que dá gosto”

 

O Auto da Compadecida é peça teatral escrita pelo paraibano Ariano Suassuna no ano de 1955. Seria a primeira de uma série de comédias que seriam escritas posteriormente: “O Casamento Suspeitoso” (1957), “O Santo e a Porca” (1957), “A Pena e a Lei” (1959) e “Farsa da Boa Preguiça” (1960).

 

Nas notas do autor que acompanham as falas dos personagens, indicando propostas de encenação, fica patente a intenção de Suassuna na  representação do enredo na forma de circo.

 

É um palhaço que abre o espetáculo e anuncia cada um dos atos, inclusive engajando os atores na arrumação das cenas. O cenário proposto pelo escritor não poderia ser feito de forma mais simples.

 

Logo na introdução, propõe Suassuna:  

 

“O Auto da Compadecida foi escrito com base em romances e histórias populares do Nordeste. Sua encenação deve, portanto, seguia a maior linha de simplicidade, dentro do espírito em que foi concebido e realizado. O cenário (usado na encenação como um picadeiro de circo, numa ideia excelente de Clênio Wanderley, que a peça sugeria) pode apresentar uma entrada de igreja à direita, com uma pequena baulastrada ao fundo, uma vez que o centro do palco representa um desses pátios comuns nas igrejas do interior.”.

 

O paralelo com o circo também pode se referir aos dois personagens principais, João Grilo e Chicó. De certa forma, ele representam aquele modelo circense dos dois palhaços. João Grilo sendo o mais espertalhão, que se mete em situações arriscadas. E Chicó o palhaço mais abobado, que se acovarda e, não raro, atrapalha os planos do seu parceiros.

 

A história suscita uma tradição popular de literatura de cordel. As passagens cômicas do gato que “descome” moedas, a falsa ressurreição de mortos pelo toque de uma gaita e o enterro de um cachorro cantado em latim são todas oriundas da cultura popular nordestina.

 

Neste caso se trata de uma cultura oral: os cordéis, diferentemente dos livros, não foram feitos para serem lidos, mas para serem declamados ao público na praça. A proposta do Teatro de Suassuna é a mesma. Ao término do espetáculo, o palhaço diz que quem não pode pagar pelo show, como recompensa, que pague com aplausos.

 

Mais do que uma fonte história da cultura popular nordestina, a peça é um retrato nítido daquilo que Sérgio Buarque de Holanda denominava a cordialidade do povo Brasileiro:

 

“Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade — daremos ao mundo o “homem cordial” . A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. Seria engano supor que essas virtudes possam significar “ boas maneiras” , civilidade. São antes de tudo expressões legítimas de um fundo emotivo extremamente rico e transbordante. Na civilidade há qualquer coisa de coercitivo — ela pode exprimir-se em mandamentos e em sentenças. Entre os japoneses, onde, como se sabe, a polidez envolve os aspectos mais ordinários do convívio social, chega a ponto de confundir-se, por vezes, com a reverência religiosa. Já houve quem notasse este fato significativo, de que as formas exteriores de veneração à divindade, no cerimonial xintoísta, não diferem essencialmente das maneiras sociais de demonstrar respeito. Nenhum povo está mais distante dessa noção ritualista da vida do que o brasileiro” HOLANDA. S. B. Pg 146-7

 

Este sentimento emotivo aparece quando a Compadecida, ao exercer a sua infinita misericórdia, não permite que os personagens, a despeitos dos seus erros, terminem no inferno.

 

Na cena da aparição de um Jesus Cristo de cor negra, João Grilo manifesta o seu preconceito racial. Contudo, Jesus condena em primeiro lugar não Grilo, mas o Bispo, por sua hipocrisia. O mitra ficou igualmente estupefato, mas achou pertinente censurar Grilo por pura prudência mundana, covardia ante Jesus. Que fique de lição ao identitários do nosso atual movimento negro que querem importar ideias políticas do EUA para o Brasil, desconsiderando que o nosso país se baseou não na colônia de povoamento, mas de exploração, que a população negra aqui não é minoria, mas maioria, tendo sido a miscigenação racial, desde o momento que os portugueses chegaram aqui, não a exceção, mas a regra.

 

Que fique também a lição de que o povo brasileiro, a despeito dos seus problemas, tem a virtude de detestar a hipocrisia. 

sábado, 11 de setembro de 2021

BREVES NOTAS SOBRE JOSÉ DE ALENCAR

 BREVES NOTAS SOBRE JOSÉ DE ALENCAR




 

“Quando um homem chora, minha prima, a dor adquire um quer que seja de suave, uma voluptuosidade inexprimível; sofre-se, mas sente-se quase uma consolação em sofrer.

Vós, mulheres, que chorais a todo o momento, e cujas lagrimas são apenas um sinal de vossa fraqueza, não conheceis esse sublime requinte da alma que sente um alívio em deixar-se vencer pela dor; não compreendeis como é triste uma lágrima nos olhos de um homem”. (“A Viuvinha” – José de Alencar).

 

Quando José Martiniano de Alencar nasceu, em 1 de maio de 1829, havia apenas oito anos desde a independência do Brasil. O autor passou pelo  período tumultuado das Regências e participou, já adulto, ativamente dos debates políticos e literários do II Império.

 

A questão nacional no escritor cearense é inequívoca.

 

Seu projeto literário correspondeu à aclimatação do romance no território brasileiro. Muitos o consideram o nosso maior romancista do século XIX.  

 

Segundo Valéria de Marco:

 

“É empobrecedor considerar o romance de Alencar sem levar em conta que intervém em um amplo debate e que convive, lado a lado, na escrivaninha do escritor com panfletos políticos e polêmicas literárias. Seu romance não é pausa na vida agitada. É também proposta de reflexão sobre o país e veículo de discussão política”.

 

Ficaram conhecidos do público as obras indianistas deste nosso escritor: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874). Na sua crítica à Gonçalves Magalhães, o escritor dizia que a forma literária dos épicos era meio inadequado de retratar a nacionalidade: havia muito pouco tempo desde o fim da colônia e início da constituição da nação para se cogitar uma mitologia brasileira.

 

Também não se filiava Alencar à perspectiva dos cronistas que intentaram retratar de forma documental os índios brasileiros. Para o escritor, os índios deveriam ser retratados através do romance.

 

A idealização do bom selvagem, decorrência do pensamento romântico e com referência clara a Jean-Jacques Rousseau, geraria críticas já no tempo de Alencar. Manifestou-se o entendimento de que o autor era um artista de gabinete, que buscava retratar realidades regionais sem nunca tê-las conhecido de perto.

 

Sobre a Vida do Escritor

 

José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, que na época era um povoado nas cercanias de Fortaleza. Seu pai fora padre, mas largou a batina para dedicar-se à vida política. José de Alencar estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em São Paulo, onde foi colega de Álvares de Azevedo (1831-1852) e Bernardo Guimarães (1825-1884).

 

Exerceu o jornalismo, a crítica literária e a política. Foi deputado pelo partido conservador e ocupou o cargo de ministro da justiça no gabinete Itaboraí. Defendeu a escravidão. Para os heróis do identitarismo que defendem a censura de Monteiro Lobato e o fogo nas estátuas, é possível que est fato os autorize a deixar de conhecer nosso escritor, sem grandes remorsos.

 

O seu primeiro romance, publicado na forma de folhetim, foi “Cinco Minutos” (1856). A história é contada na forma de uma carta redigida pelo protagonista do enredo à sua prima. Conta uma história de amor decorrente de um atraso de cinco minutos: o acaso da falta da pontualidade do narrador faria com que no bonde, o protagonista conhecesse Carlota, por quem se apaixona, mesmo sem a conhecer ou mesmo a ver o seu rosto. A mulher tinha todo o seu corpo coberto por chapéu e panos, nascendo o sentimento amoroso espiritual antes mesmo de se saber se Carlota era ou não bela.

 

Nestas tramas, o enredo leva o leitor a um contato direto com o ambiente urbano do Rio de Janeiro de meados do século XIX. No seu segundo romance, “A Viuvinha” (1857), a trama torna-se mais sofisticada e interessante, podendo o leitor de hoje ter uma fonte histórica valiosa da cidade, e mesmo nos recantos populares.

 

Vejamos a descrição de uma tasca, espécie de taberna onde os pobres faziam suas refeições:

 

“O interior do edifício correspondia dignamente à sua aparência.

A sala, se assim se pode chamar um espaço fechado entre quatro paredes negras, estava ocupada por algumas velhas mesas de pinho.

Cerca de oito ou dez pessoas enchiam o pequeno aposento: eram pela maior parte marujos, soldados ou corroceiros que jantavam.

Alguns tomavam a sua refeição agrupados aos dois e três sobre as mesas; outros comiam mesmo de pé, ou fumavam e conversavam em um tom que faria corar o próprio Santo Agostinho, antes da confissão.

Uma atmosfera espessa, impregnada de vapores acóolicos e fumo de cigarro pesava sobre essas cabeças, e dava àqueles rostos um aspecto sinistro.

No fundo, pela fresta de uma posta mal cerrada, aparecia de vez em quando a cabeça de uma mulher de 50 anos, que interrogava com os olhos os fregueses, e ouvia o que eles pediam”.

 

Na “A Viuvinha”, a forma literária é a mesma do livro anterior. Escrito em forma de carta, conta-se a história de Jorge, um jovem advindo de família rica que gasta toda a herança do pai numa vida desregrada e boemia. Em certo momento, apaixona-se por Carolina e pelo amor, abandona a vida dedicada ao ócio. Contudo, poucos instantes antes do casamento, descobre que tudo já era tarde demais. Seu padrinho, que cuidava das suas finanças por conta do falecimento do pai, informa que a empresa da família estava à bancarrota.

 

Como seria possível, na véspera do casamento, romper o enlace pela falta absoluta de recursos e, com isto, desgraçar para sempre a mulher que amava? O que fazer?

 

Sempre dentro do estilo romântico, após as mais duras provações, todas as dificuldades serão superadas e o casal tem um final feliz. A lição subjacente da história é a de que o homem, quando enfrenta as mais duras dificuldades da vida, tem a alma provada pelo desejo de evolução, redime-se ao final das culpas, e triunfa.

 

Há uma beleza nestas histórias românticas decorrente de um mundo que parece hoje perdido. Buscar a virtude e a pureza do corpo, hoje, parece ser mais um defeito do que um mérito. A meta do homem dos dias de hoje parece antes ser a de granjear o máximo de prazeres, pelo mínimo de esforço. E, como se sabe, o prazer costuma ser uma experiência puramente individual.

 

Talvez por isto, e muito para o nosso pesar, livros de José de Alencar não despertam o interesse, senão do publico especializado. Mas não desanimemos: as modas filosóficas são passageiras, mas as grandes obras de arte brasileiras permanecerão.  

domingo, 5 de setembro de 2021

O Amor de Soldado: A vida de Castro Alves por Jorge Amado

 O Amor de Soldado: A vida de Castro Alves por Jorge Amado

 






“Necessitamos da vossa ajuda. Não é fácil prender nos limites de um palco a vida de Castro Alves que se processou sempre na praça pública, à frente da multidão. Ele não agiu como a maioria dos poetas que se tranca nos gabinetes de trabalho à espera de inspiração. Não foi apenas um poeta da Liberdade, foi também um militante da Liberdade. Seu lugar era à frente do povo. Sua arte, ele a colocou a serviço da Pátria e da humanidade”. (Jorge Amado – “Amor de Soldado”).

 

Quando Castro Alves faleceu de tuberculose, em 6 de junho de 1871, o poeta baiano tinha apenas 24 anos de idade.

 

Foi mais um dos grandes escritores do nosso romantismo literário que viria a falecer ainda muito jovem. Contudo, no curto tempo de vida, teve uma ampla atuação política e artística: junto com Rui Barbosa, foi criador da primeira sociedade abolicionista de Recife, foi poeta, orador e militante das causas do abolicionismo, da república e da liberdade.

 

Adveio de uma família rica e tradicional do interior da Bahia. Estudou  Direito na Faculdade de Direito de Recife, onde travou relações com Tobias Barreto, e viria a concluir os estudos na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco em São Paulo.

 

Foi no Recife que conheceria o grande amor da sua vida, a atriz portuguesa Eugênia Infante de Câmara, dez anos mais velha do que o nosso escritor. Contudo, como bem retratado nesta peça de teatro escrita por Jorge Amado em homenagem ao poeta condoreiro, a grande musa dos seus versos e a grande inspiração da vida do artista era a liberdade:

 

“EUGÊNIA –Sim, nenhuma mulher é digna da tua vida. Nasceste para um destino maior e qualquer mulher que tentasse dominar o seu coração te mataria. Um dia mo disseram e minha desgraça foi não ter acreditado naquelas palavras tão verdadeiras...As mulheres para ti só podiam valer como alegria ocasional, só podiam estar perto de ti como escravas da tua vida, jamais como senhoras do teu coração... Teu coração sempre pertenceu a outra, Castro...(pausa) Teu coração sempre foi da liberdade”.

 

A peça “O Amor de Soldado” foi escrita em 1944, instantes antes da vitória definitiva da democracia sobre o fascismo na guerra. Os impactos da vitória dos aliados na II Guerra Mundial fariam com que o PCB, já sob o governo Dutra, elegessem uma bancada comunista na assembleia constituinte da qual fazia parte além de Jorge Amado, Carlos Marighella, Luís Carlos Prestes, Gregório Bezerra, João Amazonas, entre outros.

 

Tempos em que a esquerda brasileira era nacionalista, lutava efetivamente pela soberania nacional, pela defesa dos recursos naturais do país e não se deixava convencer por ideologias derivadas do imperialismo, como os comunistas identitários da esquerda brasileira, com poucas exceções.

 

Os paralelos entre a luta pela abolição e pela república em Castro Alves e a luta pela democracia pelos comunistas de 1945 se encontram no denominador comum: a luta pela liberdade.  

 

A peça teatral começa justamente com esta afirmativa: “um sopro de liberdade atravessa o mundo”. O Brasil das jornadas abolicionistas e o mundo após a II Mundial.

 

A solução de continuidade entre as lutas dos abolicionistas e dos republicanos do XIX e dos comunistas e nacionalistas do século XX fica bem evidente em toda a trama.

 

Instantes antes de retornar à Bahia, onde viria a morrer, Castro Alves assim se despediria de Eugênia:

 

”CASTRO ALVES: Não, não verei nada disso. Mas adivinho tudo isso...E quero ajudar até o meu último instante a que esses sonhos se transformem em realidade. Eu vejo, Eugênia, em minhas noites solitárias, o mundo que os homens construirão. Custará sangue e vidas, a minha e a de muitos outros. Talvez de milhares e milhões. Mas será o mundo livre e então a vida será perene alegria e perene beleza. Não mais escravos de nenhuma espécie. Não mais humilhados, não mais miseráveis. A terra será de todos e os frutos das árvores a todos pertencerão. As máquinas trabalharão para todos os homens, os livros estarão em todas as mãos, a liberdade será bem de toda a gente, o trabalho uma alegria cotidiana. O mundo será uma festa e então o amor poderá crescer em todos os corações”.

 

 

 

Resenha Livro – “O Amor de Soldado” – Jorge Amado – Ed. Record.   

domingo, 29 de agosto de 2021

“A Moreninha” – Joaquim Manuel de Macedo

 “A Moreninha” – Joaquim Manuel de Macedo



 


Resenha Livro - “A Moreninha” – Joaquim Manuel de Macedo – Ed. Record – Rio de Janeiro – São Paulo

 

“Com efeito, recostada em uma cadeira de braços, D. Carolina estava profundamente adormecida.

 

A Moreninha se mostrava, na verdade, encantadora no mole descuido de seu dormir; à mercê de um doce resfolegar, os desejos se agitavam entre seus seios; seu pezinho bem à mostra, suas tranças dobradas no colo, seus lábios entreabertos e como por costume amoldados àquele sorrir cheio de malícia e de encanto que já lhe conhecemos e, finalmente, suas pálpebras cerradas e coroadas por bastos e negros supercílios, a tornavam mais feiticeira que nunca.

 

D. Clementina não pôde resistir a tantas graças; correu para ela...dois rostos angélicos se aproximaram...quatro lábios cor-de-rosa se tocaram e este toque fez acordar D. Carolina.

 

Um beijo tinha despertado um anjo, se é que o anjo realmente dormia”.

 

A importância do romance “A Moreninha” do escritor carioca Joaquim Manuel de Macedo não reside tanto nos seus êxitos literários, mas no seu pioneirismo.

 

Lançado em 1844, quando o Brasil era governado por D. Pedro II (2º Reinado 1840/1889), não existe muito dissenso entre os especialistas em suscitar a obra como o primeiro escrito que podemos chamar de romance então realizado no país.

 

Não deveria ter sido fácil escrever o romance sem que houvesse até então qualquer tradição literária anterior, que pudesse dar sustentação a uma linguagem ficcional, com tema, enredos, estilos literários, etc.

 

Outro ponto que merece destaque é a idade do autor, que escreveu a Moreninha quando tinha 23 anos de idade. Era recém formado em medicina.

 

Até então, as poucas referências literárias existentes eram os romances de Texeira e Souza (1812/1861) e as novelas francesas publicadas no Brasil a partir de 1817. A influência dos folhetins franceses na literatura Brasileira é notória. Posteriormente, boa parte da produção de Machado de Assis, nitidamente nas suas produções românticas (Ressurreição de 1872, A Mão e a Luva de 1874, Helena de 1876 e Iaiá Garcia de 1878) também seriam tributárias desta literatura associada ao jornalismo, cujos capítulos dos romances eram publicados periodicamente na impressa, e na maioria das vezes lidos pelo público feminino.

 

Como obra pioneira, certamente está abaixo de trabalhos posteriores de Machado de Assis e de José de Alencar, que levariam a proposta do romantismo folhetinesco de ambientação urbana em obras talvez menos superficiais, com maiores sondagens psicológicas das personagens e enredos mais complexos.

 

Contudo, como obra pioneira, temos já todo os ingredientes da tradição do romantismo literário brasileiro: o sentimentalismo, a idealização do amor, algum subjetivismo do narrador, o elogio do campo em Macedo ou o indianismo em Alencar.

 

O enredo se passa entre a corte e uma ilha próxima ao RJ, onde um grupo de estudantes de medicina passam alguns dias na companhia de familiares de Filipe, incluindo um grupo de jovens mulheres.

 

Deste passeio à Ilha, os jovens se relacionam, trocam cartas, fazem passeios, promovem jantares, trocam impressões sobre o sexo oposto. A história é certamente uma fonte histórica interessante para se conhecer como se devam os namoros no período, sempre sob a supervisão implacável dos mais velhos. Certamente, os papeis sociais de homens e mulheres, como não poderiam deixar de ser, eram radicalmente diferentes dos padrões atuais, o que não deve(ria) fazer com que os leitores de hoje deixassem de conhecer e estudar a obra por conta de sensibilidades pessoais, não raro decorrentes da agenda identitária.

 

Aliás, quem seríamos nós do século XXI para julgar aqueles padrões sociais? Nitidamente se considerando que nos tempos de hegemonia do celular, das redes sociais e do espetáculo das imagens, os padrões de beleza da mulher se reduzem hoje ao momento puramente estético, ensejando uma voracidade das mulheres na busca de cirurgias reparadoras, dietas milagrosas, e afins. Em “Moreninha” a personagem adolescente e tola das primeiras páginas vai ganhando a admiração de Augusto aos poucos. Por um acaso, uma empregada da chácara cai doente e D. Carolina se desdobra de cuidados e carinhos por sua antiga criada:

 

“No meio de toda esta balbúrdia era de ver-se o zelo e a solicitude da menina travessa!... Observava-se aquela Moreninha de quinze anos, que parecera somente capaz de brincar e ser estouvada, correndo de uma para outra parte, prevenindo tudo e aparecendo sempre onde se precisava apressar um serviço ou acudir a um reclamo. Só cuidava de si quando devia enxugar as lágrimas”.

 

A personagem feminina é o tema central do romance e representa o ideal de mulher da elite econômica do Brasil do II Império.

 

Inicialmente, a personagem aparece a Augusto como sonsa, tola e infantil. Paulatinamente, deixa de ser sonsa e vai granjeado o amor de todos os jovens da ilha, exatamente por representar um certo ideal de beleza feminino.  Certamente era fisicamente mais bonita que as demais, e como tal, era uma estrela que tinha um brilho superior. Contudo, também e principalmente fora amada por sua inteligência.

 

Tem razão o professor Carlos Sepúlveda (UFRJ) ao chamar a atenção para um elemento ausente no romance: o trabalhador escravo que propiciava àquela burguesia urbana os seus tempos de lazer, de passeios, de longas divagações com declaração de amor. Para que sobrasse tanto tempo para o divertimento desta elite econômica, havia a maioria da população subjugada: a abolição só viria 45 anos após a publicação do livro.    

domingo, 15 de agosto de 2021

“Reinações de Narizinho” – Monteiro Lobato

 “Reinações de Narizinho” – Monteiro Lobato




 

Resenha Livro - “Reinações de Narizinho” – Monteiro Lobato – Ed. Círculo do Livro

 

“Colombo então perguntou:

- Poderá o cavalheiro dizer-me se isto por aqui é a tal América que eu ando procurando?

- Perfeitamente! – respondeu o índio – Assim que o senhor botou o pé na praia, senti uma batida na pacuera e disse cá comigo: ‘É o Senhor Cristóvão que está chegando, até aposto!’

Colombo adiantou-se para apertar a mão do índio. Em seguida o índio virou-se para os companheiros lá longe e gritou:

- Estamos descobertos, rapaziada! Este é o tal Cristóvão Colombo que vem tomar conta das nossas terras. O tempo antigo lá se foi. Daqui por diante é vida nova – e vai ser um turumbamba danado.”.

 

Quando Monteiro Lobato começou a escrever livros para criança, já havia praticamente publicado quase toda a sua obra para o público adulto.

 

“Urupês”, um livro de sucesso para época que corresponde a coletânea de contos regionalistas, foi publicado ainda em 1918.

 

Junto com “Cidades Mortas” (1919) e “Negrinha” (1920) compõem uma literatura que poderíamos arriscar dizendo ser de  um regionalista paulista, tratando das fazendas de café de São Paulo, de cidades abandonadas ou mortas no contexto do avanço da nova economia pelo oeste do estado, bem como dos resquícios da escravidão naquele mundo rural.

 

Neste sentido, o conto “Negrinha” é o que há de melhor quando se fala de uma literatura de denúncia social. A perversidade com que Dona Inácia, “excelente senhora, gorda, rica, animada dos padres”, brutaliza Negrinha, uma órfã de sete anos, contando com o beneplácito de um padre, é o que há de melhor de deste tipo de literatura já escrita no Brasil:

 

 

 

“A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daqueles ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se fizera ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! (...) O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis”.

 

Certamente, este quadro está distante de uma propaganda não desinteressada de censurar a obra de Monteiro Lobato por conta do seu suposto racismo.

 

Propaganda nada convincente para quem se deu ao trabalho de ler algo sobre a vida do escritor de Taubaté.

 

Ainda nos anos de 1920, Monteiro Lobato dizia que o “Jeca Tatu” não é assim, mas está assim. O escritor já então sabia que o problema do caipira paulista, abandonado, sem higiene e alimentação, sem orientação e estudo para que se torne produtivo, continuando a praticar as queimadas que aprendiam de seus avós, este “Jeca” era remediável, não estava destinado ao subdesenvolvimento por conta de aspectos puramente raciais.

 

A título de exemplo, vale citar que no “Casa Grande em Senzala”, escrito somente em 1933, é perceptível que as teses de Gilberto Freire acerca da falta de higiene, alimentação e salubridade como fator preponderante de certo atraso do povo Brasileiro ainda aparecia como uma novidade frente da hegemonia das teses racistas e eugenistas que persistiram em voga mais ou menos de forma ininterrupta entre 1870-1930.

 

(Para a questão do pensamento racial do Brasil no período, como forma de cotejar as ideias das primeiras décadas do século XX e o posicionamento de Montero Lobato, remetemos o leitor ao ensaio do brasilianista Thomas Skidmore, “Preto no Branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro” - https://esperandopaulo.blogspot.com/2021/04/preto-no-branco-thomas-e-skidmore.html ).

 

O movimento orquestrado que busca induzir nas pessoas à ideia de que Monteiro Lobato era racista e portando que seus livros não devem ser lidos, começando por uma ação mandamental ajuizada em 2010 pare que o STF tirasse dos livros indicados pelo MEC a obra “Caçadas de Pedrinho” diz bastante sobre o posicionamento político dos chamados movimentos identitários.

 

Em primeiro lugar, vale lembrar que este nosso escritor já em vida foi objeto de perseguição por forças conservadoras.  

 

Em 1941, durante o Estado Novo, o escritor chegou a ser preso e permanecer detido durante 6 (seis) meses por conta de seu engajamento político em defesa da soberania nacional, no caso da nacionalização do petróleo e do ferro.

 

Meses depois da publicação do livro infantil “História do Mundo Para Crianças” (1933), a obra passou a sofrer perseguição e censura da Igreja Católica. Naquela época era ainda uma novidade a existência de obras literárias direcionadas ao público infantil, que suscitavam a imaginação por meio de personagens fantásticos como o Visconde de Sabugosa, um nobre fidalgo feito de espiga de milho que traz a voz da razão e da ponderação; ou o Marquês de Rabicó, um porquinho medroso que conversa com as crianças; ou Emília, uma boneca de pano que se distingue por sua bravura, autoconfiança e uma certa esperteza.

 

Consta  mesmo que um grupo de freiras chegou a organizar fogueiras para destruir exemplares de livros no ano de 1942.

 

Mais recentemente, o movimento identitário, que opera por dentro de universidades, imprensa e até partidos de esquerda, com a finalidade de dar um ar democrático ao imperialismo norte americano, postulou a censura de Monteiro Lobato, autor de personagens que podem ser tidos como ícones da cultura nacional, tão conhecidos que são pela população, especialmente os leitores mais velhos das histórias da boneca de pano Emília, do sábio Visconde de Sabugosa, a doce Tia Nastácia, da sabida Dona Benta.

 

Ontem censuraram Monteiro Lobato. Hoje colocam fogo na estátua do Borba Gato, um sertanista caçador de esmeraldas cuja intervenção resultou na constituição da fisionomia territorial do Brasil muitos séculos depois. Amanhã, quem sabe a interdição do carnaval por cogitações feministas? A quem interessa a demolição dos mitos nacionais?

sábado, 24 de julho de 2021

“O Meu Pé de Laranja Lima” – José Mauro de Vasconcelos

 “O Meu Pé de Laranja Lima” – José Mauro de Vasconcelos




 

“Na nossa rua havia tempo de tudo. Tempo de bola de gude. Tempo de pião. Tempo de colecionar figurinhas de artistas de cinema. Tempo de papagaio, o mais bonito de todos os tempos. Os céus ficavam por todos os lados repletos de papagaios de todas as cores. Papagaios lindos de todos os feitios. Era a guerra no ar. As cabeçadas, as lutas, as laçadas e os cortes.

 

As giletes cortavam as linhas e lá vinha um papagaio rodopiando no espaço embaraçando a linha do cabresto com a cauda sem equilíbrio; era lindo tudo aquilo. O mundo se tornava só das crianças da rua. De todas as ruas de Bangu. Depois era um tal de caveirinha enrolada nos fios; era um tal de correr do caminhão da Light. Os homens vinham furiosos arrancar os papagaios mortos, atrapalhando os fios. O vento... o vento...”.

 

Quando o escritor carioca José Mauro de Vasconcelos publicou este livro, no ano de 1968, já era um romancista experiente. Seu primeiro livro, chamado “Banana Brava”, foi publicado em 1942, quando o artista tinha apenas 22 anos de idade. Neste romance se retrata o homem embrutecido nos garimpos dos sertões do Centro-oeste brasileiro. O livro “Rosinha, Minha Canoa” de 1962 foi o seu primeiro sucesso de público: a obra de certa forma antecipa o tema do fantástico, contando a história de Zé Orocó que conversa com sua canoa, tanto quanto Zezé que conversa com seu Pé de Laranja Lima.  

 

Este certamente é o mais conhecido romance de Vasconcelos. Foi inequivocamente um sucesso de público: dois milhões de exemplares vendidos e edições que se espraiaram por 15 países, entre Estados Unidos, Holanda, Itália, Hungria, Áustria, Argentina e Alemanha. No Brasil foram produzidas 150 edições, houve duas adaptações para o cinema, três adaptações para telenovelas e uma adaptação para o teatro, com texto de Luciano Luppi e direção de Tereza Quintino.

 

A despeito do sucesso de público, na opinião do escritor Luiz Antônio Aguiar, não houve o mesmo reconhecimento da obra  pela crítica e pela estudiosos da literatura.

 

A saber:

 

“A critica erudita não aceitou bem O Meu Pé de Laranja Lima e o enternecimento que a obra, seja em livro, seja na adaptação para a TV e o cinema (que você deveria conferir), causou ao público. Em consequência, não se deu o devido valor a esse importante autor, o que aconteceu também a outros que conquistaram os leitores e a audiência da mídia, mas não a crítica especializada”.

 

Esta situação se relaciona mesmo com a trajetória de vida do escritor: uma vida de viagens pelo interior do país, sem formação na universidade, trazendo a realidade conhecida pelas aventuras pelo Brasil e combinando-a com uma fértil imaginação.

 

Sobre o Autor

 

José Mauro de Vasconcelos nasceu em 26 de fevereiro de 1920, em Bangu, no Rio de Janeiro. De família muito pobre, ainda aos nove anos de idade, chegou a morar com os tios em Natal/RN. Desde cedo, gostava de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Paulo Setúbal. Certamente, seu livro também é tributário de um certo regionalismo associado aos escritores do modernismo literário. Além do estudo, desde cedo praticava esportes e manteve espírito de aventura. Chegou a cursar dois anos de Medicina na Faculdade de Natal, mas sua mente inquieta o fez abandonar a graduação e mudar-se ao Rio de Janeiro a bordo de um navio cargueiro. A partir da então capital do país, iniciou sua peregrinação pelo Brasil. Foi treinador de boxe, carregador de banana, pescador no litoral fluminense, professor primário num núcleo de pescadores em Recife, garçom em São Paulo e até ator.

 

Sobre a Obra

 

“Meu Pé de Laranja Lima” é um livro autobiográfico e relata a história da infância do escritor. A história se passa no bairro de Bangu, zona norte do Rio de Janeiro, e o narrador é a própria criança de 6 anos. Ou melhor, criança de 5 anos mas que diz a todos que tem 6 anos: assim poderia ter idade para frequentar a escola e desligar-se do lar, onde recebe castigos físicos por conta de suas travessuras. A pobreza da família é retratada logo no início, quando do natal de 1925: o pai de Zezé (apelido de José) está desempregado e as crianças são as únicas do bairro a não ganharam presentes. A pobreza é percebida pela criança através do reflexo da experiência dramática dos adultos, nitidamente de Seu Paulo, pai de família e desempregado.

 

“Eu resolvera ficar perto de Papai, porque assim não faria arte alguma. Ele se sentara na cadeira de balanço e olhava perdidamente para a parede. Seu rosto sempre com a barba por fazer. Sua camisa nem sempre muito limpa. Quer ver que não saíra para jogar manilha com os amigos porque não tinha dinheiro. Pobre Papai, devia ser triste saber que Mamãe trabalhava para ajudar a sustentar a casa. Lalá já entrara para a Fábrica. Devia ser duro ir procurar uma porção de empregos e voltar desanimado sempre com aquela resposta: ‘Precisamos de uma pessoa mais moça”.

 

O livro retrata um período em que a infância não tinha ainda a mesma atenção dada pelo legislador e pela sociedade, como a noção de proteção integral e prioridade absoluta no asseguramento dos direitos (artigo 4º da Lei 8069/90). A história se passa nos anos 1920, setenta anos antes da vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente. As cenas de brutalização e violência em face de Zezé, pelo pai e pela irmã Jandira, indicam um período histórico diferente do atual, a despeito da permanência ainda hoje dos abusos, inclusive sexuais.

 

Em todo o caso, mais do que um livro sobre a infância, “Meu Pé de Laranja Lima” é um livro sobre o “tornar-se”, o deixar de ser criança e passar a ser adulto, o que, no caso de Zezé, aconteceu muito cedo.

 

O advento da “idade da razão” aparece no romance em diferentes  etapas: a criança tem dentro de si um passarinho com quem conversa e dialoga. Ao deixar de ser criança, o passarinho desaparece e é trocado pelo “pensamento” – quando perde este passarinho, se sente um vazio por dentro que não acaba mais.

 

As surras injustas levadas por Zezé levam-no rapidamente a romper com os laços familiares: seu único amigo, Portuga, morre tragicamente num acidente de carro.

 

O pé de laranja lima deverá ser removido por ordens da prefeitura.

 

Envelhecer é sair do mundo da fantasia e entrar no mundo da realidade e da dor. O mais provável é que o no passado, este processo ocorria mais cedo, formando adultos diferentes do que os que estamos formando nos dias de hoje.

quinta-feira, 15 de julho de 2021

“Caçadas de Pedrinho – Hans Staden” – Monteiro Lobado

“Caçadas de Pedrinho – Hans Staden” – Monteiro Lobado




 

Resenha Livro - “Caçadas de Pedrinho – Hans Staden” – Monteiro Lobado – Ed. Círculo do Livro

 

“Esse fato causou o maior rebuliço no Brasil inteiro. Os jornais não tratavam de outra coisa. Até uma revolução, que estava marcada para aquela semana, foi adiada, porque os conspiradores acharam mais interessante acompanhar o caso do rinoceronte do que dar tiros nos adversários” (“Caçadas de Pedrinho” – Monteiro Lobato).

 

No ano de 2010 ganhou repercussão na mídia nacional o ajuizamento de um mandado de segurança pelo “Instituto de Advocacia Racial” junto ao Supremo Tribunal Federal demandando a retirada do livro “Caçadas de Pedrinho” (1933) da lista de leitura obrigatória do ensino oficial, sob a alegação de que as crianças estariam supostamente expostas a conteúdo racista.

 

Desde então, vem sendo ventilado pela por grupos identitários a ideia de que o escritor paulista seria racista ou até mesmo eugenista.

 

Esta não seria a primeira vez que as obras de Monteiro Lobato seriam objeto de ataques injustos e infundados.

 

Meses depois da publicação do livro infantil “História do Mundo Para Crianças” (1933), a obra passou a sofrer perseguição e censura da Igreja Católica. Naquela época era ainda uma novidade a existência de obras literárias direcionadas ao público infantil, que suscitavam a imaginação por meio de personagens fantásticos como o Visconde de Sabugosa, um nobre fidalgo feito de espiga de milho que traz a voz da razão e da ponderação; ou o Marquês de Rabicó, um porquinho medroso que conversa com as crianças; ou Emília, uma boneca de pano que se distingue por sua bravura, autoconfiança e uma certa esperteza. Consta  mesmo que um grupo de freiras chegou a organizar fogueiras para destruir exemplares de livros no ano de 1942. No exterior, o Governo Português também chegou a proibir os livros infantis em seu país tanto porque os livros indicam que o Brasil teria sido achado ‘por acaso’ pelos portugueses, quanto por “ter registrado das 1600 orelhas cortadas à marinhangem árabe por Vasco da Gama”. [1]  

 

Tanto no passado quanto no presente, são injustos estes julgamentos sobre a obra do escritor de Taubaté.

 

Não é correto dizer que Monteiro Lobato era racista, mesmo porque o escritor não teve uma única opinião com relação ao tema racial. Já nos ano de 1920, quando inicia seu trabalho de literatura infantil, já havia feito uma autocrítica acerca do seu personagem Jeca Tatu. Os vícios do caipira não decorriam de questões raciais, da miscigenação do branco, do índio e do negro. O atraso de Jeca decorria da falta de salubridade, de higiene e de saúde. Nas palavras do escritor: “Jeca não é assim. Está assim”. Vale dizer que esta mudança de orientação se deu ainda em 1918, nada menos do que 15 anos antes do lançamento de “Casa Grande e Senzala”, quando o grande sociólogo pernambucano chegaria às mesmas conclusões que Monteiro Lobato.

 

Há outros indícios de que Monteiro Lobato não mantinha a mentalidade racista propalada pelo identitarismo.

 

No conto “Negrinha” (1920), por exemplo, faz uma das mais contundentes denúncias dos resquícios da mentalidade escravocrata nas fazendas de café após a abolição de 1888. A perversidade com que Dona Inácia, “excelente senhora, gorda, rica, animada dos padres”, brutaliza Negrinha, uma órfã de sete anos, contando com o beneplácito de um padre, é o que há de melhor de literatura social escrita no Brasil:

 

“A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daqueles ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se fizera ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! (...) O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis”.

 

Há uma carta do escritor de data de 01/10/1916 endereçada à Godofredo Rangel em que Lobato tece fortes elogios ao escritor negro Lima Barreto, na época solenemente ignorado pela elite intelectual do país por puro preconceito racial.

 

A leitura das obras infantis de Monteiro Lobato encanta tanto os jovens como os adultos e algumas de suas lições de história oriundos do “Hans Staden” revelavam uma leitura progressista da História do Brasil.

 

Por exemplo, sobre as razões de Portugal não se desenvolver economicamente a despeito de ter saqueado todo o ouro do Brasil:

 

"- Por que, então, não se tornaram esses países os mais ricos do mundo? – Perguntou Pedrinho.

 

- Porque não souberam guarda-lo – respondeu Dona Benda. – Não basta ganhar, é preciso conservar, coisa muito mais difícil. Todo o ouro que Portugal tirou do Brasil foi se passando aos poucos para os países industriosos, sobretudo para a Inglaterra, em troca dos produtos das suas fábricas. Quando os portugueses abriram os olhos, era tarde – o ouro do Brasil estava todo em mãos de gente mais esperta.”. (Hans Staden)

 

O mandado de segurança que pretende censurar “Caçadas de Pedrinho” seguiu em trâmite no STF até maio de 2020. O STF declarou-se incompetente para analisar ação mandamental que tem como ato coator parecer do Conselho Nacional de Educação. O mandado de segurança, contudo, prossegue. É dever dos comunistas e dos patriotas defender a obra de Monteiro Lobato como parte indissolúvel da cultura popular, motivo de orgulho da população brasileira e obra literária que deve ser defendida em face dos devaneios do identitarismo.



[1] Zöler, Zöler (2018). «3.7.2.4 história». Lobato Letrador. 3º passo 1 ed. [S.l.]: Tagore Editora. p. 357. 408 páginas. In: https://pt.wikipedia.org/wiki/Monteiro_Lobato - Acesso em 15 de Julho de 2021