domingo, 29 de agosto de 2021

“A Moreninha” – Joaquim Manuel de Macedo

 “A Moreninha” – Joaquim Manuel de Macedo



 


Resenha Livro - “A Moreninha” – Joaquim Manuel de Macedo – Ed. Record – Rio de Janeiro – São Paulo

 

“Com efeito, recostada em uma cadeira de braços, D. Carolina estava profundamente adormecida.

 

A Moreninha se mostrava, na verdade, encantadora no mole descuido de seu dormir; à mercê de um doce resfolegar, os desejos se agitavam entre seus seios; seu pezinho bem à mostra, suas tranças dobradas no colo, seus lábios entreabertos e como por costume amoldados àquele sorrir cheio de malícia e de encanto que já lhe conhecemos e, finalmente, suas pálpebras cerradas e coroadas por bastos e negros supercílios, a tornavam mais feiticeira que nunca.

 

D. Clementina não pôde resistir a tantas graças; correu para ela...dois rostos angélicos se aproximaram...quatro lábios cor-de-rosa se tocaram e este toque fez acordar D. Carolina.

 

Um beijo tinha despertado um anjo, se é que o anjo realmente dormia”.

 

A importância do romance “A Moreninha” do escritor carioca Joaquim Manuel de Macedo não reside tanto nos seus êxitos literários, mas no seu pioneirismo.

 

Lançado em 1844, quando o Brasil era governado por D. Pedro II (2º Reinado 1840/1889), não existe muito dissenso entre os especialistas em suscitar a obra como o primeiro escrito que podemos chamar de romance então realizado no país.

 

Não deveria ter sido fácil escrever o romance sem que houvesse até então qualquer tradição literária anterior, que pudesse dar sustentação a uma linguagem ficcional, com tema, enredos, estilos literários, etc.

 

Outro ponto que merece destaque é a idade do autor, que escreveu a Moreninha quando tinha 23 anos de idade. Era recém formado em medicina.

 

Até então, as poucas referências literárias existentes eram os romances de Texeira e Souza (1812/1861) e as novelas francesas publicadas no Brasil a partir de 1817. A influência dos folhetins franceses na literatura Brasileira é notória. Posteriormente, boa parte da produção de Machado de Assis, nitidamente nas suas produções românticas (Ressurreição de 1872, A Mão e a Luva de 1874, Helena de 1876 e Iaiá Garcia de 1878) também seriam tributárias desta literatura associada ao jornalismo, cujos capítulos dos romances eram publicados periodicamente na impressa, e na maioria das vezes lidos pelo público feminino.

 

Como obra pioneira, certamente está abaixo de trabalhos posteriores de Machado de Assis e de José de Alencar, que levariam a proposta do romantismo folhetinesco de ambientação urbana em obras talvez menos superficiais, com maiores sondagens psicológicas das personagens e enredos mais complexos.

 

Contudo, como obra pioneira, temos já todo os ingredientes da tradição do romantismo literário brasileiro: o sentimentalismo, a idealização do amor, algum subjetivismo do narrador, o elogio do campo em Macedo ou o indianismo em Alencar.

 

O enredo se passa entre a corte e uma ilha próxima ao RJ, onde um grupo de estudantes de medicina passam alguns dias na companhia de familiares de Filipe, incluindo um grupo de jovens mulheres.

 

Deste passeio à Ilha, os jovens se relacionam, trocam cartas, fazem passeios, promovem jantares, trocam impressões sobre o sexo oposto. A história é certamente uma fonte histórica interessante para se conhecer como se devam os namoros no período, sempre sob a supervisão implacável dos mais velhos. Certamente, os papeis sociais de homens e mulheres, como não poderiam deixar de ser, eram radicalmente diferentes dos padrões atuais, o que não deve(ria) fazer com que os leitores de hoje deixassem de conhecer e estudar a obra por conta de sensibilidades pessoais, não raro decorrentes da agenda identitária.

 

Aliás, quem seríamos nós do século XXI para julgar aqueles padrões sociais? Nitidamente se considerando que nos tempos de hegemonia do celular, das redes sociais e do espetáculo das imagens, os padrões de beleza da mulher se reduzem hoje ao momento puramente estético, ensejando uma voracidade das mulheres na busca de cirurgias reparadoras, dietas milagrosas, e afins. Em “Moreninha” a personagem adolescente e tola das primeiras páginas vai ganhando a admiração de Augusto aos poucos. Por um acaso, uma empregada da chácara cai doente e D. Carolina se desdobra de cuidados e carinhos por sua antiga criada:

 

“No meio de toda esta balbúrdia era de ver-se o zelo e a solicitude da menina travessa!... Observava-se aquela Moreninha de quinze anos, que parecera somente capaz de brincar e ser estouvada, correndo de uma para outra parte, prevenindo tudo e aparecendo sempre onde se precisava apressar um serviço ou acudir a um reclamo. Só cuidava de si quando devia enxugar as lágrimas”.

 

A personagem feminina é o tema central do romance e representa o ideal de mulher da elite econômica do Brasil do II Império.

 

Inicialmente, a personagem aparece a Augusto como sonsa, tola e infantil. Paulatinamente, deixa de ser sonsa e vai granjeado o amor de todos os jovens da ilha, exatamente por representar um certo ideal de beleza feminino.  Certamente era fisicamente mais bonita que as demais, e como tal, era uma estrela que tinha um brilho superior. Contudo, também e principalmente fora amada por sua inteligência.

 

Tem razão o professor Carlos Sepúlveda (UFRJ) ao chamar a atenção para um elemento ausente no romance: o trabalhador escravo que propiciava àquela burguesia urbana os seus tempos de lazer, de passeios, de longas divagações com declaração de amor. Para que sobrasse tanto tempo para o divertimento desta elite econômica, havia a maioria da população subjugada: a abolição só viria 45 anos após a publicação do livro.    

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