“A Moreninha” – Joaquim Manuel de Macedo
Resenha Livro - “A Moreninha” – Joaquim Manuel de Macedo – Ed. Record –
Rio de Janeiro – São Paulo
“Com efeito, recostada em uma cadeira de braços, D. Carolina estava
profundamente adormecida.
A Moreninha se mostrava, na verdade, encantadora no mole descuido de
seu dormir; à mercê de um doce resfolegar, os desejos se agitavam entre seus seios;
seu pezinho bem à mostra, suas tranças dobradas no colo, seus lábios
entreabertos e como por costume amoldados àquele sorrir cheio de malícia e de
encanto que já lhe conhecemos e, finalmente, suas pálpebras cerradas e coroadas
por bastos e negros supercílios, a tornavam mais feiticeira que nunca.
D. Clementina não pôde resistir a tantas graças; correu para ela...dois
rostos angélicos se aproximaram...quatro lábios cor-de-rosa se tocaram e este
toque fez acordar D. Carolina.
Um beijo tinha despertado um anjo, se é que o anjo realmente dormia”.
A importância do romance “A Moreninha” do escritor carioca Joaquim
Manuel de Macedo não reside tanto nos seus êxitos literários, mas no seu
pioneirismo.
Lançado em 1844, quando o Brasil era governado por D. Pedro II (2º Reinado
1840/1889), não existe muito dissenso entre os especialistas em suscitar a obra
como o primeiro escrito que podemos chamar de romance então realizado no país.
Não deveria ter sido fácil escrever o romance sem que houvesse até
então qualquer tradição literária anterior, que pudesse dar sustentação a uma
linguagem ficcional, com tema, enredos, estilos literários, etc.
Outro ponto que merece destaque é a idade do autor, que escreveu a
Moreninha quando tinha 23 anos de idade. Era recém formado em medicina.
Até então, as poucas referências literárias existentes eram os
romances de Texeira e Souza (1812/1861) e as novelas francesas publicadas no
Brasil a partir de 1817. A influência dos folhetins franceses na literatura
Brasileira é notória. Posteriormente, boa parte da produção de Machado de Assis,
nitidamente nas suas produções românticas (Ressurreição de 1872, A Mão e a Luva
de 1874, Helena de 1876 e Iaiá Garcia de 1878) também seriam tributárias desta
literatura associada ao jornalismo, cujos capítulos dos romances eram
publicados periodicamente na impressa, e na maioria das vezes lidos pelo
público feminino.
Como obra pioneira, certamente está abaixo de trabalhos posteriores de
Machado de Assis e de José de Alencar, que levariam a proposta do romantismo
folhetinesco de ambientação urbana em obras talvez menos superficiais, com
maiores sondagens psicológicas das personagens e enredos mais complexos.
Contudo, como obra pioneira, temos já todo os ingredientes da tradição
do romantismo literário brasileiro: o sentimentalismo, a idealização do amor,
algum subjetivismo do narrador, o elogio do campo em Macedo ou o indianismo em
Alencar.
O enredo se passa entre a corte e uma ilha próxima ao RJ, onde um
grupo de estudantes de medicina passam alguns dias na companhia de familiares de
Filipe, incluindo um grupo de jovens mulheres.
Deste passeio à Ilha, os jovens se relacionam, trocam cartas, fazem
passeios, promovem jantares, trocam impressões sobre o sexo oposto. A história
é certamente uma fonte histórica interessante para se conhecer como se devam os
namoros no período, sempre sob a supervisão implacável dos mais velhos.
Certamente, os papeis sociais de homens e mulheres, como não poderiam deixar de
ser, eram radicalmente diferentes dos padrões atuais, o que não deve(ria) fazer
com que os leitores de hoje deixassem de conhecer e estudar a obra por conta de
sensibilidades pessoais, não raro decorrentes da agenda identitária.
Aliás, quem seríamos nós do século XXI para julgar aqueles padrões
sociais? Nitidamente se considerando que nos tempos de hegemonia do celular,
das redes sociais e do espetáculo das imagens, os padrões de beleza da mulher
se reduzem hoje ao momento puramente estético, ensejando uma voracidade das
mulheres na busca de cirurgias reparadoras, dietas milagrosas, e afins. Em “Moreninha”
a personagem adolescente e tola das primeiras páginas vai ganhando a admiração
de Augusto aos poucos. Por um acaso, uma empregada da chácara cai doente e D. Carolina
se desdobra de cuidados e carinhos por sua antiga criada:
“No meio de toda esta balbúrdia era de ver-se o zelo e a solicitude da
menina travessa!... Observava-se aquela Moreninha de quinze anos, que parecera
somente capaz de brincar e ser estouvada, correndo de uma para outra parte,
prevenindo tudo e aparecendo sempre onde se precisava apressar um serviço ou
acudir a um reclamo. Só cuidava de si quando devia enxugar as lágrimas”.
A personagem feminina é o tema central do romance e representa o ideal
de mulher da elite econômica do Brasil do II Império.
Inicialmente, a personagem aparece a Augusto como sonsa, tola e infantil.
Paulatinamente, deixa de ser sonsa e vai granjeado o amor de todos os jovens da
ilha, exatamente por representar um certo ideal de beleza feminino. Certamente era fisicamente mais bonita que as
demais, e como tal, era uma estrela que tinha um brilho superior. Contudo, também
e principalmente fora amada por sua inteligência.
Tem razão o professor Carlos Sepúlveda (UFRJ) ao chamar a atenção para
um elemento ausente no romance: o trabalhador escravo que propiciava àquela
burguesia urbana os seus tempos de lazer, de passeios, de longas divagações com
declaração de amor. Para que sobrasse tanto tempo para o divertimento desta
elite econômica, havia a maioria da população subjugada: a abolição só viria 45
anos após a publicação do livro.
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