“O Meu Pé de Laranja Lima” – José Mauro de Vasconcelos
“Na nossa rua havia tempo de tudo. Tempo de bola de gude. Tempo de pião.
Tempo de colecionar figurinhas de artistas de cinema. Tempo de papagaio, o mais
bonito de todos os tempos. Os céus ficavam por todos os lados repletos de
papagaios de todas as cores. Papagaios lindos de todos os feitios. Era a guerra
no ar. As cabeçadas, as lutas, as laçadas e os cortes.
As giletes cortavam as linhas e lá vinha um papagaio rodopiando no espaço
embaraçando a linha do cabresto com a cauda sem equilíbrio; era lindo tudo
aquilo. O mundo se tornava só das crianças da rua. De todas as ruas de Bangu.
Depois era um tal de caveirinha enrolada nos fios; era um tal de correr do
caminhão da Light. Os homens vinham furiosos arrancar os papagaios mortos,
atrapalhando os fios. O vento... o vento...”.
Quando o escritor carioca José Mauro de Vasconcelos publicou este livro, no
ano de 1968, já era um romancista experiente. Seu primeiro livro, chamado “Banana
Brava”, foi publicado em 1942, quando o artista tinha apenas 22 anos de idade. Neste
romance se retrata o homem embrutecido nos garimpos dos sertões do Centro-oeste
brasileiro. O livro “Rosinha, Minha Canoa” de 1962 foi o seu primeiro sucesso
de público: a obra de certa forma antecipa o tema do fantástico, contando a
história de Zé Orocó que conversa com sua canoa, tanto quanto Zezé que conversa
com seu Pé de Laranja Lima.
Este certamente é o mais conhecido romance de Vasconcelos. Foi
inequivocamente um sucesso de público: dois milhões de exemplares vendidos e
edições que se espraiaram por 15 países, entre Estados Unidos, Holanda, Itália,
Hungria, Áustria, Argentina e Alemanha. No Brasil foram produzidas 150 edições,
houve duas adaptações para o cinema, três adaptações para telenovelas e uma
adaptação para o teatro, com texto de Luciano Luppi e direção de Tereza
Quintino.
A despeito do sucesso de público, na opinião do escritor Luiz Antônio
Aguiar, não houve o mesmo reconhecimento da obra pela crítica e pela estudiosos da literatura.
A saber:
“A critica erudita não aceitou bem O Meu Pé de Laranja Lima e o
enternecimento que a obra, seja em livro, seja na adaptação para a TV e o
cinema (que você deveria conferir), causou ao público. Em consequência, não se
deu o devido valor a esse importante autor, o que aconteceu também a outros que
conquistaram os leitores e a audiência da mídia, mas não a crítica
especializada”.
Esta situação se relaciona mesmo com a trajetória de vida do escritor:
uma vida de viagens pelo interior do país, sem formação na universidade,
trazendo a realidade conhecida pelas aventuras pelo Brasil e combinando-a com
uma fértil imaginação.
Sobre o Autor
José Mauro de Vasconcelos nasceu em 26 de fevereiro de 1920, em Bangu, no
Rio de Janeiro. De família muito pobre, ainda aos nove anos de idade, chegou a
morar com os tios em Natal/RN. Desde cedo, gostava de ler Graciliano Ramos,
José Lins do Rego e Paulo Setúbal. Certamente, seu livro também é tributário de
um certo regionalismo associado aos escritores do modernismo literário. Além do
estudo, desde cedo praticava esportes e manteve espírito de aventura. Chegou a
cursar dois anos de Medicina na Faculdade de Natal, mas sua mente inquieta o
fez abandonar a graduação e mudar-se ao Rio de Janeiro a bordo de um navio
cargueiro. A partir da então capital do país, iniciou sua peregrinação pelo
Brasil. Foi treinador de boxe, carregador de banana, pescador no litoral
fluminense, professor primário num núcleo de pescadores em Recife, garçom em
São Paulo e até ator.
Sobre a Obra
“Meu Pé de Laranja Lima” é um livro autobiográfico e relata a história da
infância do escritor. A história se passa no bairro de Bangu, zona norte do Rio
de Janeiro, e o narrador é a própria criança de 6 anos. Ou melhor, criança de 5
anos mas que diz a todos que tem 6 anos: assim poderia ter idade para frequentar
a escola e desligar-se do lar, onde recebe castigos físicos por conta de suas
travessuras. A pobreza da família é retratada logo no início, quando do natal
de 1925: o pai de Zezé (apelido de José) está desempregado e as crianças são as
únicas do bairro a não ganharam presentes. A pobreza é percebida pela criança
através do reflexo da experiência dramática dos adultos, nitidamente de Seu
Paulo, pai de família e desempregado.
“Eu resolvera ficar perto de Papai, porque assim não faria arte alguma.
Ele se sentara na cadeira de balanço e olhava perdidamente para a parede. Seu
rosto sempre com a barba por fazer. Sua camisa nem sempre muito limpa. Quer ver
que não saíra para jogar manilha com os amigos porque não tinha dinheiro. Pobre
Papai, devia ser triste saber que Mamãe trabalhava para ajudar a sustentar a
casa. Lalá já entrara para a Fábrica. Devia ser duro ir procurar uma porção de
empregos e voltar desanimado sempre com aquela resposta: ‘Precisamos de uma
pessoa mais moça”.
O livro retrata um período em que a infância não tinha ainda a mesma
atenção dada pelo legislador e pela sociedade, como a noção de proteção
integral e prioridade absoluta no asseguramento dos direitos (artigo 4º da Lei
8069/90). A história se passa nos anos 1920, setenta anos antes da vigência do
Estatuto da Criança e do Adolescente. As cenas de brutalização e violência em
face de Zezé, pelo pai e pela irmã Jandira, indicam um período histórico diferente
do atual, a despeito da permanência ainda hoje dos abusos, inclusive sexuais.
Em todo o caso, mais do que um livro sobre a infância, “Meu Pé de Laranja
Lima” é um livro sobre o “tornar-se”, o deixar de ser criança e passar a ser
adulto, o que, no caso de Zezé, aconteceu muito cedo.
O advento da “idade da razão” aparece no romance em diferentes etapas: a criança tem dentro de si um
passarinho com quem conversa e dialoga. Ao deixar de ser criança, o passarinho desaparece
e é trocado pelo “pensamento” – quando perde este passarinho, se sente um vazio
por dentro que não acaba mais.
As surras injustas levadas por Zezé levam-no rapidamente a romper com os
laços familiares: seu único amigo, Portuga, morre tragicamente num acidente de
carro.
O pé de laranja lima deverá ser removido por ordens da prefeitura.
Envelhecer é sair do mundo da fantasia e entrar no mundo da realidade e
da dor. O mais provável é que o no passado, este processo ocorria mais cedo, formando
adultos diferentes do que os que estamos formando nos dias de hoje.
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