“O Quinze” – Rachel de Queiroz
Resenha
Livro - “O Quinze” – Rachel de Queiroz – Editora José Olympio – Rio de Janeiro
2020.
“A
novidade de O Quinze depende da conversão da personagem feminina em sujeito, e
não em objeto da narrativa. O modo como o consegue é a questão. Trata-se de uma
virada de perspectiva literária, coadunada a uma profunda mudança histórica:
tem a ver com o horizonte brasileiro no raiar da década de 1930, mas não se
reduz a isso e tampouco é mera ilustração do processo histórico.
O
que se tem aqui é a forma artística, particular e concreta, de uma experiência
humana complexa, encerrada num meio primitivo, aparentemente afastado de toda a
civilização (o que não é verdade), no momento da catástrofe climática. Tudo experimentado
viva e expressivamente na prática pela artista: um universo transposto com
precisão e coerência no plano literário” (“O Sertão Em Surdina” – Davi Arrigucci
Júnior)
O
Quinze é o romance de estreia da escritora cearense Rachel e Queiroz. Quando escreveu
o livro tinha apenas 19 anos de idade. A primeira edição foi publicada em Junho
de 1930 em 1000 exemplares, custados pelo pai da escritora. O livro despertou o
interesse e suscitou elogios imediatos de Mário de Andrade, Augusto Frederico
Schmidt e Graciliano Ramos. Este último duvidou mesmo que o romance teria sido
escrito por uma jovem professora. Incrédulo, o autor de Vidas Secas afirmaria: “não
há ninguém com este nome. É pilhéria. Uma garota assim fazer romance! Deve ser pseudônimo
de sujeito barbado.”.
De
fato, a novidade de O Quinze não era de pouca monta, se considerando o papel da
mulher brasileira no Brasil dos anos 1930.
A
título de referência o voto feminino no Brasil só seria permitido oficialmente
a partir do Código Eleitoral de 1932 decretado durante o Governo Vargas. Ainda em
junho de 1958, após recebeu o Prêmio Machado de Assis da Academia Brasileira de
Letras, pelo conjunto de sua obra, o discurso de homenagem à escritora
proferido pelo presidente da casa afirmava que aquela instituição era reservada
para os homens. Apenas em 1977, por 23 votos a 15, Rachel de Queiroz vence o
jurista Pontes de Miranda, tornando-se a primeira mulher a ser eleita para a
Academia Brasileira de Letras. Ou seja, quarente e sete anos após o seu romance
de estreia!
Neste
livro de estreia a escritora, que já atuava no jornalismo do Ceará, além de ser
professora de história da Escola Normal Pedro II, trata da grande seca
nordestina de 1915.
O
livro se situa dentro do que ficou conhecido como a 2ª Fase do Modernismo
Literário, de caráter regionalista, do qual se filiam “A bagaceira” (1928) de
José Américo de Almeida e “Vidas Secas” (1938) de Graciliano Ramos.
Já
no naturalismo literário do século XIX e dentro da literatura de alguns pré
modernos como Lima Barreto, já se verifica uma maior atenção das narrativas aos
extratos mais baixos da população brasileira. N’o “Cortiço” (1890), Aluísio de
Azevedo retrata os tipos populares ainda dentro de uma perspectiva pitoresca, bem
como situando as populações suburbanas do Rio de janeiro dentro das orientações
cientificistas tão em voga no século XIX. O determinismo (social, do meio e da
raça) acabava servindo como um impeditivo para esta literatura superar uma
compreensão meramente exterior da vida e da realidade dos extratos populares.
A
grande novidade desta geração regionalista, já no modernismo, foi justamente superar
esta artificialidade no trato dos extratos mais baixos da população, reivindicando
uma literatura realista, objetiva e que não se furta a tratar os mais íntimos
dilemas de consciência de retirantes, camponeses e trabalhadores urbanos.
A
história se passa no sertão de Quixandá e envolve personagens que experimentam a
preocupação, o medo e finalmente a tragédia da seca nordestina.
Conceição,
normalista e ávida leitora de livros, e sua avó, Dona Inácia, vivem na Fazenda
do Logradouro. Conceição mantém uma relação de afeto com seu primo Vicente, um
primo que se dedica com afinco no cuidado da fazenda e do gado, lutando e
resistindo em face da desagregação da produção diante da seca. Desencontros,
acasos e continências da vida fazem com que o previsível casamento entre os
primos não se realize. Assim como a tragédia climática surge pela força da
natureza, o desencontro amoroso aparece como resultado das circunstancias.
A
solidariedade das personagens traz alguma luz de esperança ante a tragédia da
seca.
Conceição
se engaja no trabalho voluntário junto ao “Campo de Concentração” onde se agrupam
retirantes morrendo de fome. Pequenas crianças falecem no colo de mães que buscam
alguma esmola para ter o que comer. Há promessas de possibilidade de sobrevivência
na Amazônia, na economia da borracha, mas são grandes a chance da morte na
viagem desde o Ceará.
O
personagem Chico Bento é vaqueiro que foi dispensado da fazenda por conta da seca.
A tragédia que envolve ele e sua família de retirantes suscita aqueles retratos
humanizados dos tipos populares que são típicos do modernismo regionalista. Com
sua família sofrendo com a fome, Chico Bento encontra em seu destino uma cabra
e, como que encontrando o eldorado, mata o animal para fornecer o alimento à
mulher e aos filhos. O dono do animal o encontra, o acuso de ladrão e o humilha:
Chico Bento não reage, envergonha-se de sua condição, acredita ser de fato um
ladrão, apenas ensaia algumas cogitações de revolta. Pensa: “deus só nasceu
para os ricos”.
A linguagem
do livro é enxuta e rejeita qualquer tipo de adorno.
É
certo que todo modernismo se opõe à eloquência do parnasianismo.
A paisagem
sertaneja da seca remete à cinza e ao fogo. A tragédia da seca surge como uma
fatalidade, a despeito de injustiças humanas inequívocas. A solidariedade entre
as personagens estimula a compaixão do leitor. Finalmente, a chuva finalmente chega,
tornando o ambiente verde de esperança.
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