quarta-feira, 23 de junho de 2021

EM DEFESA DE MONTEIRO LOBATO

 

EM DEFESA DE MONTEIRO LOBATO






“O fazendeiro paulista é alguma coisa no mundo. Cada fazenda é uma vitória sobre a fereza retrátil dos elementos brutos, coligados na defesa da virgindade agredida. Seu esforço de gigante paciente nunca foi cantado pelos poetas, mas muita epopeia há por aí que não vale a destes heróis do trabalho silencioso. Tirar uma fazenda do nada é façanha formidável. Alterar a ordem da natureza, vencê-la, impor-lhe uma vontade, canalizar-lhe uma vontade, canalizar-lhe as forças de acordo com um plano preestabelecido, dominar a réplica eterna do mato daninho, disciplinar os homens da lida, quebrar a força das pragas... – batalha sem tréguas, sem fim, sem momento de repouso e, o que é pior, sem certeza plena de vitória. Colhe-a muitas vezes o credor, um onzeneiro que adiantou um capital caríssimo e ficou a salvo na cidade, de cócoras num título de hipoteca, espiando o momento oportuno para cair sobre a presa, como um gavião”. (“O Drama da Geada” – Monteiro Lobato – 1920).

 

José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais.

 

É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, da Dona Benta e da Tia Nastácia.

 

Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas literárias, crônicas e um único romance, denominado o “Presidente Negro”, publicado em 1926. Também teve participação pessoal em movimentos políticos nacionalistas, em especial na defesa na nacionalização do Petróleo.

 

 

 

É certo que a leitura de parte de suas obras pode surpreender um leitor desatento, que não relacione algumas ideias inequivocamente racistas com as teses sociológicas então em voga no país entre os fins do século XIX e o início do século XX.

 

 

 

Mais recentemente, houve mesmo quem propusesse “cancelar” Monteiro Lobato por conta de suas teses raciais.

 

O anacronismo presente neste tipo de análise é inequívoco e dispensa maiores comentários.

 

Deixar de ler Monteiro Lobato significa renunciar ao contato com a história das ideias do Brasil num contexto em que as teses de eugenia, as críticas da miscigenação e as propostas do embranquecimento da população eram parte do vocabulário do pensamento social, de Nina Rodrigues à Sílvio Romero, de Euclides da Cunha à Joaquim Nabuco.

 

Sim, o mesmo líder abolicionista, frequentemente lembrado por suas campanhas em prol da libertação dos escravos, refutava no parlamento a vinda da imigração chinesa (“amarelos”) por considerações puramente raciais. Joaquim Nabuco, amigo íntimo de Machado de Assis, censurou o crítico literário José Veríssimo quando, após a morte do Bruxo do Cosme Velho, em artigo memorial, Veríssimo chamava atenção para o fato de que nosso maior romancista fora da cor preta.  Na opinião de Joaquim Nabuco, a despeito do fenótipo do falecido escritor, a sua alma era branca e o artigo de Veríssimo depunha contra o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas.  

 

 

No começo do século XX as campanhas sanitaristas ajudam as elites intelectuais a abandonarem, de forma palatina, os critérios de análise social baseadas exclusivamente na raça. O atraso do país paulatinamente deixa de ser relacionado ao problema da raça e passa a ser explicado pela (falta de) saúde e salubridade.

 

 

Importante papel foi cumprido por Gilberto Freire no seu “Casa Grande e Senzala” (1933), dizendo que os problemas do brasileiro não diziam respeito à raça ou à miscigenação envolvendo negros, índios e portugueses,  mas à salubridade, à saúde, à alimentação e à higiene.

 

Esta mudança de posicionamento se expressou também no escritor paulista Monteiro Lobato: quando criou o seu personagem Jeca Tatu, atribuía o atraso do caipira à degeneração racial. Já em 1918, Monteiro Lobato em prefácio da obra faz a sua autocrítica, já reconhecendo a predominância das doenças e da insalubridade no temperamento de Jeca Tatu.

 

Quem lê com atenção o “Casa Grande e Senzala” observa que a refutação das teses eugenistas e raciais em Gilberto Freire dizia debates que ainda estavam na ordem do dia. Casa Grande e Senzala e sua proposta de explicação da especificidade da formação nacional Brasileira envolvia novidades no campo metodológico, buscando chaves explicativas na cultura, na sexualidade, na vida íntima e nos hábitos de alimentação e higiene.

 

Ora, lendo os contos de Monteiro Lobato redigidos entre anos 1900-1920 verifica-se que o escritor Paulista foi nada menos do que um pioneiro na superação de teses puramente raciais na explicação da realidade nacional. Sua autocrítica sobre as considerações raciais do Jeca Tatu data de 1916, quase 20 anos antes da publicação do “Casa Grande e Senzala”.

 

No conto “Negrinha”, publicado em 1920, o tema da mentalidade escravocrata, que sobrevive quase intacta após o 1888, é descrito mediante a denúncia da proprietária Dona Inácia, “excelente senhora, gorda, rica, animada dos padres”, que se entretém brutalizando Negrinha, uma órfã de sete anos, que “não era preta, mas fusca”.

 

Nestes contos de Lobato, é muito comum o trágico estar emparelhado com o cômico: Dona Inácia intimamente acredita que sua criação da órfão baseada na mesma linha dos escravocratas do século anterior era um ato de caridade, crença reforçada pelo padre que frequenta a sua casa.

 

A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos – e daqueles ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se fizera ao regime novo – essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! (...) O 13 de maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para o frenesis”.

 

Nestes marcos, percebe-se que, ao contrário do que sugere a propagando de identitários e do liberalismo de esquerda, as ideais de Monteiro Lobato refletiam o ambiente cultural do período e, especialmente a partir dos anos 1920, sinalizavam mesmo ideias progressistas para a época, inclusive quanto ao problema racial.

 

Isto para não se mencionar o engajamento do autor em torno da bandeira do “Petróleo é Nosso” e o seu nacionalismo econômico, que certamente vai em sentido mais progressista que as ideias do liberalismo de esquerda sobre o tema, ainda nos dias de hoje.

 

A bandeira da nacionalização do Petróleo aparece em duas obras do escritor datadas dos anos 1930: “O Ferro” (1931) e “Escândalo do Petróleo” (1936), este último um sucesso de venda em sua época, em que o escritor denunciava Getúlio Vargas por “não perfurar e não permitir que perfurem”.

 

O livro foi recolhido pelas autoridades, não impedindo que o escritor percorresse todo o país em campanha pela nacionalização do petróleo e busca de apoio.  

 

Entre 1932 e 1937, Lobato fundou ou se filiou a três diferentes companhias de prospecção: Cia Petróleos do Brasil, Cia de Petróleo Nacional e Cia Mattogrossense de Petróleo.

 

Também se associou à pesquisa da petrolífera Alliança Mineração e Petroleos LTD, a AMEP, um departamento da Companhia de Petróleo Nacional.

 

Em 1941, durante o Estado Novo, o escritor chegou a ser preso e permanecer detido durante 6 (seis) meses por conta de seu engajamento político em defesa da soberania nacional.

 

O conto “Quero Ajudar O Brasil” (1920) retrata este momento da vida do escritor, quando se engajou na venda de ações destinadas a empresa incorporadora voltada à exploração e descoberta de jazidas de petróleo no Brasil.

 

O conto (ou mais precisamente crônica) relata a história de um homem do povo, negro de cor, que coloca todas suas economias (três contos de réis) para compra de ações da incorporadora. Os demais acionistas alertam o homem dos riscos do empreendimento, tentam convencê-lo a desistir do negócio, ou ao menos comprar menos ações e investir o dinheiro em negócio menos arriscado. Nada demove o homem: seu desejo não é o retorno financeiro, “mas ajudar o Brasil”.

 

Quando verificamos que o pensamento identitário e o liberalismo de esquerda estão intimamente relacionados com o pensamento social norte americano, não surpreende que estas ideias se voltem hoje contra Monteiro Lobato, homem cujo patriotismo e defesa dos interesses nacionais colide com as narrativas impulsionadas pelo imperialismo norte-americano, por meio de seus aparelhos ideológicos de estado.  

 

BIBLIOGRAFIA

 

“Negrinha e Outros Contos” – Monteiro Lobato – Ed. Principis

 

“Cidades Mortas e Outros Contos” - Monteiro Lobato – Ed. Principis

 

“O Presidente Negro” - Monteiro Lobato – Ed. Principis


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