EM DEFESA DE MONTEIRO LOBATO
“O fazendeiro paulista é alguma coisa no mundo. Cada fazenda é uma
vitória sobre a fereza retrátil dos elementos brutos, coligados na defesa da
virgindade agredida. Seu esforço de gigante paciente nunca foi cantado pelos poetas,
mas muita epopeia há por aí que não vale a destes heróis do trabalho
silencioso. Tirar uma fazenda do nada é façanha formidável. Alterar a ordem da
natureza, vencê-la, impor-lhe uma vontade, canalizar-lhe uma vontade,
canalizar-lhe as forças de acordo com um plano preestabelecido, dominar a
réplica eterna do mato daninho, disciplinar os homens da lida, quebrar a força
das pragas... – batalha sem tréguas, sem fim, sem momento de repouso e, o que é
pior, sem certeza plena de vitória. Colhe-a muitas vezes o credor, um onzeneiro
que adiantou um capital caríssimo e ficou a salvo na cidade, de cócoras num título
de hipoteca, espiando o momento oportuno para cair sobre a presa, como um gavião”.
(“O Drama da Geada” – Monteiro Lobato – 1920).
José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade
literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na
escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais.
É provável que seu trabalho mais conhecido do público tenha sido o da
literatura infantil, a criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca
Emília, dos primos Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, da Dona Benta
e da Tia Nastácia.
Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas
literárias, crônicas e um único romance, denominado o “Presidente Negro”,
publicado em 1926. Também teve participação pessoal em movimentos políticos
nacionalistas, em especial na defesa na nacionalização do Petróleo.
É certo que a leitura de parte de suas obras pode surpreender um leitor
desatento, que não relacione algumas ideias inequivocamente racistas com as
teses sociológicas então em voga no país entre os fins do século XIX e o início
do século XX.
Mais recentemente, houve mesmo quem propusesse “cancelar” Monteiro Lobato
por conta de suas teses raciais.
O anacronismo presente neste tipo de análise é inequívoco e dispensa
maiores comentários.
Deixar de ler Monteiro Lobato significa renunciar ao contato com a
história das ideias do Brasil num contexto em que as teses de eugenia, as
críticas da miscigenação e as propostas do embranquecimento da população eram
parte do vocabulário do pensamento social, de Nina Rodrigues à Sílvio Romero,
de Euclides da Cunha à Joaquim Nabuco.
Sim, o mesmo líder abolicionista, frequentemente lembrado por suas
campanhas em prol da libertação dos escravos, refutava no parlamento a vinda da
imigração chinesa (“amarelos”) por considerações puramente raciais. Joaquim
Nabuco, amigo íntimo de Machado de Assis, censurou o crítico literário José Veríssimo
quando, após a morte do Bruxo do Cosme Velho, em artigo memorial, Veríssimo
chamava atenção para o fato de que nosso maior romancista fora da cor preta. Na opinião de Joaquim Nabuco, a despeito do fenótipo
do falecido escritor, a sua alma era branca e o artigo de Veríssimo depunha
contra o autor de Memórias Póstumas de Brás Cubas.
No começo do século XX as campanhas sanitaristas ajudam as elites
intelectuais a abandonarem, de forma palatina, os critérios de análise social
baseadas exclusivamente na raça. O atraso do país paulatinamente deixa de ser
relacionado ao problema da raça e passa a ser explicado pela (falta de) saúde e
salubridade.
Importante papel foi cumprido por Gilberto Freire no seu “Casa Grande e
Senzala” (1933), dizendo que os problemas do brasileiro não diziam respeito à
raça ou à miscigenação envolvendo negros, índios e portugueses, mas à salubridade, à saúde, à alimentação e à
higiene.
Esta mudança de posicionamento se expressou também no escritor paulista
Monteiro Lobato: quando criou o seu personagem Jeca Tatu, atribuía o atraso do
caipira à degeneração racial. Já em 1918, Monteiro Lobato em prefácio da obra
faz a sua autocrítica, já reconhecendo a predominância das doenças e da
insalubridade no temperamento de Jeca Tatu.
Quem lê com atenção o “Casa Grande e Senzala” observa que a refutação das
teses eugenistas e raciais em Gilberto Freire dizia debates que ainda estavam
na ordem do dia. Casa Grande e Senzala e sua proposta de explicação da especificidade
da formação nacional Brasileira envolvia novidades no campo metodológico, buscando
chaves explicativas na cultura, na sexualidade, na vida íntima e nos hábitos de
alimentação e higiene.
Ora, lendo os contos de Monteiro Lobato redigidos entre anos 1900-1920 verifica-se
que o escritor Paulista foi nada menos do que um pioneiro na superação de teses
puramente raciais na explicação da realidade nacional. Sua autocrítica sobre as
considerações raciais do Jeca Tatu data de 1916, quase 20 anos antes da
publicação do “Casa Grande e Senzala”.
No conto “Negrinha”, publicado em 1920, o tema da mentalidade
escravocrata, que sobrevive quase intacta após o 1888, é descrito mediante a denúncia
da proprietária Dona Inácia, “excelente senhora, gorda, rica, animada dos
padres”, que se entretém brutalizando Negrinha, uma órfã de sete anos, que “não
era preta, mas fusca”.
Nestes contos de Lobato, é muito comum o trágico estar emparelhado com o
cômico: Dona Inácia intimamente acredita que sua criação da órfão baseada na mesma
linha dos escravocratas do século anterior era um ato de caridade, crença
reforçada pelo padre que frequenta a sua casa.
“A excelente Dona Inácia era mestra na arte de judiar crianças. Vinha da
escravidão, fora senhora de escravos – e daqueles ferozes, amigas de ouvir
cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se fizera ao regime novo – essa indecência
de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! (...) O 13 de maio tirou-lhe
das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em
casa como remédio para o frenesis”.
Nestes marcos, percebe-se que, ao contrário do que sugere a propagando de
identitários e do liberalismo de esquerda, as ideais de Monteiro Lobato refletiam
o ambiente cultural do período e, especialmente a partir dos anos 1920, sinalizavam
mesmo ideias progressistas para a época, inclusive quanto ao problema racial.
Isto para não se mencionar o engajamento do autor em torno da bandeira do
“Petróleo é Nosso” e o seu nacionalismo econômico, que certamente vai em
sentido mais progressista que as ideias do liberalismo de esquerda sobre o
tema, ainda nos dias de hoje.
A bandeira da nacionalização do Petróleo aparece em duas obras do escritor
datadas dos anos 1930: “O Ferro” (1931) e “Escândalo do Petróleo” (1936), este
último um sucesso de venda em sua época, em que o escritor denunciava Getúlio
Vargas por “não perfurar e não permitir que perfurem”.
O livro foi recolhido pelas autoridades, não impedindo que o escritor
percorresse todo o país em campanha pela nacionalização do petróleo e busca de
apoio.
Entre 1932 e 1937, Lobato fundou ou se filiou a três diferentes companhias
de prospecção: Cia Petróleos do Brasil, Cia de Petróleo Nacional e Cia
Mattogrossense de Petróleo.
Também se associou à pesquisa da petrolífera Alliança Mineração e
Petroleos LTD, a AMEP, um departamento da Companhia de Petróleo Nacional.
Em 1941, durante o Estado Novo, o escritor chegou a ser preso e
permanecer detido durante 6 (seis) meses por conta de seu engajamento político
em defesa da soberania nacional.
O conto “Quero Ajudar O Brasil” (1920) retrata este momento da vida do
escritor, quando se engajou na venda de ações destinadas a empresa
incorporadora voltada à exploração e descoberta de jazidas de petróleo no Brasil.
O conto (ou mais precisamente crônica) relata a história de um homem do
povo, negro de cor, que coloca todas suas economias (três contos de réis) para
compra de ações da incorporadora. Os demais acionistas alertam o homem dos
riscos do empreendimento, tentam convencê-lo a desistir do negócio, ou ao menos
comprar menos ações e investir o dinheiro em negócio menos arriscado. Nada
demove o homem: seu desejo não é o retorno financeiro, “mas ajudar o Brasil”.
Quando verificamos que o pensamento identitário e o liberalismo de
esquerda estão intimamente relacionados com o pensamento social norte americano,
não surpreende que estas ideias se voltem hoje contra Monteiro Lobato, homem
cujo patriotismo e defesa dos interesses nacionais colide com as narrativas impulsionadas
pelo imperialismo norte-americano, por meio de seus aparelhos ideológicos de
estado.
BIBLIOGRAFIA
“Negrinha e Outros Contos” – Monteiro Lobato – Ed. Principis
“Cidades Mortas e Outros Contos” - Monteiro Lobato – Ed. Principis
“O Presidente Negro” - Monteiro Lobato – Ed. Principis
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