“Cidades Mortas e Outros Contos” – Monteiro Lobato
Resenha Livro - “Cidades Mortas e Outros Contos” – Monteiro Lobato – Ed. Principis – 1ª Edição
“Fazer literatura” é a forma natural da calaçaria indígena. Em outros
países o desocupado caça, pesca, joga o murro. Aqui belestra. Rima sonetos,
escorcha contos ou tece desses artiguetes inda não classificados nos manuais de
literatura, onde se adjetiva sonoramente uma aparência de ideia, sempre
feminina, sem pés e raramente sem cabeça, que goza a propriedade, aliás preciosa,
de deixar o leitor na mesma. A gramática sofre umas tantas marradas, os
tipógrafos lá ganham sua vida, as beldades se saboreiam na cândi-adjetivação e
o sujeito autor lucra duas coisas: mata o tempo, que entre nós em vez de
dinheiro é uma simples maçada, e faz jus a qualquer academia de letras, existente
ou por existir, de Sapopemba a Icó”. (Monteiro Lobato – “O Plágio” – 1905).
José Bento Renato Monteiro Lobato desde criança desenvolveu a atividade
literária. Nascido na cidade de Taubaté/SP em 18 de abril de 1882, ainda na
escola se dedicava a escrever histórias e criar jornais. É provável que seu
trabalho mais conhecido do público tenha sido o da literatura infantil, a
criação da Turma do Sítio do Pica Pau Amarelo, da boneca Emília, dos primos
Narizinho e Pedrinho, do Visconde de Sabugosa, da Dona Benta e da Tia Nastácia.
Além da literatura infantil, Monteiro Lobato produziu artigos, críticas
literárias, crônicas e um único romance, denominado “Presidente Negro”,
publicado em 1926.
Mais recentemente, houve mesmo quem propusesse “cancelar” Monteiro Lobato
por conta de algumas teses raciais, suscitadas, por exemplo, n’o “Presidente
Negro”. O anacronismo presente neste tipo de análise é inequívoco e dispensa
maiores comentários. Deixar de ler Monteiro Lobato significa renunciar ao
contato com a história das ideias do Brasil num contexto em que as teses de
eugenia, as críticas da miscigenação racial e as propostas do embranquecimento
da população eram parte do vocabulário do pensamento social, de Nina Rodrigues
à Sílvio Romero, de Euclides da Cunha até o líder abolicionista Joaquim Nabuco,
que refutava a vinda da imigração chinesa (“amarelos”) por considerações
puramente raciais, comungando com o ideal de branqueamento da população
brasileira.
No começo do século XX as campanhas sanitaristas ajudam as elites
intelectuais a abandonarem, de forma gradual, os critérios de análise social
baseadas exclusivamente na raça. O atraso do país paulatinamente deixa de ser
relacionado ao problema da raça e passa a ser explicado pela (falta de) saúde e
da salubridade. Esta mudança de posicionamento se expressou também no escritor
paulista Monteiro Lobato: quando criou o seu personagem “Jeca Tatu”, atribuía o
atraso do caipira à degeneração racial. Já em 1918, Monteiro Lobato em prefácio
da obra, faz a sua autocrítica, já reconhecendo a predominância das doenças e
da insalubridade no temperamento do protagonista da história.
Feitas estas considerações, a leitura
dos contos reunidos sob o nome de “Cidades Mortas” (1919) leva o leitor ao
contato com um Brasil muito diferente dos dias atuais, quando o país ainda
estava longe de completar sua transição do mundo agrário ao mundo rural.
Na roça, os dias se repetem invariavelmente, exceto aos domingos, feriados
religiosos e eventos políticos, quando a população se encontra nas calçadas da
rua e na praça, a comentar sobre a vida alheia. Os homens matam o tempo pitando
cigarros e as mulheres parindo filhos. Um ou outro livro de literatura circula
na mão de poucos, considerando o peso do analfabetismo na população. Alguns
destes poucos intelectuais (ou mais propriamente “bacharéis”) escrevem seus
textos poéticos de qualidade literária duvidosa, cujas palavras difíceis
encantam sinhazinhas em busca de casamento.
“Cidades Mortas” é a história que abre esta coletânea de contos, publicada
pela primeira vez em 1919. Estas cidades se referem às regiões pioneiras da
economia do café do Vale do Paraíba que outrora corresponderam à vanguarda da
economia nacional e, entre fins do século XIX e início do século XX, vão
paulatinamente entrando em decadência por conta da desvalorização mundial dos
preços do produto.
O abandono das plantações de café do Vale do Paraíba dava-se também pelo
próprio esgotamento do solo, com a migração dos proprietários daquela região
para o Oeste Paulista:
“Léguas a fio sucedem de morraria áspera, onde reinam soberanos a
saúva e seus aliados, o sapé e a samambaia. Por ela passou o Café, como um
Átila. Toda a seiva foi bebida e, sob forma de grão, ensacada e mandada para
fora. Mas do ouro que veio em troca nem uma onça permaneceu ali, empregada em
restaurar o torrão. Transfiltrou-se para o Oeste, na avidez de novos assaltos à
virgindade da terra nova; ou se transfez nos palacetes em ruína; ou reentrou na
circulação europeia por mão de herdeiros dissipados. (...) À mãe fecunda que o
produziu nada coube; por isso ressentida, vinga-se agora, enclausurando-se numa
esterilidade feroz. E o deserto lentamente retoma as posições perdidas.”.
No seu trabalho sobre a Abolição no Brasil a historiadora paulista Emília
Viotti da Costa[1]
chama atenção para o fato de a lei Áurea ter sido votada em regime de urgência,
com 83 deputados votando a favor e apenas
9 deputados se posicionando contra. Todos estes opositores de última hora da
abolição da escravidão eram provenientes das regiões mais atrasadas do Vale do
Paraíba e do Rio de Janeiro, chamando atenção para o atrasado político dos
proprietários daquelas áreas rurais, inequivocamente as menos preparadas para
transição do regime de trabalho em todo o país.
O tema da decadência da economia cafeeira
é suscitado em outros contos de Monteiro Lobato, não a explicando apenas por
conta da baixa mundial dos preços do produto ou mesmo por conta da abolição da
escravidão, mas pela conduta dos próprios fazendeiros e do governo.
O conto humorístico “Café! Café!” de 1900 trata da história de um velho
Major proprietário de fazenda de café, homem extremamente teimoso, que via os
preços do produto reduzirem ano a ano, de 30 mil réis para 10 mil réis e depois
para 5 mil réis. Quando descia o preço, o Major sempre dizia que no futuro os
preços retomariam os 30 ou 40 mil réis, enquanto a baixa dos preços provocava a
desagregação da fazenda, a retirada dos meeiros, a intervenção de credores.
Contudo, “tudo nele (no Major) recendia passado e rotina. Na cabeça já
branca habitavam ideias de pedra”.
Quando amigos do Major insinuavam que ele devesse instituir a policultura
ou ao menos plantar mantimentos o teimoso ameaçava expulsar o amigo de casa por
não admitir “ideias revolucionárias” na sua fazenda.
A crítica ao governo pode ser vista na satírica história “O Luzeiro Agrícola”
de 1910 em que o poeta Sizenando Capistrano, homem absolutamente improdutivo e
inapto para as coisas práticas, acaba arranjando um emprego como inspetor agrícola,
incumbindo-lhe, ao menos formalmente, fomentar pecuária, elaborar relatórios,
ensinar o uso de máquinas agrícolas, preconizar a policultura e combater a
rotina. O ministro solicita a Capistrano escrever um relatório “sobre
qualquer coisa. Relate, vá relatando. A função capital do nosso ministério é
produzir relatórios de arromba sobre o que há e o que não há. Relate”.
Capistrano gastou um ano redigindo um estudo botânico-industrial da “beldroega”.
Enviado o trabalho ao ministro, foi-lhe informado que o estudo iria ser incinerado.
Ninguém leria o trabalho e o relatório apenas ocuparia volume nos arquivos do
ministério. Ademais, ao redigir o relatório, Capistrano dava trabalho para a
tipografia que o imprimia e para o forno de incineração da Casa da Moeda. Finalmente,
o ministro convidou Capistrano a redigir um novo relatório, que teria o exato
fim do primeiro.
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