domingo, 13 de fevereiro de 2022

A Questão de Raposa-Serra do Sol Por Aldo Rebelo

 A Questão de Raposa-Serra do Sol Por Aldo Rebelo




 

Resenha Livro – “Raposa-Serra do Sol: o índio e a questão nacional” – Aldo Rebelo – Ed. Thesaurus

 

“É o conflito embutido na terra indígena Raposo-Serra do Sol, demarcada em 1,7 milhão de hectares, para usufruto exclusivo de aproximadamente 11 mil índios, em prejuízo de não índios que desde a Colônia ali também se instalaram com a têmpera dos bandeirantes. (...) Como já tivemos oportunidade de afirmar, o primeiro e maior erro neste debate é escolher um lado e nele entrincheirar-se para travar uma guerra santa que desconsidera a legitimidade dos demais atores que adensam o litígio. Forçoso é reconhecer que tal erro vem sendo cometido além do tolerável pelo partido dos índios, que desenha o debate como um antagonismo entre humanistas e burgueses – e nesta categoria infame são enfiados todos os que buscam uma saída encaixada num projeto nacional, sem ceder ao dogmatismo das facções.”.

 

A reserva indígena de Raposo-Serra do Sol se situa no extremo norte do Estado de Roraima, nas divisas do país com a Guiana e a Venezuela.

 

A querela envolvendo a demarcação das terras indígenas de Raposo-Serra do Sol ganhou repercussão nacional no ano de 2008 quando o STF garantiu a demarcação contínua do território, acolhendo a pressão de ONGs e movimentos indigenistas, em contraposição aos interesses de arrozeiros, das populações caboclas e até mesmo de parte expressiva dos índios que defendiam a demarcação em ilhas comunicantes.

 

Efetivamente, esta decisão acarretou a expulsão de moradores cujas família lá se situam há mais de cem anos, boa parte deles brasileiros agricultores voltadas à produção de arroz. A razão pela qual parte dos índios também se opunham à demarcação contínua era a efetiva diferença de estágios civilizatórios dentre as diferentes tribos – enquanto parcela dos índios ainda vivem sob estágio nômade, sobrevivendo da caça e pesca, outras atingiram maiores patamares de desenvolvimento, havendo índios que desenvolvem a agricultura e a pecuária.

 

Durante este litígio, Aldo Rebelo, então deputado federal por São Paulo/SP, foi uma das poucas vozes dentro da esquerda a se opor à referida homologação contínua das terras de Raposo-Serra do Sol.  

 

Neste livro, o político alagoano nos mostra como esta operação decorreu de uma campanha ideológica que buscou tratar do problema como um confronto maniqueísta entre fazendeiros ávidos de dinheiro e índios oprimidos (e que por esta razão merecem uma tutela não desinteressada de ONGs financiadas por grupos estrangeiros).

 

Por fora deste debate ficou temas importes como a questão geopolítica da Amazônia e os inúmeros precedentes históricos de intervenção estrangeira direta ou indireta em torno da espoliação das riquezas nacionais.

 

Em Roraima se situa a maior reserva de urânio do Mundo. E não é de agora que esta região desperta a cobiça do estrangeiro.  

 

Ainda em junho de 1838, um missionário anglicano de nome THOMAS YOUD chegou até a aldeia brasileira no Pirara em Roraima e instalou-se um pouco mais acima, criando uma missão religiosa entre os rios Pirara e Moneca, à margem esquerda do Guatatá. Atraiu para o local alguns ingleses, que se misturaram com os índios e com brancos que ali já estavam instalados.

 

No ano de 1901 foi levada à arbitragem internacional uma disputa territorial em torno da região do Pirara, igualmente na região fronteiriça de Roraima. O modus operandi dos ingleses é por nós conhecido: buscaram cooptar aparcelas de populações indígenas, a quem ensinaram o Inglês, para, então, buscar formar a ideia de que a região pertencia a uma nação diferente da do Brasil, através de uma propaganda em que os índios aparecem como vítimas da opressão de fazendeiros e latifundiários Brasileiros.

 

Tratando da questão do Pirara, diz  LUIZ ERNANI CAMINHA GIORGIS

 

A arbitragem atribuiu assim, à Inglaterra, o território entre os rios Mahú-Tacutú e o Rupununi, consagrando a usurpação de 1840, desprezando o divisor de águas – a Serra de Pacaraima – e, principalmente, trouxe o domínio britânico às ribanceiras do Tacutú, o que significou abrir aos ingleses o Rio Branco e, através deste, o acesso ao Amazonas. Em contrapartida, negou à Inglaterra o limite pelo rio Cotingo, recuando-o até o Mahú, procurando assim equilibrar o resultado.

 

No caso da questão de Raposa-Serra do Sol, os meios de atuação não parecem ter mudado a sua forma. Desconsiderou-se os interesses e opiniões de populações tradicionais e parcela significativa dos índios. Hoje, no Estado de Roraima, nada menos do que 46% do território corresponde à reserva indígena, sendo certo que países ricos da Europa e da América jamais se propuseram a criar reservas indígenas ou ambientais diante destas dimensões. Aos índios ianomânis foram reservados nada menos do que 9,6 milhões de hectares o que equivale ao território de Cuba.

 

Contudo, a existência destas reservas não significa desenvolvimento e bem estar dos indígenas, sendo relatado por Aldo Rebelo a pobreza, abandona e as doenças que afligem estas populações.

 

Ao visitar uma destas tribos ianomâni em Roraima, o político questionou a razão pela qual não havia fornecimento de luz e água àquelas populações, onde ainda grassavam doenças como tuberculose, e outras patologias decorrentes de falta de saneamento. Aldo relata que havia muito fogo dentro da maloca para as famílias assarem bananas e mandiocas, muita poluição, muita fuligem e grande incidência de doenças infecciosas. A ele foi respondido por uma dirigente de ONG que estes equipamentos não são autorizados por mudarem as referências culturais dos índios.

 

A despeito de todos os precedentes históricos envolvendo a cobiça estrangeira em torno da riqueza mineral e a biodiversidade da Amazônia, existe alguns brasileiros, influenciados por ideologias identitárias que buscam repudiar o nosso passado, alguns ao ponto de defender a internacionalização da Amazônia.

 

A Amazônia, além de ser detentora de uma grande biodiversidade detém importantes estoques de recursos minerais.  Os estudos mostram que a região Amazônica é detentora de grandes estoques de ferro, manganês, alumínio, cobre, zinco, níquel, cromo, titânio, fosfato, ouro, prata, platina, paládio, ródio, estanho, tungstênio, nióbio, tântalo, zircônio, terras-raras, urânio e diamante. Se a escassez de água já é uma preocupação mundial, temos que na Amazônia se situa a maior bacia hidrográfica do mundo, responsável pela drenagem de cerca de 7.500.000 km² de água.

 

Diante destas premissas, é fundamental a leitura deste pequeno livro de Aldo Rebelo para reposicionar os termos do problema da demarcação de terras indígenas, fugindo da superficial querela entre fazendeiros gananciosos e índios oprimidos e indefesos. O reiterado posicionamento da esquerda alinhado com interesses estrangeiros se fez perceptível recentemente na discussões sobre o Marco Temporal.  

 

O primeiro e mais importante direito de um povo é o direito da sua autodeterminação e de sua soberania. Isto porque se um povo não tem este direito significa dizer que todos os demais direitos serão determinados de fora, de acordo com os interesses do imperialismo.




sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

“O Mulato” Aluísio de Azevedo

 “O Mulato” de Aluísio Azevedo











Resenha Livro – “O Mulato” – Aluísio Azevedo – Iba Mendas Editor Digital


“- Mulato!

 

Esta palavra explicava-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos que a sociedade do maranhão usara com ele. Explicava tudo: a frieza de certas famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se aproximava; as reticências dos que lhes falavam sobre seus antepassados; a reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: “Ora mire-se!” a razão pela qual, diante dele, chamavam de menino aos moleques da rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz, arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe brutalmente: “Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só poderás amar uma negra da sua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escravo! E tu também o foste!”

 

Aluísio Tancredo Gonçalves Azevedo nasceu em 14 de abril de 1857 na cidade de São Luís do Maranhão.

 

Era filho de um vice-cônsul Português, sendo certo que o próprio escritor futuramente abandonaria a literatura aos 38 anos, para virar diplomata, tendo servido na Espanha, Inglaterra, Itália, Japão, Paraguai e Argentina.

 

O nosso escritor, quando criança, não era exatamente de família nobre e abastada, mas certamente nunca passou por privações materiais.

 

No ano de 1871 Aluísio se matriculou no Liceu Maranhense à época dirigido pelo professor Francisco Sotero. No mesmo ano começou a ter aulas de pintura com o artista italiano Domingos Tribuzzi.

 

Da pintura, passaria à caricaturista, sendo certo que a sua literatura teria alguma influência decorrente e manteria interfaces com suas charges: seja a proposta de uma narrativa objetiva que retratasse a realidade tal como ela é, seja na criação de tipos sociais com uma intencionalidade de promover crítica social e até mesmo humor.

 

“O Mulato” foi o segundo livro publicado pelo escritor Maranhense, lançado no ano de 1881, mesmo ano, diga-se de passagem, da publicação de Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis.

  

O romance em análise não guardaria a mais pálida semelhança com o primeiro trabalho do autor, chamado “Uma Lágrima de Mulher” (1880).

 

O primeiro livro ainda se pode caracterizar como romance folhetinesco, todo ele se situando inclusive na Itália, sem referências nacionais. Já o segundo romance é tido por muitos como a primeira obra naturalista produzida no país, o que é discutível desde que o menos conhecido Inglês de Souza com sua proposta de literatura amazônica, já produzia livros naturalistas cerca de uma década antes d’o Mulato.

 

Boa parte da crítica literária, capitaneada por Antônio Cândido, buscam dividir a obra de Aluísio de Azevedo entre os trabalhos propriamente naturalistas, que seriam os que alcançariam maior expressão e importância literária e outras obras de menor relevância, de tipo romântico, folhetinesco e mais comerciais.

 

Dentre as ditas “grandes obras” do nosso escritor temos “O Mulato” (1881), “Casa de Pesão” (1883) e “O Cortiço” (1890), este último considerado o melhor livro de Aluísio Azevedo.

 

Contudo, da leitura de livros “Philomena Borges” (1884) e especialmente “O Coruja” (1890), chega-se à conclusão que estas obras não merecem a caracterização de livros superficiais. Inclusive, nestes trabalhos menos conhecidos verificamos a verve humorística cuja influência, como dito, decorre do trabalho anterior do caricaturista de jornal.

 

Há uma opinião de que as variações dos seus romances entre propostas experimentais naturalistas e romances de folhetim mais apetecidos ao público geral decorriam da necessidade financeira: Aluísio de Azevedo foi um dos primeiros escritores que efetivamente viviam e subsistiam da venda dos seus livros.

 

E como se caracteriza o naturalismo literário?

 

Pode ser caracterizado como uma ramificação do realismo, radicalizando a proposta da objetividade ao ponto de relacionar personagens e situações com as correntes cientificistas em voga no final do século XIX: o determinismo com sua noção de que  o ser humano está fadado a ter suas ações condicionadas pelas características biológicas e ao meio social em que vive; e o evolucionismo e a proposta da literatura como uma atividade experimental.

 

Conforme um dos criadores desta corrente literária, Émile Zola, mencionada no seu livro “O Romance Experimental” (1870), o escritor deve estar antes de tudo a serviço da realidade, só levando para seus escritos impressões coletadas do seu cotidiano e, portanto, legitimamente reais.

 

Diante destas premissas, a produção literária de Aluísio de Azevedo decanta aspectos da vida social, cultural e política do Brasil de fins do II Império.

 

No romance “O Mulato”, vemos temas candentes do período histórico como a abolição da escravatura, o papel da igreja na política e na sociedade, o republicanismo e o ideário de um pensamento laico, expresso no cosmopolitismo do protagonista do romance, Raimundo.

 

Raimundo é filho do português José Dias, um contrabandista de escravos português, com uma escrava chamada Domingas. Filho ilegítimo, portanto, que foi alforriado logo ao nascer e, aos 5 anos encaminhado à Portugal para estudar Direto, após a morte de seu pai.

 

Passados alguns anos, já adulto, o mulato volta à sua terra natal onde é recepcionado pelo seu tio Manuel, e fica no Maranhão com a finalidade de transacionar velhas terras herdadas de seu pai.

 

A reação da sociedade maranhense, o seu provincianismo, o maldizer e o atraso cultural de uma cidade contraditoriamente denominada “atenas brasileira” são o pano de fundo do enredo.

 

“A novidade foi logo comentada. Os portugueses vinham, com suas grandes barrigas, às portas dos armazéns de secos e molhados; os barraqueiros espiavam por cima dos óculos de tartaruga; os pretos cargueiros paravam para mirar o “cara-nova”. (...) Outros afiançavam que Raimundo era sócio capitalista da casa de Manuel. Discutiam-lhe a roupa, a cor e os cabelos. O Luisinho Língua de Prata afirmava que ele “tinha casta”.

 

Hospedado na casa de seu tio Manuel, Raimundo se apaixona por sua prima Ana Rosa. Contudo, o casamento não é admitido pelo pai por considerações puramente raciais. A tentativa de rapto de Ana Rosa por Raimundo acarretaria a morte trágica do Mulato, que foi executado por um pretendente que efetivamente se casaria com a filha de Manuel.

 

Seria, contudo, reducionismo dizer que a obra é um mero panfleto político em torno de teses progressistas daquele tempo: o pensamento laico e o abolicionismo.

 

Diante das premissas naturalistas, a história envolve uma certa fatalidade do personagem que, por sua origem e sua raça, tem a sua felicidade inviabilizada. Não se trata tanto de uma denúncia de uma sociedade que se pauta pelo preconceito de cor, mas da constatação de contradições de uma sociedade tardiamente escravocrata.

 

Por exemplo, temos a personagem Mônica, negra que cuida de Ana Rosa desde menina, que por sua vez lhe devota afeto de uma mãe. Também é certo que no Brasil, desde o início de sua ocupação territorial, predominou a mestiçagem, de modo que a oposição entre brancos e pretos não encontra no Brasil a mais remota semelhança com a experiência bi racial dos EUA. O mulato é desmerecido antes de tudo por sua origem de escravo e não pelo seu fenótipo.

 

É interessante frisar que O Mulato foi publicado em um contexto de acirrada polêmica nos jornais maranhenses entre jovens que postulam um pensamento laico e modernizador contra o conservadorismo dos membros e apoiadores da Igreja católica. Aluísio de Azevedo tomou parte nesta querela jornalística e este livro não envolve, como frequentemente se supõe, uma simples denúncia do racismo do povo brasileiro, mas a crítica do provincianismo do Maranhão, com grande parte de culpa pela intervenção de padres se, conduta ilibada, e, não menos importante, do instituto da escravidão.

 

Raimundo não é rejeitado apenas pelo tom de sua pele, mas principalmente por ser filho de escravo e ter sido alforriado na pia de batismo.

 

domingo, 9 de janeiro de 2022

“O Matuto” – Franklin Távora

 “O Matuto” – Franklin Távora




 

Resenha Livro - “O Matuto” – Franklin Távora – Iba Mendes Editor Digital

 

“Só uma vista curta não verá na guerra dos mascates, antes uma luta travada por dois grandes princípios, do que uma revolta filha de preconceitos ridículos e costumes atrasados. Certo concorreram não pouco para essa luta o costume e o capricho antigo, inflexíveis ambos; mas o seu papel nessa grande representação foi mais secundário do que principal. A parte essencial e verdadeiramente dramática da ação, essa pertencia a dois grandes interesses, assim das sociedades modernas, como das antigas – ao comércio e a agricultura, princípios que, quando acordes em seu desenvolvimento, trazem a propriedade e riqueza dos povos, e, quando divergentes, o seu atraso senão o seu aniquilamento”.

 

Já foi dito que a literatura é um retrato da sociedade. Também não são poucos os romances que sevem de preciosa fonte histórica àqueles que desejam conhecer o passado de uma nação. No caso de “O Matuto” (1878) publicado pelo escritório cearense João Franklin da Silveira Távora, verificamos se tratar de uma epopeia descrevendo a Guerra dos Mascates (1710/1711) na região a Zona da Mata Pernambucana, então designada Goiânia.

 

Os eventos principais da Guerra dos Mascates ocorreram no Recife. O segundo palco principal da guerra foi esta região mais ao interior, onde se passa os eventos deste romance.  

 

O enredo se passa mais especificamente em Pasmado, uma velha povoação situada entre Goiânia e Olinda, outrora aldeia de índios, local onde se produzia facas, região onde houve cerca de 8 motins desencadeados pelos rebeldes de Recife contra os nobres da terra, designados como “mazombos” e “pés rapados.”.

 

Mais do que uma história épica da Guerra dos Mascates, temos neste romance uma descrição da fisionomia física e moral do “matuto” que é o sertanejo agricultor, o lavrador, o almocreve, bem como da sua estrutura familiar, dos costumes, do folclore, das festas populares, do papel da religião, dos enlaces conjugais. Mais do que um romance histórico, temos a partir da leitura deste romance regionalista uma fonte preciosa do sertanista brasileiro:

 

“No tocante ao traje, ver um dos matutos era o mesmo que ver os demais. Camisa por cima de ceroulas de algodão – eis em que ele consistia.

 

Todos tinham os pés nu, e quase todos por cima do cós das ceroulas o longo cinto de fio, cofre portátil onde traziam o dinheiro, terminando em cordões com bolotas nas pontas, os quais serviam para dar muitas voltas em torno da cintura antes do laço final. Metida entre o cinto e o cós guardava cada um sua faca de ponta presa pela orelha da bainha. Da arma só aparecia o cabo, figurando a cabeça de uma serpente que tinha o restante do corpo oculto.”.

 

Há divergência nas análises desta obra sobre o seu enquadramento literário. Parte da obra do nosso escritório se situaria no romantismo, outra parte seria precursora do realismo. Para alguns, seria mesmo um precursor do naturalismo.  

 

O certo é que Franklin Távora suscitou a proposta de criação de uma “Literatura do Norte” ou “Romance Histórico” a partir da trilogia: “O Cabelereira” (1876), “O Matuto” (1878) e “Lourenço” (1878).

 

Seria importante salientar que a produção literária de Távora se situa num contexto de fim do ciclo da cana de açúcar e redirecionamento do centro econômico do país para o eixo centro-sul, iniciado com a mineração e concluído com o ciclo do café.

 

Outro ponto a ser destacado: nosso escritor matriculou-se na Faculdade de Direito de Recife em 1859, teve contatos pessoais com a chamada Escola de Recife e seus expoentes Tobias Barreto e Sílvio Romero.

 

Diante destas premissas, justificaria o escritor a criação de uma literatura do norte em oposição e com autonomia em relação ao sul, ou se quisermos, ao Rio de Janeiro.    

 

Ficaram conhecidas, neste sentido, as críticas de Franklin Távora ao escritor romântico José de Alencar, que seria um “escritor de gabinete”, em oposição à proposta literária parcialmente romântica do autor de Matuto, cujo enredo está lastreado em fatos e na pesquisa da história. Certamente, uma história parcial da Guerra dos Mascates, simpática aos senhores de engenho, e antipática à demagogia dos comerciantes portugueses, mas ainda assim, um romance com algum compromisso de narrar o passado, explicar quem foram os protagonistas dos eventos e, não menos importante, explicar as origens do país.

 

A Guerra dos Mascates iniciou-se a partir da proposta de elevação de Recife à condição de Vila, criando animosidade e oposição à nobreza de Olinda. Mais do que uma oposição geográfica, tratava-se de um conflito entre a nobreza da terra, ligada à agricultura, e tida como brasileira, e comerciantes citadinos do recife, designados mascates, boa parte deles portugueses. O controle dos preços do açúcar pelos comerciantes, a existência de empréstimos de dinheiro a juros abusivos, que levaram alguns proprietários de terra ao colapso, criaram as condições econômicas para a animosidade entre os dois grupos.

 

Os mascates diziam representar os interesses do povo e combater os privilégios da nobreza. Na prática, desenvolviam motins, praticavam saques, operavam como bandoleiros, matavam os fidalgos e estupravam suas mulheres, inclusive arregimentando o que poderíamos chamar de “lumpesinato” dentro de seu movimento. Este ódio contra os nobres era explorado por meio de ressentimentos prévios, sendo comum os mascates corromperem os escravos dos senhores de engenho para que eles sabotassem internamente à reação aos motins.

 

Se por um lado, os mascates apresentavam um discurso de representantes dos interesses populares, os rebeldes eram dirigidos por comerciantes portugueses, cujos interesses efetivos não era o igualitarismo político ou mesmo a abolição da escravatura, mas os desígnios pecuniários dos comerciantes. Comerciantes estrangeiros....

 

Ao menos no que se refere à interpretação da história por Franklin Távora, a efetiva defesa dos interesses nacionais estava do lado oposto da trincheira, dentro da resistência do matuto, dos senhores de engenho e dos trabalhadores do campo. Dos brasileiros....

 

“Em nome da lei, mascate! Gritou Cosme em tom de quem impunha silêncio. Sois apontado como perturbador da ordem, protetor dos rebeldes, e um deles. À frente de todos os motins que há dois meses perturbam o sossego desta vila, todos vos veem comprando os venais, desencabeçando os ignorantes, encaminhando para o mal, que é o vosso alvo, os desordeiros por hábito e condição. Os homens bons já estão cansados de aturar as vossas provocações, a autoridade de ser desrespeitada, as famílias fracas de receber insultos e violências dos malfeitores a que estendeis a mão cheia de ouro. (...)”  

sábado, 4 de dezembro de 2021

O DEMÔNIO FAMILIAR DE JOSÉ DE ALENCAR

 O DEMÔNIO FAMILIAR DE JOSÉ DE ALENCAR






“EDUARDO – Os antigos acreditavam que toda a casa era habitada por um demônio familiar, do qual dependia o sossego e a tranquilidade das pessoas que nela viviam. Nós, os brasileiros, realizamos infelizmente esta crença; temos no nosso lar doméstico esse demônio familiar. Quantas vezes não partilha conosco as carícias de nossas mães, os folguedos de nossos irmãos e uma parte das atenções da família! Mas vem um dia como hoje, em que ele na sua ignorância ou na sua malícia, perturba a paz doméstica; e faz do amor, da amizade, da reputação, de todos esses objetos santos, um jogo de criança. Este demônio familiar de nossas casas, que todos conhecemos, ei-lo.”. 

 

José Martiniano de Alencar nasceu em Mecejana, que na época era um povoado nas cercanias de Fortaleza. Seu pai fora padre, mas largou a batina para dedicar-se à vida política. José de Alencar estudou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco em São Paulo, onde foi colega de Álvares de Azevedo (1831-1852) e Bernardo Guimarães (1825-1884).

 

Exerceu o jornalismo, a crítica literária e a política. Foi deputado pelo partido conservador e ocupou o cargo de ministro da justiça no gabinete Itaboraí. Defendeu a escravidão. Para os heróis do identitarismo que defendem a censura de Monteiro Lobato e o fogo nas estátuas, é possível que este fato os autorize a deixar de conhecer nosso escritor, sem grandes remorsos.

 

Na literatura, é muito lembrado como o escritor romântico de obras com centralidade na figura do índio. Seria um primeiro movimento literário nacionalista, senão na forma, que ainda se baseava na tradição literária francesa, no conteúdo.

 

Ficaram conhecidos do público as obras indianistas deste nosso escritor: O Guarani (1857), Iracema (1865) e Ubirajara (1874).

 

Na sua crítica à Gonçalves Magalhães, o escritor cearense dizia que a forma literária dos épicos era meio inadequado de retratar a nacionalidade: havia muito pouco tempo desde o fim da colônia e início da constituição da nação para se cogitar uma mitologia brasileira.

 

 

Também não se filiava Alencar à perspectiva dos cronistas que intentaram retratar de forma documental os índios brasileiros. Para o escritor, os índios deveriam ser retratados através do romance.

 

A idealização do bom selvagem, decorrência do pensamento romântico e com referência clara a Jean-Jacques Rousseau, geraria críticas já no tempo de Alencar. Manifestou-se o entendimento de que o autor era um artista de gabinete, que buscava retratar realidades regionais sem nunca tê-las conhecido de perto. Estas críticas tinham sua razão de ser: de fato, nunca se propôs a fazer uma antropologia dos índios brasileiros.

 

Talvez não seja tão conhecida do público sua peça de teatro “O Demônio Familiar” escrita em 1817 e que de certa forma já antecipa alguns temas do movimento abolicionistas, a despeito do nosso escritor cearense ter sido ele próprio do partido conservador e partidário da escravidão.

 

A história se passa no seio familiar do Dr. Eduardo, sua irmã Carlotinha, sua amiga Henriqueta, e outras figuras de uma ascendente burguesia citadina situada no Rio De Janeiro.

 

Carlotinha ama Alfredo, mas é induzida a casar com Azevedo. Henriqueta ama Eduardo, mas tem os seus intentos igualmente frustrados por uma aparente força oculta. Alfredo intenta casar por interesse com Henriqueta, mas deseja Carlotinha. Por de trás dos desencontros amorosos opera Pedro, um escravo doméstico, que lança mão de uma série de artifícios para manipular as relações entre as personagens de acordo com os seus caprichos. Troca as cartas de um para destinatários de outro. Mente e manipula.

 

Pedro neste caso é o próprio Demônio Familiar: tem o desejo íntimo de ascender de escravo doméstico para cocheiro, possibilitando usar belas roupas e transitar pela cidade conduzindo os cavalos e sendo observado por todos. Diante deste desejo, Pedro busca induzir os demais personagens ao casamento dentro dos seus interesses pessoais, puramente pecuniários. No caso, o enlace não dizia respeito às verdadeiras intenções das partes, mas ao que era possivelmente mais conveniente do ponto de vista financeiro ao escravo. Com casamentos bem sucedidos financeiramente, garantiria o seu sonho de ascensão social.

 

É como se Pedro traçasse durante a peça diversos nós com as suas mentiras, quase implicando na desagregação do seio familiar. No último instante da peça, Eduardo desfaz todos estes nós, chamando a atenção dos parentes e dos amigos de que os desencontros não decorrem de um problema pessoal de mal caráter do escravo, mas da própria inconveniência da escravidão, ao menos no seio da família.

 

Na trilha da tradição romântica, o seio familiar “deve ser tão sagrado como um túmulo.”.

 

Mais de 50 anos depois, outro escritor retomaria esta tese, já com um conteúdo inequivocamente abolicionista. No seu “Vítimas Algozes” (1869), Joaquim Manuel de Macedo retoma o tema da influência negativa da escravidão nas famílias proprietárias. Os paralelos entre Pedro do Demônio Familiar e Lucrécia na sua relação com Cândida do Vítimas Algozes são patentes.

 

Crescia a percepção de que a escravidão já envolvia prejuízos culturais e morais muito maiores  do que os seus eventuais proveitos financeiros. Diríamos hoje, com um certo anacronismo, tratar-se de livros “racistas” que defendem a abolição da escravatura menos pela situação de miséria do escravo e mais pelos efeitos desta tragédia na vida dos proprietários, dos brancos.  

 

No final da peça, Eduardo, após descobrir as mentiras do seu escravo, pune-o com a sua liberdade.

 

Diz ao Demônio Familiar, após entregar sua carta de alforria:

 

“EDUARDO - Toma: é a tua carta de liberdade, ela será a tua punição de hoje em diante, porque as tuas faltas recairão unicamente sobre ti; porque a moral e a lei te pedirão uma conta severa de tuas ações. Livre, sentirás a necessidade do trabalho honesto e apreciarás os nobres sentimentos que hoje não compreendes. (Pedro beija-lhe a mão).”.   

sábado, 27 de novembro de 2021

OS "CONTOS AMAZÔNICOS" DE INGLÊS DE SOUSA

 OS "CONTOS AMAZÔNICOS" DE INGLÊS DE SOUSA



 



É naturalmente melancólica a gente da beira do rio. Face a face toda a vida com a natureza grandiosa e solene, mas monótona e triste do Amazonas, isolada e distante da agitação social, concentra-se a alma num apático recolhimento, que se traduz externamente pela tristeza do semblante e pela gravidade do gesto.

O caboclo não ri, sorri apenas; e a sua natureza contemplativa revela-se no olhar fixo e vago em que leem os devaneios íntimos, nascidos da sujeição da inteligência ao mundo objetivo, e dele assoberbada. Os seus pensamentos não se manifestam em palavras por lhes faltar, a esses pobres tapuios, a expressão comunicativa, atrofiada pelo silêncio forçado da solidão.”

 

Nascido em Óbidos, no oeste do Pará, na data de 28/12/1853, Herculano Marcos Inglês de Sousa ainda não é suficientemente conhecido pelo público, especialmente do sul e sudeste do Brasil, sempre tão ignorantes como somos sobre o que se passa na Amazônia.

 

Foi um intelectual, parlamentar e escritor, sendo um dos precursores do naturalismo literário.

 

Há muitos traços comuns entre os tapuias paraenses e os tipo sociais do Maranhão retratados pelo mais conhecido escritor deste corrente literária, Aluísio Azevedo e seu Mulato (1881). A mesma objetividade da narrativa e um então pouco usual enfoque e protagonismo de personagens dos extratos mais baixos da sociedade.

 

No caso de Inglês de Sousa, são os caboclos, os tapuias, os mestiços, os sertanistas ou, como se diziam de si próprios os cabanos, “os brasileiros”.

 

Aos 26 seis anos, o escritor iniciou o curso de Direito no Recife, tendo terminado o bacharelado em 1876 pela Faculdade de São Paulo.

 

Chegou a ser professor e diretor da mesma Faculdade de Direito do Largo São Francisco, até iniciar sua carreira como político. Deputado provincial em São Paulo, deputado geral pelo Pará, foi ainda presidente das províncias de Sergipe e Espírito Santo. Esta condição de homem de governo certamente radicalizaria aquele objetivismo dos naturalistas, fazendo com que algumas de suas narrativas possam ser consideradas fontes históricas da história do Amazonas.

 

Quando do movimento da Cabanagem retratada no conto “O Rebelde”, o escritor vai ao ponto de descrever como aqueles tapuias se vestiam, como se comunicavam, qual era a divisão de tarefas entre os homens e mulheres do bando, e as razões da insurreição: o ódio contra os portugueses e os maçons.

 

“Paulo da Rocha dissertou longamente sobre as causas da cabanagem, a miséria ordinária das populações inferiores, a escravidão dos índios, a crueldade dos brancos, os inqualificáveis abusos que esmagam o pobre tapuio, a longa paciência destes. Disse da sujeição em que traziam os brasileiros, apesar da proclamação da independência do país, que fora um ato puramente político, precisando de seu complemento social. Mostrou que os portugueses continuavam a ser senhores do Pará, dispunham do dinheiro, dos cargos públicos, da maçonaria, de todas as fontes de influência; nem na política, nem no comércio o brasileiro nato podia concorrer com eles. Que enquanto durasse o predomínio despótico do estrangeiro, o negro no sul e o tapuio no norte continuariam vítimas de todas as prepotências, pois que eram brasileiros, e como tais condenados a sustentar com o suor do rosto e a raça dos conquistadores.”.

 

Ainda que neste conto ficam claras as origens populares e os sentimentos de rivalidade e nativismo na cabanagem, o livro não faz proselitismo político: sua objetividade não afasta a análise do drama sob os olhares de um menino, filho de um juiz de paz, que vê sua família ser perseguia e seu pai ser morto não em crueldade por bandos cabanos.

 

Os cabanos matavam velhos, mulheres e crianças, invadiam e saqueavam povoados e, na visão do herói do conto, um veterano da Revolução Pernambucana de 1817, derramava inutilmente o sangue de brasileiros irmãos. Os movimentos populares também tem as suas imperfeições, os seus abusos e injustiças.

 

Além de captar a realidade conforme sua complexidade, sem partidarismo político, as histórias envolvem o folclore, a cultura e a fisionomia psicológica da população da Amazônia.

 

O amazonense tem um semblante triste, contemplativo e gravidade nos gestos. Sua alma é tão fatalista quanto as determinações da natureza que, naquele lugar, assumem a mais absoluta exuberância e radicalidade. No que se refere ao imaginário local, temos contos como A Feiticeira ou Acauã, em que se afirmam histórias e crendices populares, semelhantes às histórias contadas no interior paulista e reproduzidas por Monteiro Lobato.

 

No caso do tapuia do norte, a possibilidade de uma tragédia (natural ou social) imanente parecem fazer com que este povo seja naturalmente mais introspectivo e menos expansivo.

 

O caboclo não ri, apenas sorri, diz Inglês de Sousa.

 

Bibliografia:

“Contos Amazônicos” – Inglês de Sousa – Iba Mendes Editor Digital – www.poeteiro.com  

sábado, 20 de novembro de 2021

A CORTE DE D. JOÃO NO RIO DE JANEIRO

 A CORTE DE D. JOÃO NO RIO DE JANEIRO POR LUIZ EDMUNDO




 

Resenha Livro – “A Corte de D. João no Rio de Janeiro” – Luiz Edmundo – 1º Volume – 2ª Edição – Ed. Conquista.

 

“D. João tinha um tipo vulgar. Era curto, era grosso, a cabeça larga e vermelha, surgindo de um conflito de roscas e papadas.

Quando aqui chegou contava quarenta anos de idade. Parecia, porém, um velho de sessenta; o ventre em bola, desentocando de duas grossíssimas coxas que faziam estalar a seda de seus calções cor de pérola. Ar tímido, gestos amolengados. A marchar, marchava como pensava, devagar. Garante-nos o escritor português Oliveira Martins na sua História de Portugal, que ele era homem de pouco asseio, “de resto, como toda a família”, acrescenta, para dizer, logo depois que, ele, que andava, sempre às turras com a mulher, pensando de modo diverso, contrariando-a, em tudo, na hora do banho, com ela, logo ficava de acordo.”.

  

A transferência da Corte Portuguesa no Brasil, decorrência das Guerras Napoleônicas e de uma estratégia, traçada de forma intempestiva, de salvar a Dinastia dos Bragança, manter a aliança política e militar de Portugal com a Inglaterra e abandonar o território do Reino e sua população aos invasores franceses liderados pelo comandante Junot, teve diversas implicações na história do Brasil.

 

Mais exato seria dizer que a fuga da família Real e a instalação extemporânea  da Monarquia no Brasil traria como benefícios aos brasileiros:

 

1   A elevação do Estado do Brasil à condição de Reino Unido de Portugal e Algavres, criando as condições políticas e jurídicas da independência de 1822;

2-      A abertura dos portos às nações amigas, decisão tomada por D. João VI ainda na Bahia, antes mesmo da sua chegada no Rio de Janeiro onde se instalaria até o fim da Guerra Europeia.

3-      Benefícios de ordem cultural como a vinda da missão artística francesa, a fundação da Academia de Belas Artes, a fundação do Banco do Brasil, a criação de escolas de medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, o Jardim Botânico e as obras de melhoramento urbano no Rio de Janeiro, que receberia de um dia para a noite cerca de 15.000 pessoas da corte portuguesa, na sua maior parte nobres e seus funcionários particulares.

4-      A criação da imprensa Régia em 13 de maio de 1808, dia do aniversário do príncipe regente D. João (1767-1826). Nela foi editado o primeiro jornal da colônia americana chamado a “Gazeta do Rio de Janeiro”.

 

Tão importantes como as condições geopolíticas da Europa que levaram a fuga da Família Real para o Brasil e os seus efeitos políticos, econômicos, sociais e culturais, é conhecer os bastidores desta grande operação, a intervenção não só do Príncipe Regente, mas das pessoas que o influenciavam, das repercussões destes fatos diante dos olhos do povo, ou melhor, dos povos de Brasil e de Portugal.

 

Quando da saída dos Barcos do Tejo em 1807, caia uma chuva triste e monótona e os portugueses tentavam esconder sua completa indignação diante do abandono de suas elites ante o invasor francês:

 

“- Patifes! Cobardes! Súcia! Então o povo é que fica? Nós o que somos? Abandonam-nos como se fossemos cães!

Há punhos no ar e os monitores do Sr. Intendente da Polícia suplicando calma.”.

 

Já a reação do povo brasileiro à chegada da Corte foi o exato oposto:  festas e folganças, clamores e vivas, foguetes e festas verdadeiramente populares com o povo “cantando, berrando, em meio à patuleia tumultuosa”.

 

Neste livro do escritor carioca Luís Edmundo de Melo Pereira da Costa, o que vemos é uma versão verdadeiramente brasileira dos fatos. A narrativa se parece com um romance, ou uma reportagem, tendo como fontes os arquivos históricos da cidade do Rio de Janeiro e as memórias de pessoas da nobreza e da elite política que tiveram contato direto com D. João IV, sua mãe, Maria I a louca, a libertina Carlota Joaquina, e os filhos D. Pedro e D. Miguel.

 

O livro é de fácil leitura e traz informações sobre os detalhes da viagem, o cotidiano do Rei e de sua família no Rio de Janeiro, as festas e cerimônias, dentre elas, a mais relevante: o beija mão, momento em que todos os tipos sociais, ricos e pobres, podiam fazer requerimentos diretos ao grande Rei.

 

Por expressar um ponto de vista brasileiro, e não português, o livro é de certa forma simpático ao D. João IV, retratado como aquela figura já conhecida: meio grotesca, glutão, pusilânime, mas com um bom coração, misericordioso, amante do Brasil, desconfiado, supersticioso, com medos de trovões, amante da comida (especialmente frangos), triste por ser obrigado pelas Cortes de Lisboa a retornar ao Reino.

 

Um Rei sem nenhuma originalidade ou ideias políticas próprias, levado a tomar decisões pelas pressões e forças dos acontecimentos. Mas, um monarca que não inspirava medo nos seu súditos, mas franca simpatia.  

 

SOBRE O AUTOR

 

Luís Edmundo foi jornalista, poeta, cronista, memorialista, teatrólogo e historiador. Nasceu no Rio de Janeiro, RJ, em 26 de junho de 1878, e faleceu na mesma cidade em 8 de dezembro de 1961. Era definitivamente apaixonado por sua cidade, dedicando boa parte do seu trabalho na pesquisa e publicações de crônicas sobre a cidade. Voltou seu interesse para o século XVIII e imaginou um vasto painel do Rio de Janeiro no tempo dos Vice-reis. Foi a Portugal, pesquisou em arquivos, bibliotecas e conventos de província, depois à Espanha, reunindo material, inclusive iconográfico, para as obras que iria escrever.

 

 

domingo, 14 de novembro de 2021

SOBRE O ROMANCE “PHILOMENA BORGES” DE ALUÍSIO AZEVEDO

 SOBRE O ROMANCE “PHILOMENA BORGES” DE ALUÍSIO AZEVEDO

 




Aluísio Azevedo é inequivocamente o maior expoente do naturalismo literário no Brasil.

 

 

Esta etapa da evolução histórica da literatura acentuou um sentido geral de objetividade que advinha já da 3ª Fase do Romantismo e do Realismo. No caso do naturalismo, a objetividade ganha contornos de cientificidade, havendo mesmo uma proposta de fusão entre a arte e a ciência. Enquanto na escola romântica, a salvação humana está no retorno do homem ao seu estado natural, no Naturalismo, a salvação dá-se em torno da explicação científica do mundo, mediante a descrição empírica dos fenômenos sociais. Não raramente, fatos sociais se equivalem aos fatos da natureza, revestidos da mesma fatalidade.

 

Este tipo de arte suscita evidentes fontes históricas para o leitor dos dias de hoje. A descrição do Cortiço no mais famoso romance de Aluísio Azevedo possibilita um contato direto com a realidade do subúrbio do Rio de Janeiro do século XIX, descrevendo os tipos populares, como o taverneiro português João Romão, a quintandeira Bertoleza ou a mulata sensual Rita Baiana.

 

É certo, contudo, que este protagonismo dos tipos populares ainda é parcial neste romance, publicado em 1890. O grande protagonista d’o Cortiço é o próprio espaço territorial, que se apresenta ao leitor como um organismo social, com uma vida própria, tendo, ironicamente, os personagens o caráter mais paisagístico. A comparação com um formigueiro, dentro da perspectiva naturalista, não seria de todo errada.

 

Além disso, os personagens do Cortiço são retratados de uma maneira caricatural, havendo um evidente diálogo entre a escrita de Azevedo e o seu trabalho anterior como chargista de jornal. A sátira e a comédia dão o tom do pouco conhecido romance “Philomena Borges”.

 

“Philomena Borges”

 

“Estranha existência a dessas duas criaturas que a natureza fez tão diversas, tão contrárias, mas que o acaso laçou no mesmo destino, abraçadas a uma só onda, sofrendo e gozando promiscuamente, sem nunca poderem determinar onde principiava a dor, onde terminava o gozo.

A mesma cousa, que a um fazia padecer, dava ao outro transportes de alegria. Daí esse equilíbrio da lágrima e do riso, que era a fonte de toda a sua coragem e de toda a sua força. Não podia sucumbir nunca, porque um deles estava sempre de pé para amparar o companheiro, quando este por ventura vacilasse.”.

 

“Philomena Borges” é um livro menos conhecido do nosso escritor naturalista, cujo estilo está mais próximo da sátira e das caricaturas, do que dos projetos literários inequivocamente naturalistas. Trata-se de uma comédia divulgada em Folhetim na “Gazeta de Notícias” no começo do ano de 1884.

 

A história descreve a vida de um casal improvável pela completa oposição de personalidades: de um lado Borges, um quarentão pacato, até mesmo cândido, todo ele dedicado ao trabalho como mestre de obras, à rotina e à avareza. Já Philomena, filha de um Conselheiro de Estado que, antes de morrer, gastara toda a fortuna da família “no jogo e nas confeitarias”, desde pequena herdaria uma tendência à ambição pelas grandes realizações, uma altivez aristocrática, um gosto estético refinado, tudo em oposição ao pragmatismo burguês de seu marido.

 

Esta oposição de gênios, no início do romance, leva o leitor erroneamente à ideia de que o casamento redundaria num fracasso: mas esta oposição leva gradualmente as partes a um amor verdadeiro, que é colocado à prova diante de momentos de riqueza e miséria, como quando o casal, fugindo de credores, chega ao limite da fome, na província de São Paulo.

 

Philomena Borges, no primeiro dia do casamento, fecha-se no quarto onde se dariam as primeiras núpcias e mantém desde então uma atitude de reserva em relação ao marido, que teria de provar ser digno de seu amor. A dedicação do marido, o “João Touro” levava-o ao cômico de aprender, aos quarenta anos, a dançar, a encenar peças de teatro ou até mesmo experimentar pela primeira vez o charuto, abandonando o hábito do rapé.

 

A bela Philomena, por outro lado, prova o seu amor ao Borges acompanhando-o nos momentos de dificuldade financeira, recusando todos os cortejos, e sempre incentivando o marido aos mais altos voos: de capitalista à bancarrota comercial, de ator de circo à diretor de  representações teatrais na Europa, de Barão à Visconde de Itassu, de conselheiro de D. Pedro II à, finalmente, derrotado pelo Partido Conservador. É o final do livro, em 1878, quando o João Touro, finalmente se vê livre da política (que ele odeia) e retorna a sua querida Paquetá. Infelizmente, sua derrota na política implicaria, para Philomena, o fim das ilusões em torno das suas próprias ambições e sonhos grandiloquentes, representada por sua morte.

 

A história de temperamentos tão diferentes que, num primeiro momento parece improvável e com o tempo, convence e comove o leitor acerca do enlace, também seria retratado em outro romance pouco conhecido do nosso escritor maranhense, o “Coruja”, cuja resenha, remetemos o nosso leitor: http://esperandopaulo.blogspot.com/2019/05/o-coruja-aluisio-azevedo.html