“O Mulato” de Aluísio Azevedo
Resenha Livro – “O Mulato” – Aluísio Azevedo – Iba Mendas Editor
Digital
“- Mulato!
Esta palavra explicava-lhe agora todos os mesquinhos escrúpulos que
a sociedade do maranhão usara com ele. Explicava tudo: a frieza de certas
famílias a quem visitara; a conversa cortada no momento em que Raimundo se
aproximava; as reticências dos que lhes falavam sobre seus antepassados; a
reserva e a cautela dos que, em sua presença, discutiam questões de raça e
sangue; a razão pela qual D. Amância lhe oferecera um espelho e lhe dissera: “Ora
mire-se!” a razão pela qual, diante dele, chamavam de menino aos moleques da
rua. Aquela simples palavra dava-lhe tudo o que ele até aí desejara e
negava-lhe tudo ao mesmo tempo, aquela palavra maldita dissolvia as suas
dúvidas, justificava o seu passado; mas retirava-lhe a esperança de ser feliz,
arrancava-lhe a pátria e a futura família; aquela palavra dizia-lhe
brutalmente: “Aqui, desgraçado, nesta miserável terra em que nasceste, só
poderás amar uma negra da sua laia! Tua mãe, lembra-te bem, foi escravo! E tu
também o foste!”
Aluísio Tancredo Gonçalves Azevedo nasceu em 14 de abril de 1857 na
cidade de São Luís do Maranhão.
Era filho de um vice-cônsul Português, sendo certo que o próprio
escritor futuramente abandonaria a literatura aos 38 anos, para virar diplomata,
tendo servido na Espanha, Inglaterra, Itália, Japão, Paraguai e Argentina.
O nosso escritor, quando criança, não era exatamente de família nobre e
abastada, mas certamente nunca passou por privações materiais.
No ano de 1871 Aluísio se matriculou no Liceu Maranhense à época
dirigido pelo professor Francisco Sotero. No mesmo ano começou a ter aulas de
pintura com o artista italiano Domingos Tribuzzi.
Da pintura, passaria à caricaturista, sendo certo que a sua literatura
teria alguma influência decorrente e manteria interfaces com suas charges: seja
a proposta de uma narrativa objetiva que retratasse a realidade tal como ela é,
seja na criação de tipos sociais com uma intencionalidade de promover crítica
social e até mesmo humor.
“O Mulato” foi o segundo livro publicado pelo escritor Maranhense,
lançado no ano de 1881, mesmo ano, diga-se de passagem, da publicação de
Memórias Póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis.
O romance em análise não guardaria a mais pálida semelhança com o
primeiro trabalho do autor, chamado “Uma Lágrima de Mulher” (1880).
O primeiro livro ainda se pode caracterizar como romance folhetinesco,
todo ele se situando inclusive na Itália, sem referências nacionais. Já o
segundo romance é tido por muitos como a primeira obra naturalista produzida no
país, o que é discutível desde que o menos conhecido Inglês de Souza com sua
proposta de literatura amazônica, já produzia livros naturalistas cerca de uma
década antes d’o Mulato.
Boa parte da crítica literária, capitaneada por Antônio Cândido,
buscam dividir a obra de Aluísio de Azevedo entre os trabalhos propriamente
naturalistas, que seriam os que alcançariam maior expressão e importância literária
e outras obras de menor relevância, de tipo romântico, folhetinesco e mais
comerciais.
Dentre as ditas “grandes obras” do nosso escritor temos “O Mulato”
(1881), “Casa de Pesão” (1883) e “O Cortiço” (1890), este último considerado o
melhor livro de Aluísio Azevedo.
Contudo, da leitura de livros “Philomena Borges” (1884) e
especialmente “O Coruja” (1890), chega-se à conclusão que estas obras não
merecem a caracterização de livros superficiais. Inclusive, nestes trabalhos
menos conhecidos verificamos a verve humorística cuja influência, como dito,
decorre do trabalho anterior do caricaturista de jornal.
Há uma opinião de que as variações dos seus romances entre propostas
experimentais naturalistas e romances de folhetim mais apetecidos ao público
geral decorriam da necessidade financeira: Aluísio de Azevedo foi um dos primeiros
escritores que efetivamente viviam e subsistiam da venda dos seus livros.
E como se caracteriza o naturalismo literário?
Pode ser caracterizado como uma ramificação do realismo, radicalizando
a proposta da objetividade ao ponto de relacionar personagens e situações com as
correntes cientificistas em voga no final do século XIX: o determinismo com sua
noção de que o ser humano está fadado a
ter suas ações condicionadas pelas características biológicas e ao meio social
em que vive; e o evolucionismo e a proposta da literatura como uma atividade
experimental.
Conforme um dos criadores desta corrente literária, Émile Zola, mencionada
no seu livro “O Romance Experimental” (1870), o escritor deve estar antes de
tudo a serviço da realidade, só levando para seus escritos impressões coletadas
do seu cotidiano e, portanto, legitimamente reais.
Diante destas premissas, a produção literária de Aluísio de Azevedo
decanta aspectos da vida social, cultural e política do Brasil de fins do II
Império.
No romance “O Mulato”, vemos temas candentes do período histórico como
a abolição da escravatura, o papel da igreja na política e na sociedade, o republicanismo
e o ideário de um pensamento laico, expresso no cosmopolitismo do protagonista
do romance, Raimundo.
Raimundo é filho do português José Dias, um contrabandista de escravos
português, com uma escrava chamada Domingas. Filho ilegítimo, portanto, que foi
alforriado logo ao nascer e, aos 5 anos encaminhado à Portugal para estudar
Direto, após a morte de seu pai.
Passados alguns anos, já adulto, o mulato volta à sua terra natal onde
é recepcionado pelo seu tio Manuel, e fica no Maranhão com a finalidade de
transacionar velhas terras herdadas de seu pai.
A reação da sociedade maranhense, o seu provincianismo, o maldizer e o
atraso cultural de uma cidade contraditoriamente denominada “atenas brasileira”
são o pano de fundo do enredo.
“A novidade foi logo comentada. Os portugueses vinham, com suas
grandes barrigas, às portas dos armazéns de secos e molhados; os barraqueiros
espiavam por cima dos óculos de tartaruga; os pretos cargueiros paravam para
mirar o “cara-nova”. (...) Outros afiançavam que Raimundo era sócio capitalista
da casa de Manuel. Discutiam-lhe a roupa, a cor e os cabelos. O Luisinho Língua
de Prata afirmava que ele “tinha casta”.
Hospedado na casa de seu tio Manuel, Raimundo se apaixona por sua
prima Ana Rosa. Contudo, o casamento não é admitido pelo pai por considerações
puramente raciais. A tentativa de rapto de Ana Rosa por Raimundo acarretaria a
morte trágica do Mulato, que foi executado por um pretendente que efetivamente se
casaria com a filha de Manuel.
Seria, contudo, reducionismo dizer que a obra é um mero panfleto
político em torno de teses progressistas daquele tempo: o pensamento laico e o
abolicionismo.
Diante das premissas naturalistas, a história envolve uma certa
fatalidade do personagem que, por sua origem e sua raça, tem a sua felicidade
inviabilizada. Não se trata tanto de uma denúncia de uma sociedade que se pauta
pelo preconceito de cor, mas da constatação de contradições de uma sociedade tardiamente
escravocrata.
Por exemplo, temos a personagem Mônica, negra que cuida de Ana Rosa
desde menina, que por sua vez lhe devota afeto de uma mãe. Também é certo que
no Brasil, desde o início de sua ocupação territorial, predominou a mestiçagem,
de modo que a oposição entre brancos e pretos não encontra no Brasil a mais
remota semelhança com a experiência bi racial dos EUA. O mulato é desmerecido
antes de tudo por sua origem de escravo e não pelo seu fenótipo.
É interessante frisar que O Mulato foi publicado em um contexto de
acirrada polêmica nos jornais maranhenses entre jovens que postulam um pensamento
laico e modernizador contra o conservadorismo dos membros e apoiadores da
Igreja católica. Aluísio de Azevedo tomou parte nesta querela jornalística e
este livro não envolve, como frequentemente se supõe, uma simples denúncia do
racismo do povo brasileiro, mas a crítica do provincianismo do Maranhão, com
grande parte de culpa pela intervenção de padres se, conduta ilibada, e, não
menos importante, do instituto da escravidão.
Raimundo não é rejeitado apenas pelo tom de sua pele, mas principalmente por ser
filho de escravo e ter sido alforriado na pia de batismo.
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