terça-feira, 16 de março de 2021

Breves notas sobre Responsabilidade Extracontratual do Estado

 Breves notas sobre Responsabilidade Extracontratual do Estado


 



É possível que familiares de um detento ingressem com ação de reparação por danos morais em face do Estado no caso de o preso ser assassinado nas dependências do presídio? É necessário que estes familiares comprovem o dolo ou a negligência do Estado para fim de obtenção da indenização? O Estado teria o direito de ingressar com uma ação regressiva em face do agente público responsável por um dano em face do particular? É possível ingressar com uma ação reparatória em face do Estado por omissão no cumprimento de um dever legal? Estas são apenas algumas das muitas questões relacionadas ao tema da responsabilidade extracontratual do Estado.

 

Pode-se conceituar a responsabilidade extracontratual do Estado como “a obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis ao agente público”. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Direito Administrativo”. Ed. Forense. 33ª Edição).

 

O tema é regido predominantemente pelo Direito Administrativo. Ao contrário do direito privado, em que a responsabilidade civil exige sempre um ato ilícito (contrário à lei), no direito administrativo a responsabilidade pode decorrer de atos ou comportamentos que, embora lícitos, causem a pessoas determinadas ônus maior do que o imposto aos demais membros da coletividade.

 

Um exemplo: suponha-se que a prefeitura promove uma obra pública com a construção de um viaduto, beneficiando a coletividade, na medida em que a abertura de novas vias reduzirá o trânsito local. Contudo, as obras implicarão na interdição de uma rua onde se localiza um estacionamento de carros, inviabilizando, pelo prazo de 12 (meses), que eventuais clientes se dirijam ao estabelecimento, implicando em inequívocos prejuízos à empresa. Não seria justo que um único particular arcasse com a totalidade dos prejuízos decorrentes de uma obra pública destinada aos interesses comuns. Neste exemplo, um ato lícito da administração pública poderá engendrar a responsabilidade extracontratual do Estado, com o pagamento de indenização por danos materiais em benefício do particular prejudicado.  

 

Houve uma evolução histórica da teoria da responsabilidade estatal, até o estabelecimento da responsabilidade civil objetiva do Estado, consubstanciada no artigo 37 § 6º da CF/88.

 

No contexto das monarquias absolutistas vigorava a noção de total irresponsabilidade do Estado, sob o princípio de que “o rei não pode errar” (“the king can do no wrong”; “ler oi ne peut mal faire”). Primeiras alterações nas legislações reconhecendo a responsabilidade civil subjetiva do Estado foram estabelecidas nos EUA pelo Federal Tort Claim Act (1946) e na Inglaterra com o Crown Proceeding Act (1947).

 

Nesta primeira etapa, algumas teorias civilistas estabeleciam uma diferenciação entre os atos de império e os atos de gestão. Admitia-se a responsabilidade apenas nos atos de gestão, afastando-se a responsabilidade dos atos de impérios, estes últimos gozando de soberania. O artigo 15 do Código Civil Brasileiro de 1916 retrata esta etapa civilista da responsabilidade extracontratual do estado:

 

CC/16 - Lei nº 3.071 de 01 de Janeiro de 1916 - Art. 15. As pessoas jurídicas de direito público são civilmente responsáveis por atos dos seus representantes que nessa qualidade causem danos a terceiros, procedendo de modo contrário ao direito ou faltando a dever prescrito por lei, salvo o direito regressivo contra os causadores do dano.

 

Hoje as teorias civilistas foram definitivamente superadas pelas teorias publicistas. Quando uma pessoa sofre um ônus maior do que o suportado pelas demais, rompe-se o equilíbrio que necessariamente deve haver entre os encargos sociais; para reestabelecer esse equilíbrio, o Estado deve indenizar o prejudicado, independentemente da demonstração de dolo ou culpa, utilizando-se os recursos do erário.

 

Vigora no país a teoria da responsabilidade extracontratual objetiva do estado.   

 

É objetiva justamente por prescindir de apreciação dos elementos subjetivos da conduta do agente público (dolo ou culpa).

 

Fala-se também em teoria do risco porque parte da ideia de que a atuação estatal envolve um risco de dano, que lhe é inerente.

 

Em regra, a responsabilidade extracontratual pode ser excluída ou atenuada. Pode ser excluída por força maior, culpa da vítima e culpa de terceiros. Nestas situações, rompe-se o nexo-causal já que a conduta ou omissão do agente público deixa de ser a causa do dano.

 

Ademais, fala-se em atenuante da responsabilidade extracontratual no caso de culpa concorrente da vítima.

 

Há ainda situações excepcionais em que se fala em Risco Integral da atividade administrativa e em que não existe sequer a possibilidade de se discutir atenuação e exclusão da responsabilidade extracontratual. É o que ocorre nos casos de danos causados por acidentes nucleares (artigo 21, XXIII, d, CF/88), disciplinados pela Lei 6.453/77; e também na hipótese de danos decorrentes de atos terroristas, atos de guerra ou eventos correlatos, contra aeronaves de empresas aéreas brasileiras, nos termos das Leis 10.309/01 e 10.744/03.

 

Bibliografia:

 

DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. “Direito Administrativo”. Ed. Forense. 33ª Edição

 

Quadro – “Estudo Para Frei Caneca” – Antônio Parreiras - Óleo sobre tela - 1918

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Breves Notas Introdutórias Sobre o Direito Tributário Brasileiro

 Breves Notas Introdutórias Sobre o Direito Tributário Brasileiro




 

O Direito Tributário é um ramo do direito público que se ocupa da arrecadação de recursos com os quais o Estado atende suas despesas, como pagamento da remuneração dos seus servidores e a prestação de serviços públicos. Trata-se de um conjunto de regras e princípios que orientam a atividade financeira do Estado, com reflexos na economia, nas instituições políticas e na vida dos cidadãos.

 

O Direito Tributário tem como objeto central a conceituação das modalidades tributárias – o tributo é o gênero que admite como espécies os impostos, as taxas, as contribuições de melhoria, os empréstimos compulsórios e as contribuições (sociais, profissionais ou corporativas).

 

O Direito Tributário cuida da instituição, da arrecadação e da fiscalização das várias espécies tributárias. Já a justificação da tributação e a discussão da justiça tributária são temas afetos à Ciência das Finanças e ao Direito Financeiro.

 

 

O Direito Tributário tem interfaces com todos os ramos do direito, nitidamente com o Direito Constitucional, o Direito Administrativo, o Direito Civil e o Direito Processual Civil.

 

As normas de Direito Tributário são de natureza cogente. Prevalecem os princípios da primazia e da indisponibilidade do interesse público.  

 

Há um princípio oriundo do direito romano, aplicável ao Direito Tributário, segundo o qual a origem dos recursos é irrelevante para a tributação da renda. Consta que o Imperador Vespasiano  (século I d.C) foi censurado pelo seu filho Tito, porque cobrava tributos pelo uso de urinóis em Roma, capital do Império. Irritado com a insolência do filho, o imperador mostrou-lhe algumas moedas, dizendo que o dinheiro não cheira, ou “pecúnia non olet”. Desse modo não havia razão para deixar de cobrar o tributo pelo uso do urinou. O princípio mantém vigência até o hoje, inclusive no sistema jurídico brasileiro.

 

A tutela legislativa da tributação dos atos ilícitos encontra-se na própria Constituição Federal, mormente nos Princípios da Isonomia Tributária (art. 150, II, da CF/88) e da Capacidade Contributiva (art. 145, § 1º, CF/88), bem como na legislação ordinária, particularmente nos artigos 118 e 126, do Código Tributário Nacional-CTN (Lei 5.172/66).

 

O artigo 118, do Código Tributário Nacional, consigna:

 

"A definição legal do fato gerador é interpretada abstraindo-se:

I- da validade jurídica dos atos efetivamente praticados pelos contribuintes, responsáveis, ou terceiros, bem como da natureza do seu objeto ou dos seus efeitos; II- dos efeitos dos fatos efetivamente ocorridos."

 

Assim, praticado o ato jurídico ou celebrado o negócio que a lei tributária prescreve como fato gerador, está nascido a obrigação para com o fisco. Esta obrigação subsiste independentemente da validade ou invalidade, nulidade ou anulabilidade do ato. “Pecúnia non olet”.

 

Outro princípio característico do Direito Tributário é o da igualdade ou isonomia, segundo o qual se veda o tratamento desigual de contribuintes que se encontrem em situação equivalente.

 

Os tributos devem ser graduados de acordo com a capacidade econômica do cidadão.

 

 

Neste sentido, a CF/88 igualmente dispõe que os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente, conferir efetividade a esses objetivos e identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.

 

Bibliografia

 

GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. “Resumo de Direito Tributário”. Ed. Jhmizuno - Leme-SP.

 

Quadro – “Estudo Para Frei Caneca” – Antônio Parreiras - Óleo sobre tela - 1918

sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

“Pensamento Social Brasileiro: de Raul Pompeia a Caio Prado Júnior” – Ricardo Luiz de Souza

 “Pensamento Social Brasileiro: de Raul Pompeia a Caio Prado Júnior” – Ricardo Luiz de Souza




 

Resenha Livro - “Pensamento Social Brasileiro: de Raul Pompeia a Caio Prado Júnior” – Ricardo Luiz de Souza – Editora UFU

 

“O conjunto de autores a ser analisado nas páginas seguintes – Raul Pompeia, Olavo Bilac, Lima Barreto, Couto de Magalhães, Roquette Pinto, Nina Rodrigues, Manoel Querino, Roger Batisde, Caio Prado Júnior – é deliberadamente heterogêneo, pois abrange poetas, romancistas, antropólogos, historiadores, entre outros. Trato da obra de diversos intelectuais que viveram e escreveram em um período que abrange, em linhas gerais, as últimas décadas do século XIX e a primeira metade do século XX, embora Batisde e Caio Prado tenham produzido, também, nas décadas seguintes, principalmente Batisde. Estudo, portanto, nove autores que – embora já tenham sido alvo de estudos específicos – nunca foram estudados em conjunto em uma obra especialmente dedicada a eles, o que permite uma análise comparativa e diferenciada de cada um.”.

 

Uma primeira obra, pioneira, do estudo da história das ideais políticas e sociais do Brasil é o livro do jurista e professor de direito da antiga Escola de Recife, Nelson Saldanha.

 

O seu  “História das Ideias Políticas no Brasil”, publicado em 1968, abrange a história das ideias políticas desde o Brasil Colônia até a etapa ligada ao pensamento desenvolvimentista, durante o governo JK (1956-1961). O problema, difícil de ser contornado, é que a história das ideias políticas acabam necessariamente estando diretamente associadas com as instituições políticas vigentes.

 

Ao se falar de ideias políticas, deve-se levar em conta que as mesmas são condicionadas por instituições e determinadas em última análise pelas realidades sócio-econômicas. Assim, chega a ser mesmo difícil de se cogitar das ideias políticas brasileiras nos 300 primeiros anos de colônia. A imprensa, por exemplo, só surgiria em 1808 com a vinda da família real ao Brasil. Não havia escolas e o ensino era de tipo doutrinário e religioso, levado a cabo pelos jesuítas. O analfabetismo não era só a realidade de índios e negros, mas mesmo dos senhores de engenho. Neste passado remoto, o que havia de ideias políticas não podia deixar de estar dissociadas das instituições – o Estado Português, as Ordenações do Reino, as Câmaras Municipais.

 

Assim, a história das ideias políticas de Nelson Saldanha corresponde à história das instituições políticas brasileiras, das constituições, dos ato oficiais emanados do estado, e, frise-se, também de revoltas e rebeliões que de certa maneira se apropriaram de ideias liberais, republicanas ou federalistas, como uma linguagem para promover agitações pela independência, por direitos de nacionalidade, pelo fim da escravidão ou pela república.

 

Já o trabalho de Ricardo Luiz de Souza se volta não tanto para as ideias políticas mas para o pensamento social brasileiro: analisando artistas, jornalistas e intelectuais que pensaram o Brasil entre os fins do XIX e meados do XX, o leitor terá acesso a diferentes propostas de interpretação do país e da identidade nacional, diferentes opiniões sobre o problema racial, sobre a questão do negro e do índio, bem como da mestiçagem, sobre o problema do passado colonial e a forma como a herança colonial atribui um certo sentido ao nosso desenvolvimento histórico.

 

“O acentuado grau de concentração da propriedade fundiária que caracteriza a generalidade da estrutura agrária brasileira é reflexo da natureza de nossa economia, tal como resulta da formação do país desde os primórdios da colonização, e como se perpetuou, em linhas gerais e fundamentais, até os nossos dias.”. (PRADO JR., Caio. 1979).

 

Uma boa parcela dos autores escolhidos por Ricardo Luiz de Souza como representativos do pensamento social brasileiro irão pensar especificamente a questão do negro na sociedade brasileira.

 

Nina Rodrigues, ele próprio um mulato, foi professor de medicina legal na Faculdade de Medicina da Bahia de 1891/1906, e está fortemente influenciado pelo evolucionismo e pelo determinismo racial. Hoje suas ideias estão em completo desuso, mas foi amplamente reconhecido em seu tempo.

 

Claramente, Nina Rodrigues entende, como era comum na sua época, que a raça negra é inferior à branca, chegando mesmo a sugerir a inimputabilidade criminal do preto e a adoção de um código penal específico para pessoas desta raça.

 

Por outro lado, Nina Rodrigues, efetuou uma apaixonada e pioneira defesa dos pacientes portadores de doenças mentais: “a experiência nos mostra que os alienados entre nós precisam de garantias contra todos; contra famílias e particulares que os queiram explorar, contra os próprios poderes públicos que os submetem a tratamentos desumanos”.

 

Nina Rodrigues elabora igualmente uma contundente crítica ao Código Penal Republicano de 1981, questionando a igualdade de direitos e obrigações fundada no direito clássico, que seria somente possível num meio social (e também racial) homogêneo, o que não se verifica no Brasil.

 

Roger Batisde, posteriormente, viria a desenvolver uma teoria social muito mas refinada e acurada sobre o problema racial no Brasil.

 

“Ao mesmo tempo ele (Batisde) define como problemática a inserção do negro – do escravo primeiro, do liberto, depois – nesta sociedade, estudando-a a partir de diferentes prismas. A situação de inferioridade e discriminação na qual o negro foi colocado teria sido introjetada por ele, gerando uma autoimagem negativa. Batisde (1983, p. 143) assinala então, a existência de um “sentimento de inferioridade, que rói o negro”, e acrescenta: “É verdade que, quando se vê que nada vale esse servilismo, revolta-se e é por isso que dissemos que há uma ambivalência nas representações que o preto faz da sua própria cor: dissimula-a e exalta-a ao mesmo tempo”.

 

Contudo, o antropólogo francês, radicado no Brasil, ainda reproduz teses de uma historiografia tradicionalista segunda a qual a escravidão no Brasil teria sido um regime mais brando, ao menos se comparado ao regime escravista em países protestantes, como os EUA[1].

 

Batisde reconhece inclusive a validade da expressão “democracia racial”, mostrando uma filiação ao pensamento de Gilberto Freire. Neste sentido, uma sugestão ao autor deste “Pensamento Social Brasileira” é a de que numa nova edição deste livro, acrescente um capítulo específico de Florestan Fernandes, trabalhando a forma como o sociólogo tratou do problema do negro, com a perspectiva que Emília Viotti denominou de “revisionismo histórico paulista” das teses da democracia racial no Brasil.

 

* Quadro de Françoise Biard - Deux indiens dans un canoë / Deux indiens en pirogue - Séc. XIX - Brasil 



[1] Até mesmo o historiador marxista Caio Prado Júnior de certa forma “capitula”, endossando discretamente esta tese: “Constitui-se assim no grande domínio um conjunto de relações diferentes das de simples propriedade escravista e exploração econômica. Relações mais amenas, mais humanas, que envolvem toda sorte de sentimentos afetivos. E se de um lado estas novas relações abrandam e atenuam o poder absoluto e o rigor da autoridade do proprietário, doutro lado elas a reforçam, porque a tornam mais consentida e aceita por todas”. (PRADO JR., Caio. 1976, p. 289).

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

“Da Monarquia à República” – Emília Viotti da Costa

 “Da Monarquia à República” – Emília Viotti da Costa




 

Resenha Livro - “Da Monarquia à República” – Emília Viotti da Costa – Ed. Unesp – 6ª Edição.

  

“A despeito das transformações ocorridas entre 1822 e 1889, as estruturas socioeconômicas da sociedade brasileira não se alteraram profundamente, nesse período, de modo a provocar conflitos sociais mais amplos. O sistema de clientela e patronagem que permeava toda a sociedade minimizou as tensões de raça e de classe. O resultado desse processo de desenvolvimento foi a perpetuação de valores tradicionais elitistas, antidemocráticos e autoritários, bem como a sobrevivência de estruturas de mando que implicaram a marginalização de amplos setores da população. (...). Reunimos neste volume ensaios escritos em diferentes momentos sobre temas vários relativos à história do Brasil. Nasceram eles de uma preocupação que lhes dá unidade: a de entender a fraqueza das instituições democráticas e da ideologia liberal, assim como a marginalização política, econômica e cultural de amplos setores da população brasileira, problemas básicos do Brasil contemporâneo.”.   

 

Emília Viotti da Costa é natural de São Paulo, formada pela Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da USP e livre docente da mesma instituição até 1969 quando foi aposentada pelo Ato Institucional n. 5. 


Lecionou posteriormente em universidades nos EUA. Este livro, que na verdade corresponde a um conjunto de artigos redigidos em momentos diferentes, foi dedicado pela historiadora a Florestan Fernandes, “sem cujo estímulo este livro jamais seria publicado”. 


Seria o caso de situar o trabalho de Viotti da Costa dentro de um grupo maior de historiadores “revisionistas” que buscaram quebrar alguns mitos história do Brasil, especialmente quanto aos temas da escravidão, do abolicionismo e das relações raciais no Brasil. Do grupo fazem parte Otavio Ianni, Floresan Fenandes, além da própria Emília: eles questionam ideias como as da democracia racial, da brandura dos nossos senhores de engenho em relação ao  elemento negro, da harmonia das raças consubstanciadas na figura do mulato, de narrativas que buscam atribuir aspectos simpáticos à tradição patriarcal e ao escravismo. Uma historiografia que inequivocamente encontra sua expressão máxima no Casa Grande e Senzala (1933) de Gilberto Freire. 


Em sentido contrário, uma nova geração de pensadores que buscavam aproximar a história das ciências sociais, argumentava que “os mitos dominantes numa sociedade eram sempre aqueles que ajudariam a manter a predominante estrutura de interesses econômico-comerciais e de convenções sociais”, nas palavras de Otávio Ianni.

 

Esta geração se situa num momento de transformações do pensamento social brasileiro, especialmente com o advento de novas escolas de ciências sociais no país:

 

“Os revisionistas eram produtos da Universidade de São Paulo e de outras instituições análogas, que tinham sido criadas nos anos 30 com a finalidade de formar a nova elite de profissionais e burocratas relativamente independentes das oligarquias tradicionais. Muitos dos cientistas sociais treinados nessas novas instituições tinham saído da classe média e alguns poucos de famílias da classe inferior. Alguns eram mulatos, mas não sentiam o mesmo embaraço de Machado quando falavam a respeito de suas origens modestas. Não dependiam do tradicional sistema de clientela e patronato. Adquiriram seu status mediante sua afiliação com as novas instituições. Sua audiência também era diferente. Como parte do processo de criação de uma nova elite cultural, o ensino universitário tinha sido democratizado. Cursos noturnos iniciaram-se em 1946, imediatamente após a queda de Vargas. Os novos estudantes, como seus professores, representavam um novo estrato social e também estavam prontos para participar da crítica aos mitos tradicionais”.

 

O acerto de contas com as tradições intelectuais do passado, com a história oficial, que apenas enuncia os grandes eventos em sequencia cronológica, bem como o combate a alguns mitos (como o da democracia racial) perpassam os artigos da historiadora reunidas neste volume. 


Por exemplo, quanto ao tema do advento da República no Brasil. Os dois últimos capítulos do livro, “Sobre as origens da República” e “A proclamação da república”, discutem exaustivamente a forma como a historiografia tradicional buscou explicar o 15 de Novembro.  


A maior parte da historiografia consolidada sobre o fim do império e o advento da república se baseia na interpretação partidária da crônica da época, ora pró ora contra a República. Monarquistas como Oliveira Vianna, Eduardo Prado e Visconde de Taunay e republicanos como Felício Buarque e Silva Jardim, acabaram sendo as fontes prioritárias com que os historiadores buscaram explicações para o fim do II Império, deixando de lado as transformações econômico e sociais, o desenvolvimento de ferrovias, da navegação a vapor, a introdução de novas técnicas de produção na agricultura, o esboço ou primeiros passos de um capitalismo industrial, a crise do sistema escravista, a imigração, a diversificação da economia, o aumento da população de 3 milhões (1822) para 14 milhões (1880), a urbanização,  a organização de instituições de crédito, estabelecimentos industriais: tudo a sugerir que a instituições políticas do Império não mais acompanhavam as transformações econômico e sociais que se processaram durante a segunda metade do século XIX, com novas aspirações e novos conflitos sociais em cena. 


Neste ponto, a historiadora chama atenção para o fato de que historiadores marxistas como Nelson Werneck Sodré, Leôncio Basbaum e Caio Prado Júnior acabaram sendo pioneiros na busca de explicações sobre o fim do II Império através dos sentidos materiais do processo histórico, da inadequação do regime político diante das transformações sociais e econômicas, indo além das múltiplas narrativas criadas pelos personagens do momento.

 

Após a democratização a professora recebeu em 1999 o título de professora emérita da USP. Emília Viotti da Costa faleceu em 2 de novembro de 2017, aos 89 anos, de em São Paulo.  

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

ESCRITOS DE JUVENTUDE DE VLADÍMIR ILICH LÊNIN – 1898 / 1905

 ESCRITOS DE JUVENTUDE DE VLADÍMIR ILICH LÊNIN – 1898 / 1905




 

“A social-democracia Russa é ainda muito nova. Está apenas emergindo de seu estado embrionário no qual as questões teóricas predominaram. Está somente começando a desenvolver sua atividade prática. (...) A Social-democracia Russa ainda está defrontada com um enorme, quase intocado campo de trabalho. O despertar da classe trabalhadora russa, seu despertar espontâneo para o conhecimento, a organização, o socialismo, para a luta contra seus exploradores e opressores se tornou mais disseminada, mais fortemente aparente a cada dia. O enorme progresso feito pelo capitalismo russo nos últimos tempos é uma garantia de que o movimento da classe trabalhadora vai crescer ininterruptamente em largura e profundidade. Aparentemente estamos passando pelo período do ciclo capitalista quando a indústria está “prosperando”, quando os negócios estão vivos, quando as fábricas estão trabalhando com capacidade total e quando inúmeras novas fábricas, novas empresas, companhias de capital social, empresas ferroviárias etc. etc. estão crescendo como cogumelos. Ninguém precisa ser profeta para predizer a inevitável e bem aguda quebra que sucederá a esse período de “prosperidade” industrial. Essa quebra vai arruinar massas de pequenos proprietários, vai jogar massas de trabalhadores nas fileiras do desemprego e vai, portanto, confrontar todos os trabalhadores de forma aguda com os problemas do socialismo e da democracia com que já há tempos cada trabalhador pensante, com consciência de classe se defronta”. (V. I. Lênin – “As tarefas dos Social-Democratas Russos” - 1897).

 

A passagem supracitada consta do panfleto “As Tarefas dos Social-democratas Russos”, redigido por Lênin desde o seu exílio na Sibéria no ano de 1897. O documento retrata um instante do movimento revolucionário russo (àquele período denominado “social-democracia”), poucos instantes da fundação do Partido Operário Social Democrata Russa (POSDR), que se daria em março do ano de 1898.

 

Entre os anos de 1884/1894, o número de partidários da nova tendência marxista na Rússia ainda era contada em unidades. A social-democracia russa existia de forma independente de movimento operário, de forma embrionária

 

Entre 1894 e 1898, a social democracia já aparece como um movimento social, uma expressão das massas populares, culminando com a forma partidária. Nas palavras de Lênin, nas conclusões do seu “O Que Fazer” (1902):

 

“Foi o período da infância e da adolescência. Com a rapidez de uma epidemia, propaga-se na intelligentsia a paixão generalizada pela luta contra o populismo e a ida aos operários, a paixão geral dos operários pelas greves. O movimento fez enormes progressos. A maioria dos dirigentes eram pessoas muito jovens, que estavam longe de atingir ‘a idade de 35 anos’ que o senhor N. Mikháiolvski considerava uma espécie de limite natural. Por sua juventude, não estavam preparados para o trabalho prático e desapareceram de cena com assombrosa velocidade. Mas o alcance do seu trabalho era, na maioria dos casos, bastante amplo”.

 

Neste contexto, faria sentido dizer haver um pensamento do “jovem Lênin”, diferenciado das ideias de Lênin na sua plena maturidade?

 

Esta clivagem é nitidamente identificada em Marx por Althusser. E de fato, há um divisão ou, nos termos do filósofo francês, um corte epistemológico, situado mais ou menos no ano de 1846, quando da redação d’a Ideologia Alemã: a ruptura com conceitos de viés ideológico como “essência humana” e “alienação” para em seu lugar inaugurar a ciência da histórica,   o anti-humanismo teórico que afirma a prevalência da luta de classes e a objetividade na análise da sociedade, a mudança do enfoque dos temas filosóficos para a crítica da economia política, tudo isso sugere de fato uma ausência mesmo de solução de continuidade entre o jovem hegeliano Marx e o autor d’O Capital (1867).

 

Contudo, não nos parece ser possível dizer o mesmo de Lênin. Não existe uma ruptura, partindo dos seus escritos contra os populistas russos ainda no século XIX, as suas polêmicas sobre o problema da organização partidária d’O Que Fazer (1902), suas análises sobre o Imperialismo alguns anos após a I Guerra Mundial (1917) e os seus escritos tardios sobre as tarefas na construção do socialismo na URSS. Se há algo que caracteriza o pensamento de Lênin durante todo este período é a conexão íntima dos problemas teóricos com os problemas concretos do movimento revolucionário (“social-democrata”) na Rússia. Daí porque algumas assertivas de Lênin popularizaram-se tanto como a ideia da “teoria como guia para ação” ou a exigência da “análise concreta dos problemas concretos”.

 

Isto significa dizer que da leitura dos escritos de Lênin entre 1898 e 1905, estabelecendo como marcos a fundação do POSDR e o ensaio geral da grande Revolução de 1917, levam o leitor ao contato direto com os problemas fundamentais da conjuntura, as polêmicas que dividiam o movimento, a descrição das classes sociais, da suas lutas, dos momentos de acirramento e de tréguas.

 

Exemplos.

 

No artigo “A Que Herança Renunciamos” (1897), Lênin esclarece como pensadores da grande burguesia liberal tinham maior clareza do sentido histórico do desenvolvimento do capitalismo no campo, quando comparados ao pensamento pequeno burguês, ou mesmo “socialista”, que propugnava a valorização da comunidade rural (“mir”), a família patriarcal, a pose comunal da terra e o direito consuetudinário. A abolição da servidão na Rússia, ocorrido em 1861, ainda abria espaço para vestígios do feudalismo, com leis que impediam o camponês de alienar a sua terra ou mesmo abandonar espaços onde os latifundiários necessitassem de braços.

 

A luta consequente contra os resquícios do feudalismo fazia com que observadores influenciados pelo iluminismo tradicional conseguissem ter uma visão de maior alcance do que ocorria no campo na Rússia do que pequenos burgueses que objetivamente se opunham à total destruição do regime servil.

 

É justamente pelas análises de Lênin estarem sempre ancoradas na mais rigorosa delimitação das classes, frações de classes e os interesses em disputa colocados em cada conjuntura, que as suas análises, mesmo tanto tampo depois, efetivamente nos servem de precioso guia de ação.

 

Em outra polêmica, desde o artigo “A Ditadura Democrática Revolucionária do Proletariado e do Campesinato” (1905), Lênin menciona a luta pelo governo Governo Provisório, qual seja, a forma jurídica de um estado cujo conteúdo de classe é o da “ditadura revolucionária do proletariado e do campesinato”. O país passava por uma conflagração de greves já de natureza política, nitidamente após o domingo sangrento de Janeiro de 1905. A palavra de ordem é o da derrubada da autocracia, a instituição de um governo provisório até a constituição de uma assembleia constituinte. No que se refere às alianças provisórias com classes e frações de classe que estão de acordo com a palavra de ordem, não se deve esquecer: golpear juntos, caminhar separadamente, não misturar as organizações, manter a independência de classe e, importante, vigiar o aliado do momento com a mesma diligência como que vigiamos o inimigo comum.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

NOTAS SOBRE LOUIS ALTHUSSER

 NOTAS SOBRE LOUIS ALTHUSSER


 



“O grande interesse político e teórico da Revolução Cultural é o de constituir um solene evocação da concepção marxista da luta de classes e da revolução. A questão da revolução socialista não é resolvida com a tomada do poder e a socialização dos meios de produção. A luta de classes continua sob o socialismo, em um mundo submetido às ameaças do imperialismo. É então, antes de mais nada, na ideologia que a luta de classes decide a sorte do socialismo: progresso ou regressão, via revolucionária ou via capitalista”. “Sobre a Revolução Cultural”. Louis Althusser. Cahiers Marxistes-leninistes nº 141966.  Tradução Márcio Bilharino Naves.  

 

A primazia da ciência sobre a ideologia. A ruptura ou o corte epistemológico entre as fases de juventude e maturidade de Marx. O anti-humanismo teórico que afirma a prevalência da luta de classes e a objetividade na análise da sociedade. A mais completa rigorosidade na utilização dos conceitos teóricos do marxismo. Estas são algumas das principais propostas suscitadas pelo filósofo marxista francês Louis Althusser.

 

É certo que no Brasil, suas ideias ainda não têm a mesma repercussão de outros pensadores marxistas como Antonio Gramsci e Lukács, cujas orientações metodológicas são bastante diversas da proposta althusseriana.

 

Ao contrário de Gramsci, Althusser não entende o marxismo como uma nova filosofia da Praxis, mas sim como uma nova prática dentro da filosofia[1]. Em outras palavras, Marx não suprime a filosofia, não elabora todas as partes de uma nova filosofia, uma antifilosofia ou uma filosofia que rompe com toda a tradição filosófica passada: o que Marx faz é revolucionar a filosofia, ou seja instaurar uma nova prática na (dentro da) filosofia.   

 

Ao contrário de Lukács, bem como de pensadores lucaksianos brasileiros bastante conhecidos como Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, não existe em Althusser uma solução de continuidade entre as ideias de um jovem Marx desde os seus Manuscritos Econômico-filosóficos de 1844 e o seu principal trabalho de maturidade que é a realização d’O Capital (1867).

 

Conceitos de um humanismo teórico como “alienação” e “essência humana” são suprimidos nesta viragem: rompe-se com a perspectiva ideológica para se inaugurar a perspectiva científica, esta última correspondendo de fato à grande contribuição teórico-metodológica de Marx, que se equipara, para todos os efeitos, aos impactos das descobertas de Tales de Mileto na Matemática e Galileu Galilei na Física.

 

No escrito “A Querela do Humanismo” (1966) Althusser chama inclusive atenção para o fato de estarmos ainda historicamente muito perto de Marx para apreciar objetivamente o peso da revolução científica que o mesmo provocou.

 

Portanto, para Althusser, o marxismo na sua acepção científica e não ideológica é necessariamente um “não humanismo”. Além disso, o marxismo é entendido como ciência, ou mais precisamente, a ciência da história:

 

“Essa tese declara que a ciência da história marxista e a filosofia marxista só se puderam constituir sobre a base de uma ruptura com as filosofias humanistas e antropológicas anteriores, e que o marxismo é, teoricamente falando, ou seja, do ponto de vista de seus conceitos científicos e filosóficos, um anti-humanismo, ou mais precisamente, um a-humanismo teórico

 

Quando proclamamos esse princípio, temos em vista algo de extremamente precioso, a saber que, na teoria da maturidade (ciência e filosofia) não encontramos mais entre os princípios científicos e filosóficos de base da teoria de Marx, conceitos antropológicos ou humanistas. Esses conceitos figuravam nas Obras de Juventude de Marx (os conceitos de humanismo, alienação, desalienação, “perda da essência humana”, etc.). Eles faziam então organicamente parte da teoria, ainda ideológica, que Marx concebia da filosofia, da história e mesmo da “crítica” da Economia Política (p. ex., nos Manuscritos de 1844). Após a “ruptura” que começa somente nos anos 1845 e cujo “trabalho” se estende por longos anos, Marx rejeita sua concepção antropológico-humanista (teórica) de juventude. Esses conceitos ideológicos desaparecem, e são substituídos por outros conceitos: os conceitos bem conhecidos do materialismo histórico, dos conceitos de modo de produção,  de forças produtivas, de relações de produção, de superestrutura jurídico-política e ideológica etc.”.

 

Por suposto, este combate ao viés humanista do Marxismo não correspondia a uma mera discussão no nível teórico e acadêmico, mas a um combate feito por Althusser ao posicionamento da direção do Partido Comunista Francês (PCF) ao longo dos anos 1960, nitidamente em face das ideias de Roger Garaudy que defendia uma visão de um comunismo humanista, aberto à espiritualidade e em diálogo com o cristianismo.

 

Para Althusser, em contraponto, o anti-humanismo (a-humanismo) teórico aponta para a primazia da luta de classes, sendo certo que a concepção idealista na filosofia corresponde à leitura burguesa do mundo, algo bastante explicitado já há algum tempo por Lênin.

 

Nestas polêmicas no PCF, extraímos ainda hoje lições no sentido de que os comunistas podem firmar qualquer tipo de compromisso tático, exceto os compromissos teóricos. Neste sentido, quanto mais os socialistas estejam empenhados numa política de unidade, mais eles devem estar atentos com os seus princípios.

 

O marxismo não é uma narrativa ou mais uma visão social de mundo, dentre tantas outras. O marxismo deve ser entendido como ciência e o mais avançado método até então descoberto de julgamento objetivo da história. As restrições que intelectuais de outras filiações teóricas têm em relação a Althusser certamente envolve mais do que discordâncias pontuais sobre o peso e importância das obras de juventude de Marx, o problema da ideologia, os conceitos de alienação, etc. Trata-se antes disto da dificuldade de assumir o marxismo como o único meio de compreensão objetiva da história disponível, no limite assumir de forma consequente o leninismo no âmbito acadêmico, abrindo sempre caminho para capitulações ou vacilações no plano teórico.



[1] ALTHUSSER, Louis. “Sobre Brecht e Marx”. 1968.

domingo, 10 de janeiro de 2021

“A Mãe” – Máximo Górki

 “A Mãe” – Máximo Górki




 

Resenha Livro - “A Mãe” – Máximo Górki – Ed. Expressão Popular – 2ª Edição – São Paulo – 2011

 

“ – A nossa procissão marcha agora sob o nome de um novo Deus, o Deus da luz e da verdade, o Deus da razão e do bem! O nosso objetivo está longe e as coroas de espinhos, muito perto! Aqueles que não têm fé na força da verdade, que não têm coragem de defendê-la até a morte, aqueles que não têm confiança neles próprios, que se afastem! Nós apelamos a que se juntem a nós aqueles que acreditem na nossa vitória; os que não veem o nosso objetivo que não nos sigam, pois só encontrarão percalços. Cerrai fileiras, camaradas! Viva a festa dos homens livres! Viva o 1º de Maio”.

 

Este é o mais conhecido romance do escritório russo Máximo Górki, redigido em 1907, e que retrata com realismo e fidelidade a onda de movimentos grevistas que varreu a Rússia entre 1905/1907. O período foi chamado de “ensaio geral da Revolução Russa de 1917”, tendo como ponto de partida a manifestação pacífica de 22/01/1905 em São Petersburgo quando os trabalhadores intentaram entregar uma petição ao Czar para reivindicar alguns direitos democráticos como aumento de salários, reduções de jornada de trabalho e melhores condições de trabalho.

 

Como se sabe, esta manifestação, presidida por um padre, terminou num massacre que ficou conhecido na história como Domingo Sangrento.

 

Este romance remonta a estes primeiros capítulos de organização e mobilização do povo e dos trabalhadores da Rússia, processo que culminaria anos depois nas revoluções de fevereiro de 1917, com a derrubada do czarismo, e de outubro de 1917, com a tomada do poder pelos bolcheviques, liderados por Lênin.

 

O romance inspira-se em acontecimentos reais do 1º de Maio de 1902, na cidade de Sormovo, e o subsequente julgamento dos seus participantes. As personagens centrais desses acontecimentos – o operário fabril Piotr Zalomov e sua mãe, Ana Kirilovna Zalomova – são retratados como personagens no romance. Pavel Vlassov é um jovem ativista político e operário, reúne um pequeno grupo de estudos socialistas clandestino na sua casa, promoverá com seus camaradas a manifestação do primeiro de maio e por conta disto, será preso. Sua mãe, que é a personagem principal, chama-se Pelagueia Nilovna, tem 40 anos e passara 20 anos casada com o serralheiro Vlassov, que bebia e a espancava. Com a morte de Vlassov, Pavel passa a ser o homem da casa e une a experiência de um passado de violência doméstica e arbitrariedades na fábrica à gradual e progressiva tomada de consciência política.

 

A mãe também tem um lento despertar político: seu ponto de partida é a morte de sua marido violento e a presença dos camaradas de seu filho, que se reúnem clandestinamente na sua casa. É provável que esta lenta mas constante escaldada da consciência crítica da mãe diga respeito ao processo de tomada de consciência política tardia da “mãe Rússia”.

 

Um dos fatores explicativos da Revolução Russa certamente é o atraso político daquele país que até fevereiro de 1917 ainda estava sob um regime político de tipo absolutismo, com uma polícia política (Okhrana) que perseguia duramente qualquer sinal de descontentamento. A imprensa é censurada e qualquer manifestação contrária ao czar implica na prisão, deportação ou até a morte. Pode-se falar num anacronismo histórico a existência do czarismo e da Okhrana na Rússia de 1917, se se levar em consideração que na França o Antigo Regime já havia sido derrubado de forma revolucionária em 1789!

 

A “mãe”, protagonista do romance de Górki, parece ser uma espécie de metáfora da “mãe Rússia”, um país profundamente atrasado e que, por conta das contradições oriundas do anacronismo político, será o elo mais fraco a ser quebrado na cadeia de dominação capitalista. A contradição profunda decorrente do atraso político possibilitará ao fim e a cabo a tomada do poder político pelos socialistas de forma pioneira no mundo, em outubro de 1917.

 

Inicialmente, a mãe sente medo que algo aconteça com o seu filho. Não entende a disposição daqueles jovens em arriscar tudo pela causa, que apareceria para eles como sendo a luta pela “verdade”. Após a prisão de Pavel decorrente de sua participação na manifestação do primeiro de maio, a mãe passa a atuar politicamente: distribui clandestinamente na fábrica jornais do movimento, iludindo as autoridades dizendo estar vendendo refeições aos operários. Posteriormente, a mãe irá assumir outras tarefas militantes, não só motivada pelo amor ao seu filho, mas pela efetiva concordância com as teses dos movimentos.

 

O estilo da narrativa é o realismo, contando com a descrição objetiva das personagens e dos ambientes. Mas é inequívoco que este realismo na forma se funde com um romantismo de fundo, de modo que a história d’a Mãe e seu filho Pavel surge como algo de heroico. As histórias de resistência das personagens que passam pelas prisões e deportações sugerem que o autor não só buscava descrever realisticamente as lutas operárias, mas incutir no leitor um encanto que o envolvesse e, talvez, o engajasse no movimento.

 

Górki, como se sabe, apoiou a revolução de outubro e esteve sempre ao lado dos bolcheviques.

 

Órfão aos 7 anos, desprovido de qualquer formação, o escritor começou a trabalhar aos nove anos de idade, como aprendiz de sapateiro, ajudante de cozinheiro em navios, jardineiro, padeiro, vendedor de frutas e ferroviário. Entre 1899 e 1906, militou no Partido Social-democrata russo, quando conheceu Lênin, de quem se tornou amigo pessoal.

 

Górki participou da Revolução de 1905, quando já era um escritor conhecido, mas ainda assim foi preso. Vitoriosa a Revolução de Outubro, o autor manifestou o seu apoio condicional aos bolcheviques. Já no período estalinista, no ano de 1932, o Partido Comunista da União Soviética criou a União dos Escritores Socialistas, da qual Górki foi eleito o primeiro presidente.

 

Segundo Frei Betto, “a partir daquele momento, o escritor passou a defender a ortodoxia estalinista, forjando o conceito de ‘realismo socialista’ – tendência artística que despojava a arte de sua natureza estética para transformá-la numa captação ideológica da realidade”. (“Gorki e as Malhas do Poder”). O escritor faleceu no ano de 1936 de pneumonia, tendo sido sepultado com todas as honras oficiais, com a presença de Stálin e Molotov.