sexta-feira, 19 de fevereiro de 2021

“Pensamento Social Brasileiro: de Raul Pompeia a Caio Prado Júnior” – Ricardo Luiz de Souza

 “Pensamento Social Brasileiro: de Raul Pompeia a Caio Prado Júnior” – Ricardo Luiz de Souza




 

Resenha Livro - “Pensamento Social Brasileiro: de Raul Pompeia a Caio Prado Júnior” – Ricardo Luiz de Souza – Editora UFU

 

“O conjunto de autores a ser analisado nas páginas seguintes – Raul Pompeia, Olavo Bilac, Lima Barreto, Couto de Magalhães, Roquette Pinto, Nina Rodrigues, Manoel Querino, Roger Batisde, Caio Prado Júnior – é deliberadamente heterogêneo, pois abrange poetas, romancistas, antropólogos, historiadores, entre outros. Trato da obra de diversos intelectuais que viveram e escreveram em um período que abrange, em linhas gerais, as últimas décadas do século XIX e a primeira metade do século XX, embora Batisde e Caio Prado tenham produzido, também, nas décadas seguintes, principalmente Batisde. Estudo, portanto, nove autores que – embora já tenham sido alvo de estudos específicos – nunca foram estudados em conjunto em uma obra especialmente dedicada a eles, o que permite uma análise comparativa e diferenciada de cada um.”.

 

Uma primeira obra, pioneira, do estudo da história das ideais políticas e sociais do Brasil é o livro do jurista e professor de direito da antiga Escola de Recife, Nelson Saldanha.

 

O seu  “História das Ideias Políticas no Brasil”, publicado em 1968, abrange a história das ideias políticas desde o Brasil Colônia até a etapa ligada ao pensamento desenvolvimentista, durante o governo JK (1956-1961). O problema, difícil de ser contornado, é que a história das ideias políticas acabam necessariamente estando diretamente associadas com as instituições políticas vigentes.

 

Ao se falar de ideias políticas, deve-se levar em conta que as mesmas são condicionadas por instituições e determinadas em última análise pelas realidades sócio-econômicas. Assim, chega a ser mesmo difícil de se cogitar das ideias políticas brasileiras nos 300 primeiros anos de colônia. A imprensa, por exemplo, só surgiria em 1808 com a vinda da família real ao Brasil. Não havia escolas e o ensino era de tipo doutrinário e religioso, levado a cabo pelos jesuítas. O analfabetismo não era só a realidade de índios e negros, mas mesmo dos senhores de engenho. Neste passado remoto, o que havia de ideias políticas não podia deixar de estar dissociadas das instituições – o Estado Português, as Ordenações do Reino, as Câmaras Municipais.

 

Assim, a história das ideias políticas de Nelson Saldanha corresponde à história das instituições políticas brasileiras, das constituições, dos ato oficiais emanados do estado, e, frise-se, também de revoltas e rebeliões que de certa maneira se apropriaram de ideias liberais, republicanas ou federalistas, como uma linguagem para promover agitações pela independência, por direitos de nacionalidade, pelo fim da escravidão ou pela república.

 

Já o trabalho de Ricardo Luiz de Souza se volta não tanto para as ideias políticas mas para o pensamento social brasileiro: analisando artistas, jornalistas e intelectuais que pensaram o Brasil entre os fins do XIX e meados do XX, o leitor terá acesso a diferentes propostas de interpretação do país e da identidade nacional, diferentes opiniões sobre o problema racial, sobre a questão do negro e do índio, bem como da mestiçagem, sobre o problema do passado colonial e a forma como a herança colonial atribui um certo sentido ao nosso desenvolvimento histórico.

 

“O acentuado grau de concentração da propriedade fundiária que caracteriza a generalidade da estrutura agrária brasileira é reflexo da natureza de nossa economia, tal como resulta da formação do país desde os primórdios da colonização, e como se perpetuou, em linhas gerais e fundamentais, até os nossos dias.”. (PRADO JR., Caio. 1979).

 

Uma boa parcela dos autores escolhidos por Ricardo Luiz de Souza como representativos do pensamento social brasileiro irão pensar especificamente a questão do negro na sociedade brasileira.

 

Nina Rodrigues, ele próprio um mulato, foi professor de medicina legal na Faculdade de Medicina da Bahia de 1891/1906, e está fortemente influenciado pelo evolucionismo e pelo determinismo racial. Hoje suas ideias estão em completo desuso, mas foi amplamente reconhecido em seu tempo.

 

Claramente, Nina Rodrigues entende, como era comum na sua época, que a raça negra é inferior à branca, chegando mesmo a sugerir a inimputabilidade criminal do preto e a adoção de um código penal específico para pessoas desta raça.

 

Por outro lado, Nina Rodrigues, efetuou uma apaixonada e pioneira defesa dos pacientes portadores de doenças mentais: “a experiência nos mostra que os alienados entre nós precisam de garantias contra todos; contra famílias e particulares que os queiram explorar, contra os próprios poderes públicos que os submetem a tratamentos desumanos”.

 

Nina Rodrigues elabora igualmente uma contundente crítica ao Código Penal Republicano de 1981, questionando a igualdade de direitos e obrigações fundada no direito clássico, que seria somente possível num meio social (e também racial) homogêneo, o que não se verifica no Brasil.

 

Roger Batisde, posteriormente, viria a desenvolver uma teoria social muito mas refinada e acurada sobre o problema racial no Brasil.

 

“Ao mesmo tempo ele (Batisde) define como problemática a inserção do negro – do escravo primeiro, do liberto, depois – nesta sociedade, estudando-a a partir de diferentes prismas. A situação de inferioridade e discriminação na qual o negro foi colocado teria sido introjetada por ele, gerando uma autoimagem negativa. Batisde (1983, p. 143) assinala então, a existência de um “sentimento de inferioridade, que rói o negro”, e acrescenta: “É verdade que, quando se vê que nada vale esse servilismo, revolta-se e é por isso que dissemos que há uma ambivalência nas representações que o preto faz da sua própria cor: dissimula-a e exalta-a ao mesmo tempo”.

 

Contudo, o antropólogo francês, radicado no Brasil, ainda reproduz teses de uma historiografia tradicionalista segunda a qual a escravidão no Brasil teria sido um regime mais brando, ao menos se comparado ao regime escravista em países protestantes, como os EUA[1].

 

Batisde reconhece inclusive a validade da expressão “democracia racial”, mostrando uma filiação ao pensamento de Gilberto Freire. Neste sentido, uma sugestão ao autor deste “Pensamento Social Brasileira” é a de que numa nova edição deste livro, acrescente um capítulo específico de Florestan Fernandes, trabalhando a forma como o sociólogo tratou do problema do negro, com a perspectiva que Emília Viotti denominou de “revisionismo histórico paulista” das teses da democracia racial no Brasil.

 

* Quadro de Françoise Biard - Deux indiens dans un canoë / Deux indiens en pirogue - Séc. XIX - Brasil 



[1] Até mesmo o historiador marxista Caio Prado Júnior de certa forma “capitula”, endossando discretamente esta tese: “Constitui-se assim no grande domínio um conjunto de relações diferentes das de simples propriedade escravista e exploração econômica. Relações mais amenas, mais humanas, que envolvem toda sorte de sentimentos afetivos. E se de um lado estas novas relações abrandam e atenuam o poder absoluto e o rigor da autoridade do proprietário, doutro lado elas a reforçam, porque a tornam mais consentida e aceita por todas”. (PRADO JR., Caio. 1976, p. 289).

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