“O Duplo” – Fiódor Dostoiévski
Resenha Livro # 156– “O Duplo” – Fiódor Dostoiévski – Editora 34 – Tradução Paulo Bezerra
“O Duplo” é a segunda obra publicada pelo escritor russo F. D., logo após “Gente Pobre”, ambas datadas de 1846. Enquanto o livro de estreia de Dostoiévski encontrou uma ótima recepção dentro do público e da crítica, “O Duplo” provocaria o efeito inverso: foi um livro incompreendido em sua época, muito provavelmente em função do experimentalismo formal por um lado (foge do realismo literário e segue a trilha de um enredo fantástico) e da temática abordada (o problema da loucura, os devaneios da consciência humana, a relação entre a perda do controle da consciência e uma sociedade fortemente marcada pela exclusão e pelos signos de distinção e nobreza).
Certamente, “O Duplo” é uma obra à frente de seu tempo sendo possível observar a figura do conselheiro Golyádkin, acossado pela corporificação de seu duplo, o senhor Golyádkin segundo, a expressão de uma alma atormentada pela culpa de sua condição medíocre, esmagada pela solidão e pela pobreza, na iminência da loucura – o que faria entre outros com que posteriormente Freud se tornasse um grande admirador do escritor russo.
E, ademais, vemos em Golyádkin e em “O Duplo” o prenuncio de algumas obras da maturidade de Dostoiévski em que seu esforço de escancarar almas humanas atormentadas vêm à tona, como em “Crime e Castigo” e seu personagem Raskólnikov e “Memórias do Subsolo”.
Mas quem é Golyádkin? Yakóv Pietróvitch Golyádkin é conselheiro titular, um amanuense, mistura de escrivão e copista, pertencente à nona classe na escala burocrática, portanto, sem nenhuma possibilidade de ascensão social. Mal ganha para se manter, passa por grandes privações, mas tem um criado, que por sinal o trata mal e sempre com deboche. Vive num grande isolamento e a solidão é o signo maior da sua existência, de forma que nos poucos momentos em que aparentemente consegue romper o cerco das inimizades e ser aceito em um ambiente social, chega a se comover com lágrimas. Mas a sua situação desde o início do romance está predestinada: quando se dirige pela primeira vez ao médico, este lhe recomenda convívio social e não ser “inimigo da garrafa”. E entre o cômico e o trágico, o protagonista aluga uma carruagem, compra roupas caras e se dirige à festa de aniversário da filha de Olsufievna Ivánovitch, conselheiro de estado. Já é humilhado quando é barrado na porta do jantar. Ainda assim entra, e após uma pisadela num vestido de uma convidada e pensando ser oportuno tirar a filha do alto dignatário para dançar, é expulso do salão.
Já antes do aparecimento do duplo, portanto, Golyádkin surge como um sujeito por um lado desejoso de ser parte da sociedade e elevar-se socialmente, mostrar-se nobre e enfrentar as ridicularizações que o deixam encolerizado. O surgimento do “Duplo” marca uma clivagem na história em que o “Golyádkin Segundo” paulatinamente irá conseguir conquistar e concretizar todos os desejos de aceitação de Golyádkin original. E o pior: revelaria ser o pior inimigo do protagonista.
“Ora o senhor Golyádkin sonhava que estava no meio de um grupo maravilhoso, conhecido por sua espirituosidade e pelo tom nobre usado por todos os seus integrantes; que o senhor Golyádkin, por sua vez, se distinguia nos quesitos amabilidade e espiritualidade; que todos gostavam dele, até alguns de seus inimigos que ali se encontravam tinham passado a gostar dele, o que era muito agradável para o senhor Golyádkin; que todos lhe davam prioridade e que, enfim, o próprio senhor Golyádkin escutava com prazer o elogio que o anfitrião lhe fazia para um dos convidados que levara para um lado..., e de repente, sem quê, nem para quê, tornava a aparecer, na feição do senhor Golyádkin segundo, aquela pessoa conhecida por suas más intenções e motivações atrozes, e ato contínuo, imediatamente, num piscar de olhos o senhor Golyádkin segundo destruía com seu simples aparecimento todo o triunfo e toda a glória do senhor Golyádkin primeiro, obnubilava com sua presença o senhor Golyádkin primeiro, pisava na lama o senhor Golyádkin primeiro e, por fim, demonstrava claramente que Golyádkin primeiro era ao mesmo tempo autêntico e absolutamente inautêntico, falsificado, que ele é que era o autêntico e, por último, Golyádkin primeiro não era nada do que aparentava, porém isso mais aquilo, e, por conseguinte, não podia nem tinha o direito de pertencer a uma sociedade de pessoas bem intencionadas e de bom tom”.
É possível especular e dar distintas respostas sobre o que significa este “Duplo”. Como a referência em Golyádkin segundo é a de um “irmão gêmeo”, idêntico, tanto na roupa quanto no nome, pode-se pensar que o duplo é a projeção do protagonista num espelho, com a condição de que o seu reflexo exprime os seus contrários. Golyádkin primeiro é chamado de “herói” enquanto o segundo seria o vilão que na vida prática concretiza tudo aquilo que o primeiro fracassa. Numa perspectiva mais psicológica, tratar-se-ia de uma projeção relacionada aos desejos de ascensão e aceitação social de Golyádkin cujo triste fim o levará ao manicômio. O que é certo é que todas estas possíveis interpretações e as linhas de investigação do artista Dostoiéviski parecem transbordar a literatura e ir para áreas mesmo da medicina/psiquiatria, além é claro da história, das relações sociais da Rússia com sua nobreza e burocracia oficial, etc. Temos aqui um poderoso retrato da sociedade e um raio x de almas humanas atormentadas, a combinação mas essencial da obra de Dostoiéviski.
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