“Rúdin” – Ivan Turguêniev
Resenha Livro #151 - “Rúdin” – Ivan Turguêniev – Editora 34 –
Tradução Fátima Bianchi
Ivan Turguêniev
é junto com Leon Tolstoi e F. Dostoiéviski um dos principais expoentes da
literatura russa do século XIX. É autor de vasta obra de teatro, poesia, contos
e romances, tendo sido o primeiro dentre os três a ser consagrado no Ocidente.
Nascido em 28 de Outubro de 1818, no distrito de Oriol na
Rússia, Turguêniev veio de família aristocrata: até os nove anos morou na
propriedade rural da família e em seguida estudou em Moscou e São Petersburgo.
Em 1838 mudou-se para Alemanha a fim de continuar os estudos em nível superior.
Em Berlin fez filosofia, letras clássicas e história; participou de círculos estudantis
e conheceu pessoalmente o agitador rebelde Bakunin, que serviria de inspiração
para compor o personagem principal de seu primeiro romance.
Antes porém de Rúdin, publicou alguns poemas e alguns contos
que seriam reunidos sob a denominação de “Memórias de um Caçador” (1852), já
encontrando ressonância no público ao discutir o problema do homem do campo
diante da servidão e a libertação dos servos, então em pauta. “Rúdin” foi
publicado entre janeiro e fevereiro de 1856 na revista O Contemporâneo. O
espetacular final do protagonista que desde uma barricada na França de 1848
morre empunhando uma bandeira vermelha, como uma espécie de Dom Quixote, num
ato heroico e inútil de resistência e bravura, seria acrescentado alguns anos
depois, provavelmente devido ao relaxamento da censura após a morte de Nicolau
I.
O romance nos leva num primeiro momento à casa de campo de
Dária Mikháilovna, uma viúva aristocrata de Moscou que anualmente dirige-se ao
campo junto à sua filha Nathalia para aproveitar o verão: naqueles dias, a
proprietária cuida de seu sítio pessoalmente e procura se ocupar convidando
vizinhos e conhecidos para jantares e distrações, fazendo-nos conhecer diferentes
tipos e personalidades. Pigassov é um dos frequentadores da casa de Dária Mikháilovna
e diverte-a com o seu mal humor diante da vida e o seu ressentimento diante das
mulheres.
“- Eu lhe asseguro,
Aleksandra Pavlovna – proferiu lentamente Pigássov -, que nada pode ser pior e
mais ofensivo do que a felicidade que chega demasiado tarde. Prazer, de todo
modo, não pode proporcionar, e em compensação nos priva de um direito, do direito
mais precioso – o de xingar e amaldiçoar o destino. Sim, senhora, a felicidade
tardia é uma coisa amarga e ofensiva”.
Este personagem assumiria um papel importante como uma
espécie de contraponto ao protagonista, Rúdin.
Rúdin surge naquele pacato sítio substituindo um Barão amigo
da viúva que esteve impossibilitado de visitá-la – seu substituto num primeiro
momento desperta a atenção e curiosidade dos ouvintes com sua eloquência e
pleno domínio das palavras. Todos menos é claro Pigássov, um homem já velho e
amargurado diante de fracassos pregressos e convencido de que “a palavra” é
inútil, sempre vendo Rúdin como presunçoso – talvez por inveja, mas muito mais
provavelmente em função do seu próprio passado que envolve o abandono dos
estudos por fracasso pessoal e a desilusão radical diante do mundo das letras e
sua utilidade.
Rúdin representa um setor da nobreza russa que conformaria
aquilo a que se chama de “intelligentsia” e que em certa maneira remete ao
próprio Turguêniev, uma juventude que iria estudar nas universidades Alemãs e
Francesas, tinham contatos com ideias de reformadores sociais e filósofos como
Kant, Hegel e Feuerbach e, ao retornar à Rússia czarista, dominada ainda pelo
regime feudal no campo e com a esmagadora maioria da população vivendo na
penúria e no analfabetismo, tornar-se-iam deslocados, sem conseguir de fato
traduzir as ideias, ou as palavras, em atos.
Este é o drama do homem cosmopolita, como Rúdin, mesmo que
se reconheça as suas boas intenções:
“- Está ouvindo –
continuou Liéjnev, dirigindo-se a Pigássov – De que outra prova precisa? O
senhor ataca a filosofia; ao falar dela, não encontra palavras suficientemente
desdenhosas. Eu mesmo não lhe tenho grande apreço e mal consigo entendê-la: mas
não é da filosofia que advêm nossos principais infortúnios! Os delírios e os
meandros filosóficos nunca se enraizarão no russo: para isso ele tem muito bom
senso; mas não podemos permitir que toda aspiração honesta para a verdade e a
consciência seja atacada em nome da filosofia. A desgraça de Rúdin é que ele
não conhece a Rússia, e essa é realmente uma grande desgraça. A Rússia pode
prescindir de cada um de nós, mas nenhum de nós pode prescindir dela.”
Este deslocamento entre esta “intelligentsia” que importa
filosofias ocidentais, conversa em francês dentro de pequenos círculos
aristocráticos e apenas consegue “dialogar” com gente letrada, permanecendo completamente
ininteligível para o mujique, sua mulher e as crianças – como atesta a
tentativa frustrada de Rúdin em dar aulas de Literatura numa escola secundária –
diz respeito à esta distância entre “a palavra” e à realidade, implicando na
paralisia deste setor social – ao menos dentro do contexto histórico observado
por Turguêniev, a Rússia de 1830-40.
Como se sabe, esta mesma “intelligentsia” ganharia volume e expressão
política ao longo do século XIX sendo a “ida ao povo” uma de suas saídas
políticas desde os grupos populistas de fins do séc. XIX – com o acréscimo de
que desta vez tal “intelligentsia” não se reduziria apenas a filhos da
aristocracia.
De qualquer forma, os romances de Turgueniêv, Tolstoi e
Dostoiéviski vão como refletindo o que foi a sociedade russa e como se deu a
sua evolução durante o séc. XIX o que, dentre vários tópicos a serem analisados,
oferece uma chave explicativa fundamental para se entender a razão pela qual a
primeira revolução socialista do mundo estourou naquele local e naquela
sociedade. Pensar em Lênin em 1917 é
certamente pensar num Rúdin em 1830.
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