domingo, 18 de janeiro de 2015

“Doidinho” – José Lins do Rego

“Doidinho” – José Lins do Rego

Resenha Livro 149 – “Doidinho” – José Lins do Rego – Editora Nova Fronteira 



“Doidinho” (1933) é o segundo livro escrito por José Lins do Rego e corresponde a uma sequência da vida do personagem Carlos de Melo desde “Menino de Engenho” (1932) (Ver resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/12/menino-de-engenho-jose-lins-do-rego.html). 
 
Enquanto o primeiro romance aborda a infância do personagem vivida no engenho de seu avô, o coronel José Paulino, em “Doidinho” o cenário passa a ser o colégio interno do severo do mestre Seu Maciel, localizado na cidade de Itabaiana. 


Existe elementos de mudança e de continuidade entre os dois romances sendo certamente recomendável a leitura de ambos, dentro da sequência cronológica. No que se refere à continuidade, ainda temos uma narrativa em primeira pessoa sempre buscando resgatar as percepções de mundo e as sensações experimentadas pelo menino, das lições e dos castigos na escola, dos contatos com a catequese, o sentimento de culpa religioso e o medo da morte, a experimentação sexual, o amor e a amizade. 


E os elementos que diferenciam os romances dizem respeito essencialmente ao local onde se passa a história: desde o colégio interno, localizado na cidade, longe do engenho e da família, junto a cerca de 70 meninos da Paraíba e Recife, de diversas idades, se relacionando através de brincadeiras nem sempre desprovidas de malícia e perversidade infantis: as intervenções envolvem questões pessoais que oprimem e humilham, como a mãe de um garoto que é “mulher da vida”, criando-se uma situação que engendra a saído do aluno do colégio ou o próprio Carlos (“Doidinho”), cuja tragédia familiar envolvendo o pai e mãe, ambos mortos, não o poupam de brincadeiras sinistras acerca de sua família. 


Esta sensação de que o mundo das crianças dentro do colégio remete a uma espécie de estado de natureza hobbesiano, com pouco lugar à fraternidade e muito espaço ao deboche e às delações que levam aos castigos através do bolo de seu Maciel remetem bastante este romance de José Lins do Rego ao “Ateneu” de Raul Pompéia ( Ver resenha: http://esperandopaulo.blogspot.com.br/2014/10/o-ateneu-raul-pompeia.html) 


Os poucos lances de solidariedade dentro do internato seriam cultivados através da amizade do narrador-protagonista com seu amigo “Coruja”, e ainda assim temporariamente, já que o seu colega seria posteriormente recrutado como uma espécie de ajudante do mestre, ficando responsável por fazer relatórios das arruaças, ditando nomes, para posterior castigo. 


E se observa como a metodologia da punição física, associada à educação religiosa e ao treinamento militar dizem respeito a um modelo de educação autoritário, cuja figura central do Mestre Maciel está lá para meter medo nas crianças: o que, diga-se, não impede de haver violações às normas. Da mais grave de todas, certamente foi a que envolveu Pão Duro e Clóvis, um caso de pederastia que fez estalar os bolos de muitos dedos e quase custou a expulsão dos discentes. De outro lado, tanto da descoberta desta infração, quanto de outros momentos críticos como quando um aluno mais velho não se submeteu ao diretor, o narrador chama atenção como os fatos adversos afetavam pessoalmente o velho Maciel, quase como um pai que, efetivamente, ora se desapontava, ora se orgulhava de seus alunos, frutos de sua intervenção como mestre.  Tinha uma postura autoritária e buscava meter medo nos alunos para garantir sua autoridade apenas durante o período letivo já que, durante as férias, o pequeno Carlos observou como o diretor transformava-se em homem pacífico. 


A escola ensinava na mesma sala alunos de diversas séries: havia os internos e os externos. Tomavam banho apenas duas vezes por semana de modo que era comum os estudantes  estarem com piolhos nos cabelos. A comida feita pela negra Paula era a base de carne seca e bolacha: uma ração que deixava as crianças magras. Eventualmente tomavam banho de rio. Em um dado momento puderam conhecer o cinema, naquela época, com filmes mudos, sendo a sonoplastia executada num piano. Desde a igreja, os pequenos aprendiam a ter medo do inferno: 


“Não poderíeis jamais avaliar o que sejam os sofrimentos do inferno. Lembrai-vos da maior dor que possa afligir um homem na terra, e esta dor se prolongando por séculos e séculos. Quando vos dói um dente, a vontade que vos chega é a da extração imediata, de arrancá-lo para vosso alívio. Para a dor que vos atormenta tendes logo o recurso dos remédios. Quantos não chegam à alucinação com os seus padecimentos, quantos não se beiram do suicídio! Avaliai agora uma dor sem remédio e sem jeito. Um dor que é de todo o vosso corpo, da cabeça aos pés, de todas as vossas fibras e de todos os vossos nervos; a vossa carne ardendo, derretendo-se nas chamas de um fogo mais quente que o das caldeiras, o fogo soprado pelos demônios”. (P. 81)


Quando o narrador descreve seu passado, busca identificar a sua percepção da realidade enquanto criança sem, contudo, deixar de oferecer uma descrição bastante objetiva daquele mundo. Este realismo na narrativa é típico dos escritores do modernismo em sua segunda fase: seria uma característica dos romances daquela geração de escritores regionalistas como Graciliano Ramos, Rachel de Queiróz e Amado Fontes, se relacionando tal objetividade com um esforço de reflexão acerca de problemas sociais como a seca, a migração, o trabalhador rural e a desigualdade social (não oculta mesmo aos olhos de Carlinhos em suas férias no Engenho). 


O que os escritores da 2ª Geração do Modernismo ganham em relação aos pioneiros de 1922 é uma maior consciência social, seja por meio da crítica, seja descrevendo um Brasil ainda não modernizado, o que está presente naquele engenho do avô do protagonista, um coronel que ainda tem em suas terras as relações sociais ditadas pelo mandonismo centrado na sua pessoa e mesmo as relações econômicas aparentemente feudais, com trabalhadores posseiros se submetendo ao coronel em troca de terra para plantar e proteção econômica para os tempos difíceis.  


“Doidinho” termina numa passagem de suspense com uma cena de fuga do aluno do colégio diante da inaptidão de Carlinhos em participar do desfile de 7 de setembro: o menino não tomava jeito nos treinamentos e foi rejeitado (o único), sentido -se humilhado e buscando, com a fuga, atenuar seu sentimento de culpa e tristeza. Ao que tudo indica, o escritor deixou em suspense uma história que continuaria a ser contada depois. 


O denominado “Ciclo da Cana de Açúcar” continuaria com os romances: Bangüe (1934), O Moleque Ricardo (1935) e Usina (1936) 

Nenhum comentário:

Postar um comentário