quinta-feira, 15 de janeiro de 2015

“A Morte de Ivan Ilich” – Lev Tolstói

“A Morte de Ivan Ilich” – Lev Tolstói


Resenha Livro # 148 - “A Morte de Ivan Ilich” – Lev Tolstói – Editora 34 – Tradução Boris Schnaiderman 
O escritor russo Lev Tolstói costuma ser lembrado por duas razões: em primeiro lugar e principalmente como escritor de romances consagrados mundialmente como "Guerra e Paz" (1869) e "Ana Karerina" (1877) e em segundo lugar como reformador social, teórico e crítico da nascente sociedade burguesa russa de fins do século XIX, buscando, desde sua propriedade rural em Iásnaia-Poliana próximo ao distrito de Tula, defender uma sociedade igualitarista, pacifista e camponesa – posteriormente esta linha de pensamento ganharia maior evidência política na Rússia com o grupo dos Populistas, dos quais o irmão do líder revolucionário V. I. Lênin tomaria parte. 

Estas duas dimensões presentes na trajetória de Lev Tolstói, o artista e o doutrinador, vão dialogar e estar cada vez mais presentes dentro de um só projeto: inicialmente, o escritor inicia sua trajetória como um estudante desregrado e boêmio da Universidade de Kazan, onde se matricula em 1844. Lev veio de família da alta aristocracia russa e após anos de dispersão nos estudos, abandona a universidade em 1847, persistindo até 1851 a sua vida degenerada jogando cartas, bebendo e caçando, em Tula e São Petersburgo. 

Em 1851, Tolstói adentra o exército como oficial junto ao irmão Nikolai e desde o Caucásio irá escrever suas primeiras obras: Infância (1852) e Adolescência (1853). Desiludido com a carreira militar, demite-se do exército russo em 1856 e percorre em viagem diversos países do ocidente, podendo observar as diferenças decorrentes da modernização capitalista baseada na revolução industrial na Europa ocidental, enquanto a Rússia ainda procedia à libertação dos servos. 

Em 1860, o escritor instala-se definitivamente em Iásnaia Poliana onde ficaria até o fim da vida escrevendo romances, novelas e contos e gradualmente desenvolvendo certo senso crítico que o levaria a romper com a igreja ortodoxa, estar contra a grande propriedade rural, os efeitos deletérios da civilização capitalista burguesa e a insensibilidade da classe dominante russa. Tal viragem política em Tostói dá-se a partir de "Confissão" (1882), "Crítica da teologia ortodoxa" e "Que devemos fazer?"

A novela “A Morte de Ivan Ilich” (1886) já é deste período em que vislumbramos um encontro pleno entre o artista e o reformador social: sem rebaixar a arte a um mero meio de panfletagem ideológica, consegue o artista criar uma das mais belas peças sobre uma questão universal (a morte), garantindo ainda o seu ponto de vista crítico sobre o problema da modernização capitalista  na Rússia e o elogio da autenticidade do camponês na figura do criado Guerássim. 

Ivan Ilich é um magistrado, pertencente ao alto escalão burocrático do Estado e chefe de uma família aristocrata russa do século XIX. Viveu uma vida estritamente dentro dos parâmetros e de tudo o que se poderia esperar de alguém de sua origem social abastarda: filho de uma família nobre, estudou Direito e, formado, iniciou sua carreira numa distante província, onde conheceria sua esposa. O casamento então lhe surgiria não como produto do amor, mas como algo prático e conveniente, como de resto quase tudo o que ocorria em sua vida: o trabalho de magistrado, as relações familiares e a convivência com os amigos através do jogo de cartas são os três elementos constitutivos da vida de Ivan Ilich até o percebimento de uma dor sutil na região do rim combinado com uma sensação de algo podre no hálito, o prenúncio da doença e da morte. 

Seria através dos dias em que a dor irá se avolumando e, com o tempo, com uma percepção que vai se transformando em certeza de que aquela dor contínua e cada vez mais aguda não poderá ser contida pelos médicos, ou seja, diante da evidência da morte, que Ivan Ilich passa a perceber como sua vida esteve o tempo todo eivada pela mentira, como as convenções sociais de seu cargo ou das obrigações protocolares de um casamento sem amor rodeavam-no agora, irritavam-no acima de tudo. As sensações dominantes que antecedem a morte são a de medo e ódio diante do não entendimento do sentido da dor conquanto algo se esclarece na mente do personagem: a mentira da vida adulta e sua infelicidade.

“E quanto mais longe da infância, quanto mais perto do presente, tanto mais insignificantes e duvidosas eram as alegrias. A começar pela Faculdade de Direito. Ali ainda havia algo verdadeiramente bom: havia a alegria, a amizade, as esperanças. Mas nos últimos anos estes momentos bons eram mais raros. Depois, no tempo do seu primeiro emprego, junto ao governador, surgiam de novo momentos bons: eram as recordações do amor a uma mulher. A seguir, tudo isso se baralhava, e sobravam ainda menos coisas boas. Adiante, ainda menos, e quanto mais avançava, mais elas minguavam”. 

Como dizíamos, aqui temos já um Tostói que defende uma arte engajada e nesta pequena novela a crítica social ganha maior evidência na indiferença sentimental dos amigos e mesmo da mulher e da filha mais velha pelos destinos de Ivan Ilich. 

Aos amigos, a vida ou morte de Ivan Ilich apenas interessa para se observar quem irá preencher o seu cargo dentro da burocracia estatal. À mulher, desde uma cena no enterro do marido, o leitor é convencido de que uma de suas grandes ou principais preocupações é com questões pecuniárias, o pagamento pelo estado de uma volumosa pensão. A filha parece estar tomada de interesse exclusivo pelo casamento de forma que apenas o filho mais jovem de Ivan Ilich derrama lágrimas verdadeiras a todo instante, talvez em função de sua pouca idade. 

Há um certo pessimismo derivado de um ponto de vista tolstoiano que de alguma forma remete indiretamente à tese de Rousseau segundo a qual o homem nasce puro, mas a sociedade o aniquila moralmente. Esta perspectiva é também parte da orientação política tolstoiana ancorada na crítica mordaz da modernização capitalista russa e na defesa de uma “volta às raízes” em que o personagem Guerássim torna-se o contraponto à desfaçatez e falta de autenticidade das elites políticas daquele país. Trata-se do criado de Ivan Ilich e o único que oferece algum conforto ao patrão:

“A partir de então, Ivan Ilich chamava às vezes Guerássim, fazendo-o segurar os seus pés sobre os ombros, e gostava de conversar com ele. Guerássim fazia isto com leveza, de bom grado, com simplicidade e uma bondade que deixava Ivan Ilich comovido. A saúde, a força, a vitalidade de todas as demais pessoas ofendiam Ivan Ilich; somente a força e vitalidade de Guerássim não o entristeciam e sim acalmavam-no”.

O sentimento de dor física ao final combina-se com uma sensação de culpa ou dor moral em Ivan Ilich, constatando a falta de sentidos e de verdade ao seu redor, num limite máximo nos últimos 3 dias de vida. Depois há uma espécie de liberação e mesmo re-conciliação ou perdão de Ivan Ilich junto aos seus, quando a própria morte se exaure. Dizem os biógrafos que a ideia da morte atormentava Tosltói desde muitos anos antes da redação desta novela e de fato ela está marcante em vários outros livros. 

“A Morte de Ivan Ilich” é talvez a mais bem escrita história em prosa sobre este tema.  

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