“Memorial de Aires” – Machado de Assis
Resenha Livro #146 – “Memorial de Aires” – Machado de Assis – Instituto de Divulgação Cultural São Paulo
“Memorial de Aires” foi o último romance escrito e publicado por Machado de Assis. Foi lançado no mesmo ano da sua morte, 1908. Temos aqui, portanto, o escritor em sua plena maturidade artística, considerando a divisão que a crítica literária consagrou, separando a obra machiadiana em dois períodos.
Um primeiro, inserido no contexto da 3ª fase do romantismo, em que a observação social ainda se mistura com um certo moralismo ainda desprovido da ironia e da crítica social que marcaria o Machado de Assis “adulto” (2ª fase) a partir do seu “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), obra que inaugura o realismo/naturalismo no Brasil.
Um primeiro, inserido no contexto da 3ª fase do romantismo, em que a observação social ainda se mistura com um certo moralismo ainda desprovido da ironia e da crítica social que marcaria o Machado de Assis “adulto” (2ª fase) a partir do seu “Memórias Póstumas de Brás Cubas” (1881), obra que inaugura o realismo/naturalismo no Brasil.
Ocorre que “O Memorial de Aires”(1908) já não é um livro como “Memórias Póstumas” ou “Dom Casmurro” em que o humor e a ironia estão vinculados à crítica da sociedade burguesa e pequeno-burguesa do II Império, desde as relações amorosas interessadas até críticas mais específicas como o problema da abolição ou a falta de vocação para política dentre os parlamentares. O humor machadiano perfaz-se por meio de um ceticismo que remete à perspectiva de um mulato que ascende à uma elite intelectual racista e, observador sagaz, percebe por meio de sutilezas as iniciativas egoístas de um personagem, a discriminação velada de outro: são as análise psicológicas que explicam a origem de uma conduta frequentemente simplória e que é revelada a nu pelo escritor realista.
Pois “O Memorial de Aires” parece pertencer a uma perspectiva literária distinta dos romances tipicamente realistas de Machado de Assis: aparentemente, temos uma conciliação junto ao gênero humano semelhante àquela de Eça de Queiróz em seus últimos romances, como “Cidade e As Serras”, quando não há a crítica de costumes avassalara de “O Crime do Padre Amaro”.
A história do “Memorial” tem a forma de um diário pessoal, que é contado a partir do dia 09 de Janeiro de 1988, um ano após o retorno do embaixador Conselheiro Aires ao Rio de Janeiro a título de aposentadoria.
E este narrador irá nos contar sua vida e suas relações pessoais com personagens intrigantes, humanos, contraditórios, porém também vistos sob a perspectiva parcial do embaixador.
E este narrador irá nos contar sua vida e suas relações pessoais com personagens intrigantes, humanos, contraditórios, porém também vistos sob a perspectiva parcial do embaixador.
Algumas sacadas típicas de Machado de Assis como o diálogo com o leitor estão presentes neste Memorial além de uma franqueza que remete ao procedimento literário de outro memorial, o de Brás Cubas:
“Está claro que lhe não falei da filha, mas confesso que se pudesse diria mal dela, com o fim secreto de ascender mais o ódio – e tornar impossível a reconciliação. Deste modo ela não iria daqui para a fazenda, e eu não perderia o meu objeto de estudo. Isto, sim, papel amigo, isto podes aceitar, porque és a verdade íntima e pura e ninguém nos lê. Se alguém lesse achar-me-ia mau, e não se perde nada em parecer mau: ganha-se quase tanto como em sê-lo”.
Percebe-se aqui como a situação atual de vida – ex-embaixador, aposentado, viúvo, sem filhos, morando sozinho com o empregado – justifica e faz o leitor compreender o “diálogo” com o papel. Talvez houvesse algo de auto-biográfico nestas passagens já que quando redigiu seu último trabalho, este era o período em que Machado de Assis vivia a solidão da velhice após a recente morte de sua ex-companheira. De pessimismo a conclusão final, e olhe lá.
De outra monta, é possível observar em algumas passagens uma percepção da vida menos pessimista que aquela esposada em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, cujo fim, lembramos, é :
“Verdade é que, ao lado dessas faltas, coube-me a boa fortuna de não comprar o pão com o suor do meu rosto. Mais; não padeci a morte de D. Plácida, nem a semidemência do Quincas Borba. Somadas umas coisas e outras, qualquer pessoa imaginará que não houve míngua nem sobra, e conseguintemente que saí quite com a vida. E imaginará mal; porque ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa deste capítulo de negativas: — Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa miséria”
Como dizíamos, temos aqui um exemplo da fina ironia machadiana que em termos de visão de mundo se expressa num pessimismo que talvez remetesse ao seu mal estar enquanto mulato ascendido à condição de membro da elite intelectual de um país igualmente periférico e subdesenvolvido.
De outro lado, observamos passagens em que a vida e em especial as personagens são vistas com mais condescendência, no “Memorial de Aires”:
“Se eu a visse no mesmo lugar e postura, não duvidaria ainda assim do amor que Tristão lhe inspira. Tudo poderia existir na mesma pessoa, sem hipocrisia da viúva nem infidelidade da próxima esposa. Era o acordo ou o contraste do indivíduo e da espécie. A recordação do finado vive nela, sem embargo da ação do pretendente; vive com todas as doçuras e melancolias antigas, com o segredo das estreias de um coração que aprendeu na escola do morto. Mas o gênio da espécie faz reviver o extinto em outra forma, e aqui lho dá, aqui lho entrega e recomenda.”
A viúva Fidélia fora uma dedicada esposa até a morte do marido, cuidando diuturnamente de seu túmulo e fechando o seu coração a todos os pretendentes. Porém, Aires já previa a possibilidade da viúva (que ainda era jovem) fraquejar o seu luto e conciliá-lo com um novo amor, por meio de uma teoria bastante simpática ao gênero humano – quando um Machado de Assis mais mordaz poderia especular sobre interesses pecuniários e outros que não os de bom coração, os que efetivamente levaram a viúva Fidélia a novo casamento.
Outra passagem que revelaria um Machado de Assis mais otimista:
“A questão é que virtualmente não se quebre este laço, e que a lei da vida não destrua o que foi da vida e da morte. Creio nas afeições de Fidélia; chego a crer que as duas formam uma só, continuada.
Quando eu era do corpo diplomático efetivo, não acreditava em tanta coisa junta, era inquieto e desconfiado; mas, se me aposentei foi justamente para crer na sinceridade dos outros. Que os efetivos desconfiem!”
Apenas um estudo mais biográfico poderia apontar eventuais coincidências entre o ponto de vista do embaixador Conselheiro Aires e o próprio Machado de Assis. Importa aqui assinalar que para além da divisão tradicional binária entre “jovem” e “maduro” Machado de Assis, existem outras produções que não se encaixam dentro deste binômio, merecendo leitura e análises à parte.
Nenhum comentário:
Postar um comentário