“Dez
Dias Que Abalaram o Mundo” – John Reed
Resenha
Livro - “Dez Dias Que Abalaram o Mundo: História de Uma Revolução” – John Reed –
Clássicos de Ouro Ilustrados Ediouro
“Não
foi estabelecendo acordos com as classes proprietárias, nem se conciliando com
o antigo mecanismo governamental, que os bolcheviques conquistaram o poder. Nem
tampouco pela violência organizada de um pequeno grupo. Se as massas por toda a
Rússia, não estivessem prontas para a insurreição, esta teria fracassado. A
única razão para o sucesso dos bolcheviques reside em sua compreensão dos
vastos e simples desejos das mais profundas camadas do povo, chamando-as para o
trabalho de demolir o antigo e, em seguida, em meio à poeira das ruínas
desabando, erguer as estruturas do novo...”.
A
Revolução Russa de 1917 divide-se em duas grandes etapas. Uma primeira
revolução democrática que pôs abaixo o regime do Czar, instituindo um governo
de colaboração entre a burguesia, cadetes e diferentes partidos socialistas em
graus de distinta radicalidade. E a revolução de outubro, objeto deste livro
reportagem do periodista norte americano John Reed: uma revolução dirigida pelo
partido bolchevique de Lênin que instituiu a paz no contexto da I Guerra
Mundial, deu a terra aos camponeses, armou os operários e instituiu o controle
dos trabalhadores das fábricas.
Uma
versão errada sobre os acontecimentos de Outubro de 1917, disseminada inclusive
por esquerdistas como Noam Chomsky[1], seria a de que a segunda
revolução russa teria se reduzido a um mero golpe de estado, diminuindo uma
vasta revolução social, política, cultural e militar a sua dimensão
parlamentar, com a insurreição bolchevique de 7 de Novembro[2] em Petrogrado.
A
leitura deste relato de John Reed demonstra como esta versão não se sustenta.
Reed
acompanhou presencialmente aqueles dias da revolução em que os tempos
históricos aceleram-se de modo que horas e dias valem por anos e décadas. É uma
revolução social em que o passado feudal da velha Rússia vê-se confrontado com
a mobilização mais ou menos espontânea de massas de operários, soldados e
camponeses, subitamente jogados ao mundo da política e decidindo os seus rumos
coletivos em plenárias que perduram horas, até a madrugada. Estudantes burgueses
debocham nas ruas de operários vermelhos com o mesmo desdém com que os antigos
senhores feudais tratavam os mujiques. Uma situação em que se abre a
possibilidade da construção de uma nova sociedade, revendo as relações sociais
constituídas, ou implica numa derrota, com a consolidação da reação no poder.
A
revolução de outubro também não pode ser considerada um mero golpe palaciano
desde que houve um efetivo confronto de tipo militar, fruto da brutal
radicalização da luta de classes que acompanha todo período revolucionário. A
insurreição não se limitou a confrontos em Petrogrado. Houve enfrentamentos simultâneos
em Moscou, Kazan e Saratov. Emissários de Petrogrado levavam as novas aos
distritos nos rincões da Rússia, implicando na criação de formas de duplo poder,
através de soviets de operários, camponeses e soldados. Reed chama atenção como
os jornais com as notícias eram disputados nas ruas com a mesma violência do
que comida em escassez.
Os
junkers e os cossacos eram a expressão militar da direita, acompanhados dos
oficiais. Os soldados de baixa batente, as milícias operárias e os guardas
vermelhos, a expressão militar da democracia socialista. Os pequenos burgueses
histéricos, gritavam pela conciliação e viam o número de seus apoiadores
diminuindo paulatinamente. Em todo o caso, a revolução implica em reiterados “acertos
de conta”, revelando sempre como os conflitos e a mudança social, como diz
literalmente Marx, remetem às “dores de um parto”:
“Às 2
e meia, os junkers levantaram bandeira branca; eles se renderiam sob a garantia
de proteção. Prometeram-lhes proteção. Enfurecidos, centenas de soldados e
guardas vermelhos entraram pelas janelas, portas e buracos nas paredes. Antes
que alguém pudesse impedir, cinco junkers foram mortos a golpes de baioneta. O
restante, cerca de duzentos, foi levado sob custódia para a Fortaleza de Pedro
e Paulo em pequenos grupos, para não chamar a atenção. No caminho, uma multidão
avançou sobre um grupo, matando outros junkers... Mais de cem soldados vermelhos
e soldados haviam tombado”.
O
desenvolvimento da guerra civil entre as classes logo assumiu contornos de
guerra econômica. Após a derrota definitiva da contra-revolução com a
dissolução do Governo Provisório de Kerenski em 15 de Novembro, atividades de
sabotagem e especulação colocam em risco o abastecimento de alimentos nas
cidades e nos fronts. Uma situação particularmente preocupante deu-se com a
greve dos funcionários do Banco Estatal da Rússia, inviabilizando o acesso do
novo poder às divisas para o pagamento de funcionários. Foram necessários
destacamentos militares mandados às províncias para requisitar e punir
especuladores que escondiam o trigo, de modo a garantir o fornecimento do pão
na cidade e dentre os soldados.
A
contra-revolução se articula na Finlândia e na Ucrânia, com apoio dos alemães.
A guerra civil perduraria até 1922 com a intervenção militar de nada menos do
que 14 outros países, todos mobilizados para por fim à primeira experiência vitoriosa
de tomada de poder político pelos trabalhadores da cidade e do campo. O livro
demonstra como os partidos adversários de Lênin não acreditavam que os
bolcheviques perdurassem mais do que alguns dias ou semanas no poder. Além
disso, os documentos e intervenções do próprio partido bolchevique confirmam a
convicção dos comunistas russos de que a Revolução Russa seria complementada
pela Revolução dos trabalhadores dos países do ocidente, previsão que não se
confirmou.
A
narrativa de Reed demonstra que Lênin e Trótsky eram as lideranças mais importantes
no contexto da insurreição de 7 de Novembro. Lênin em primeiro lugar. Ocorre
que até Abril de 1917, Lênin encontrava-se no exílio, e os bolcheviques eram
uma minoria política nos soviets, com suas demais lideranças atuando
clandestinamente, mesmo ao longo do governo provisório. Como explicar a virada
de jogo? Como os bolcheviques rapidamente alcançaram o apoio da maioria dos
trabalhadores de Petrogrado e Moscou, seguido do apoio dos camponeses? Reed não
escreveu um livro de história e por isso não discorre sobre como o cansaço da
guerra, o anacronismo do antigo regime feudal e as contradições específicas do
desenvolvimento do capitalismo em sua fase imperialista num país como a Rússia
criaram as condições para a radicalização. Mas seu relato, com belas descrições
dos tipos humanos, paisagens e diferenças de conduta entre as classes sociais,
chama a atenção para um ponto central: a vitória dos bolcheviques deu-se porque
o programa que defendiam efetivamente falava ao coração do povo. Trata-se não
de palavras de ordem de tipo meramente propagandísticas, mas dos problemas
efetivos dos operários, camponeses e soldados, de modo que amplas as massas
puderam incorporar aquele programa como parte de suas vidas. De modo que as
massas estavam dispostos a morrer por aquelas ideias.
“Ao
raiar do dia, apareceram piquetes de cossacos de Kerenski. Houve troca de tiros
e ordens de rendição. Através da planície árida, o ar gelado e parado
transportava o som da batalha até os ouvidos dos bandos errantes que, sentados
ao redor das fogueiras, esperavam... Estava começando! Eles rumaram para o
combate. Nas estradas, hordas de trabalhadores apressavam o passo... De todos
os lados, surgiam como que saídos do nada, enxames humanos cheios de raiva,
dispostos a lutar, e os comissários lhes atribuíam postos de combate ou outras
ocupações. Essa batalha era deles, pelo mundo deles. Os oficiais em comando
haviam sido eleitos por eles. Naquele momento, a incoerência das diferentes
vontades unia-se em um só desejo”.
[2]
Quando dos acontecimentos do livro, a Rússia adotava o calendário Gregoriano,
enquanto os países do ocidente adotavam e adotam o calendário Juliano, com uma
diferença de 23 dias entre eles. Assim, a “Revolução de Outubro” ocorreu, ao
tempo de John Reed que acompanhava os acontecimentos in loco, no dia 7 de
Novembro.
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