“A Revolução Russa” – Sheila Fitzpatrick
Resenha Livro - “A Revolução Russa” –
Sheila Fitzpatrick – Ed. Todavia – Tradução de José Geraldo Couto.
Logo na introdução de sua história da
revolução russa, a historiadora australiana Sheila Fitzpatrick relata um
episódio da visita do presidente Nixon à China no ano de 1972. Diz a lenda que
um repórter teria questionado o premiê Chu En-Lai sobre o impacto mundial da
Revolução Francesa (1789) e a resposta foi algo como “ainda é cedo para
avaliar”.
Posteriormente, foi esclarecido que o
premiê pensou tratar-se não da revolução que derrubou o feudalismo na França,
mas dos eventos do maio de 1968. Ainda assim, a resposta não deixava de ser
razoável aos olhos do historiador, conforme Fitzpatrick:
“Sempre é cedo demais para avaliarmos o
impacto de grandes acontecimentos históricos, porque esse impacto nunca é
estático e está sempre se transformando conforme mudam as circunstancias do
presente e nossa perspectiva do passado. Assim foi com a Revolução Russa, cuja
memória atravessou uma série de vicissitudes, um processo que certamente
continuará no futuro”.
Em sendo a primeira experiência vitoriosa
de uma revolução de trabalhadores e camponeses no mundo, é certa não só a
variedade de versões sobre aqueles eventos, mas a existência de pontos ainda
obscuros e pendentes de análises. Só muito recentemente, graças à possibilidade
de mais acesso a documentos oficiais diante do fim da Guerra Fria e da própria
URSS, temas como a história do cotidiano na sociedade soviética, o problema
regional e a questão da revolução junto aos povos das diferentes
nacionalidades, bem como as experiência individuais, usando como fonte diários
e autobiografias, são exemplos de novas linhas de estudo.
Os primeiros relatos disponíveis no
ocidente sobre a Revolução Russa foram não tanto livros de história mas relatos
de pessoas que estavam participando ou relatando pessoalmente os eventos. É o
caso do notório relato do jornalista John Reed[1], dos trabalhos de Louis
Fischer ou mesmo os depoimentos autobiográficos de Trótsky. Em qualquer caso, a
estudiosa Sheila Fitzpatrick coloca-se como parte de uma nova geração de
estudiosos da história soviética que se beneficiaram a partir da década de 1990
da suspensão das restrições ao acesso aos arquivos na Rússia. Havia também a
história oficial, redigida pelo partido comunista, que é certamente uma versão
importante, mas limitada aos acertos do movimento russo, pouco crítica quanto
aos seus erros, e muito limitada aos aspectos políticos e militares da
revolução.
Assim, talvez mais do que nunca, a opinião
do premiê chinês tem uma validade inequívoca para a história da Revolução
Russa: 103 anos após a tomada do poder pelos bolcheviques, muita coisa ainda
deve ser descoberta e relatada, bem como os significados da revolução serão
revalidados, sendo ainda muito cedo para suscitar juízos definitivos.
No meio da Revolução
Não parece haver muita dificuldade em
situar o início da Revolução Russa em fevereiro de 1917 com a derrubada do
regime czarista por uma coalização política formada pelo campesinato, soldados
e trabalhadores e dirigida pela burguesia. A participação da Rússia numa guerra
extremamente impopular, a insistência do governo provisório em manter o país
dentro dos compromissos da guerra junto aos aliados, além do não cumprimento do
programa de entrega da terra aos camponeses, que representavam 80% da população
russa, foram criando as condições para a polarização e radicalização políticas.
Os corpos oriundos do front em seus caixões em direção às cidades só
aumentavam, bem como a desmoralização dos políticos conciliadores do Governo
Provisório que viam sua popularidade se esfarelar em detrimento dos partidos da
extrema esquerda e da direita.
Nas jornadas de 3 e 5 de julho os operários
de Petrogrado, junto com soldados e marinheiros de Kronstadt, lançaram-se
prematuramente numa manifestação de
massas. Lênin, que via a revolução como uma arte, com seu compasso determinado
por uma rigorosa análise das forças
sociais, compreendia que a tomada do poder naquele momento era prematura.
Lênin e os bolcheviques estavam certos. A
reação veio logo após as Jornadas de
Julho com o movimento de Kornlivov que fomentou a ameaça contra-revolucionária.
A reação kornilovista foi derrotada não pelo governo provisório, sempre
hesitante, mas pela força da organização dos operários e soldados.
Estavam dadas as condições para a
insurreição de Outubro, que levou à tomada do poder pelo partido bolchevique
apenas um dia antes do II Congresso Pan-Russo dos Soviets.
Uma dificuldade maior não é situar o início
da Revolução Russa, mas o seu fim. O fim teria se dado com a derrota militar do
governo provisório poucos dias após o levante de Petrogrado em Outubro? Ou o
fim se daria com o término da guerra civil (1918-1920)? Talvez alguém poderia
diz que a Revolução morreu junto com o seu inconteste líder, Lênin, no ano de
1924. Em todo o caso, nesta história a autora situa o fim da Revolução Russa
nos anos de 1937-38, durante os chamados grandes expurgos stalinistas, que por
um lado levaram à prisão política membros de todos os níveis do partido e por
outro (este lado talvez não muito relevado pela autora) levaram a maior unidade
político-ideológica do partido e da sociedade, possibilitando um fortalecimento
imprescindível para a derrota militar do nazi-fascismo na II Guerra Mundial.
A historiadora refere-se aos expurgos como
uma experiência análoga ao terror jacobino de 1794 no contexto da revolução
francesa. Já na sua introdução, a autora compartilha sua visão social de mundo
que não é de forma alguma revolucionária. Mas em todo caso, uma questão
suscitada na obra e que terá repercussão com a própria significação da História
da Revolução Russa no presente é a seguinte: como o furor ideológico que move
os revolucionários se adequa às exigências de um tempo pós-revolucionário,
quando as forças destrutivas e criativas da sociedade encontram-se exaustas? O
que fazer quando surge o imperativo de estabilizar as coisas? Como dar um fim à
revolução vitoriosa sem rejeitá-la no plano ideológico e prático? Este parece
ser um dos aspectos mais intrigantes do período stalinista que, diga-se de passagem,
se mostra do ponto de vista da historiadora australiana como o mais fiel
herdeiro do leninismo.
Stálin lançou o primeiro plano quinquenal
como algo com a mesma importância que a decisão do CC bolchevique de tomar o
poder em outubro de 1917. Foi um plano que tinha como escopo no mais curto
espaço de tempo industrializar a Rússia, com ênfase na indústria de base,
especialmente aço, ferro e carvão. Neste contexto, foi necessário garantir o
fornecimento de grãos pelos camponeses, implicando na necessidade de
coletivização e dura repressão aos especuladores. Uma verdadeira “revolução
pelo alto” nas palavras da historiadora.
Talvez a autora esteja correta parcialmente
ao chamar nós os revolucionários de
todos os tempos e lugares “de fascinados por metas grandiosas e irrealistas”:
talvez acabemos acreditando interiormente que a sociedade pode ser uma tábula rasa na
qual a revolução poderá ser escrita. Reconhecer as dificuldades do encerramento
do desafio revolucionário certamente não significa para nós renunciar ao
horizonte revolucionário.
[1]
“Dez Dias Que Abalaram o Mundo” – John Reed – Resenha disponível em http://esperandopaulo.blogspot.com/2020/04/dez-dias-que-abalaram-o-mundo-john-reed.html
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