“Casa
Grande e Senzala” – Gilberto Freyre
Resenha
Livro - “Casa Grande e Senzala” – Gilberto Freyre – Global Editora – 50ª Edição
Antecedentes
Quando
do advento da disciplina História no Brasil, com autores como Varhagen e
Capistrano de Abreu, havia uma orientação teórico-metodológica de tipo
positivista. Ênfase nos grandes eventos, nos feitos políticos e militares. Uma
história que se julgava imparcial, voltada ao arrolamento cronológico dos
fatos. Pouca atenção aos fatores que determinam os sentidos da história. Quase
nenhum relevo ao cotidiano, à cultura, às mentalidades, às ideias e mesmo aos fundamentos
sócio econômicos de longa duração. Uma historiografia oficial cujas fontes também
são oficiais, às atas de câmara e inventários de cartório.
Quando
o livro "Casa Grande e Senzala" foi lançado no ano de 1933 ainda surtia surpresa
e novidade uma historiografia amparada na história oral, descrevendo a
intimidade de atores sociais que não são percebidos nas fontes oficiais: os
negros da casa grande e da senzala, com suas danças, músicas e culinária; os
índios, ou ainda, as índias, que possibilitaram momentaneamente resolver o
problema da falta de mulher para os colonos[1],
dando início à mestiçagem e à sociedade híbrida; a sexualidade; as brincadeiras
de infância; o advento de palavras oriundas da mistura do português, do índio e
do negro. Do índio, pipoca, pereba, sapeca. Do negro, dengo, cafuné, moleque,
bunda.
Importa
dizer que este livro de Gilberto Freyre quando lançado em 1933 apontava para
novíssimas perspectivas da historiografia, ligadas ao movimento modernista que
encontra paralelo na arte com a Vanguarda de 1922. A busca da especificidade
brasileira, a necessidade de forjar as bases de uma nação, considerando que
aqui o Estado Nacional Independente (1822) antecedeu em muito a constituição da
Nação, qual seja, de uma nacionalidade que fosse além das particularidades regionais.
Ora,
na maior parte da trajetória histórica brasileira, da Colônia à República,
passando pelo Império, a população se viu mais como paulista, ou pernambucana,
ou como baiana, do que como brasileira. Coube à geração de grandes
historiadores dos anos 1930 buscar os traços de especificidade nacional, o que
se fez através do olhar sobre o nosso passado. Ou melhor, o nosso passado
colonial. Foram historiadores que aproximaram o estudo da história com as
demais ciências sociais: a sociologia, a antropologia, a crítica literária, a
economia política.
Foi o
caso de Gilberto Freyre e seu Casa Grande e Senzala, aproximando a história dos
estudos culturalistas então em voga nos EUA. Foi Sérgio Buarque de Hollanda com
seu Raízes do Brasil servindo-se da sociologia webberiana. Foi Caio Prado Jr. com
seu Evolução Política do Brasil estabelecendo a mais bem sucedida análise sócio
econômica do país através do materialismo histórico e dialético.
Quando
Gilberto Freyre lançou o seu Casa Grande e Senzala o autor tinha apenas 33 anos
de idade. Desde então a obra consolidou-se como um clássico para a compreensão do
passado colonial, da formação da família brasileira sob o regime da economia
patriarcal: monocultura, mão de obra escrava, poder inconteste de senhores de
engenho, superando mesmo o poder metropolitano. Regime de sociedade híbrida,
estabelecendo, segundo o autor, uma relação de equilíbrio de antagonismos e
acomodações entre brancos, índios e negros.
“Considerado
de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos
às primeiras páginas desde ensaio, um processo de equilíbrio de antagonismos.
Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia
e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e pastoril. A
católica e a herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de
engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande
proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos
os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo”.
Crítica
Passados
tantos anos após a publicação da obra, criou-se um certo senso comum com
críticas no sentido do ensaio reivindicar uma suposta “democracia racial” no
Brasil. Gilberto Freyre supostamente omitindo os momentos de maior conflito
social e opressão do branco, primeiramente sobre o índio, e depois sobre o
africano. Alguns, mais afoitos ou talvez influenciados pela ideologia
identitarista, poderão ter G. F. como um racista, como é comum se ter hoje, de
forma anacrônica, um Monteiro Lobato. Tais análises não convencem.
Quando
da redação do ensaio ainda estava em voga análises que buscavam associar o
atraso cultural e civilizacional do Brasil ao clima e à confluência de raças,
bem como à mestiçagem. Já aqui Gilberto Freyre combate estas análises
revelando, com fontes convincentes, o enorme peso da alimentação e da doença
(especificamente a sífilis) na constituição do brasileiro.
“Da
ação da sífilis já não se poderá dizer o mesmo; que esta foi a doença por
excelência das casas grandes e das senzalas. A que o filho do senhor de engenho
contraía quase brincando entre negras e mulatas ao desvirginar-se precocemente
aos doze ou aos treze anos. Pouco depois desta idade já o menino era donzelão.
Ridicularizado por não conhecer mulher e levado na troça por não ter marca de
sífilis no corpo. A marca do sífilis, notou Martius que o brasileiro a
ostentava como quem ostentasse uma ferida de guerra; e cinquenta anos depois de
Martius um observador francês, Emile Béringer, negando ao clima do norte do
Brasil influência preponderante na morbilidade da região, salientava a importância
verdadeiramente trágica da sífilis: “A sífilis produz grandes estragos. A maior
parte dos habitantes não a consideram como uma moléstia vergonhosa e não têm
grande cuidado. Independentemente de sua influência sobre o desenvolvimento de
numerosas afecções especiais, fornece um contingente de dez falecimentos sobre
mil”.
No
que se refere à higiene, há maior asseio no índio do que no branco. Os
primeiros tomam até 10 banhos por dia no rio. Os segundos passam semanas e
meses apenas molhando rosto e mãos, utilizando a mesma vestimenta até esfarelar
a roupa no corpo. No que se refere à medicina, ela é praticamente inócua, pelo
menos até meados do século XIX. No Brasil colonial, afirma um observador da
época, é mais fácil e provável curar-se de enfermidade com o pajé do que com um
médico vindo da Europa.
Alimentação
deficiente e instável, falta de higiene, moléstias incuráveis, estes fatos do
Brasil Colônia explicam mais as deformidades físicas e morais do brasileiro do
que a influência do clima e das raças. Em outras passagens, como nas análises
da sexualidade, demonstra-se como o sadismo, a violência e a imoralidade também
não se explicam pelos critérios raciais, mas pelas origens sociais e
econômicas. A escravidão e o patriarcalismo da família brasileira. Ontem, um
menino que judiava de um pequeno negro da Casa Grande. Amanhã, um homem que
violenta sexualmente as negras e manda torturar e matar seus africanos, não sem
um certo prazer sádico.
Agora,
é certo que o olhar sobre o passado colonial lançado por Gilberto Freyre parece
ser oriundo da Casa Branca, talvez enaltecendo um pouco o que era belo e doce
do nosso passado colonial. Os cuidados maternais da ama de leite; as festas com
comilança de doces nos casamentos e batizados; os batuques alegres da senzala;
um certo intimismo festivo da religião muito distinto do ascetismo católico
doutrinário predominante na América Espanhola. Doces e quitutes das negras e as
brincadeiras de crianças, envolvendo o filho da senzala e o nhonhô.
No
intuito de demonstrar a confluência e harmonização das raças, é sintomático que
o ensaio faça pouca menção ao pelourinho ou à máscara de flanderes.
Assim
como referências a um fato não menos importante: o fato dos açoites e torturas
serem perpetrados de escravo preto contra escravo preto. O mesmo pode-se dizer
do capitão do mato: negros e mestiços de origem africana caçado seus iguais
fugitivos. O capitão do mato é ignorado no livro e tem expressão no Brasil de
hoje na figura do policial militar mal remunerado que perpetra violência nas
periferias das grandes cidades. Poucas menções e análises mais detidas sobre os
quilombos e outras formas de resistência do escravo negro, como o envenenamento
do senhor de engenho, a fuga e o suicídio. Faltou aqui a complementação da Casa
Grande para a Senzala. Da Senzala para a Casa Grande.
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