quarta-feira, 8 de abril de 2020

“Casa Grande e Senzala” – Gilberto Freyre


“Casa Grande e Senzala” – Gilberto Freyre



Resenha Livro - “Casa Grande e Senzala” – Gilberto Freyre – Global Editora – 50ª Edição

Antecedentes

Quando do advento da disciplina História no Brasil, com autores como Varhagen e Capistrano de Abreu, havia uma orientação teórico-metodológica de tipo positivista. Ênfase nos grandes eventos, nos feitos políticos e militares. Uma história que se julgava imparcial, voltada ao arrolamento cronológico dos fatos. Pouca atenção aos fatores que determinam os sentidos da história. Quase nenhum relevo ao cotidiano, à cultura, às mentalidades, às ideias e mesmo aos fundamentos sócio econômicos de longa duração. Uma historiografia oficial cujas fontes também são oficiais, às atas de câmara e inventários de cartório.

Quando o livro "Casa Grande e Senzala" foi lançado no ano de 1933 ainda surtia surpresa e novidade uma historiografia amparada na história oral, descrevendo a intimidade de atores sociais que não são percebidos nas fontes oficiais: os negros da casa grande e da senzala, com suas danças, músicas e culinária; os índios, ou ainda, as índias, que possibilitaram momentaneamente resolver o problema da falta de mulher para os colonos[1], dando início à mestiçagem e à sociedade híbrida; a sexualidade; as brincadeiras de infância; o advento de palavras oriundas da mistura do português, do índio e do negro. Do índio, pipoca, pereba, sapeca. Do negro, dengo, cafuné, moleque, bunda.

Importa dizer que este livro de Gilberto Freyre quando lançado em 1933 apontava para novíssimas perspectivas da historiografia, ligadas ao movimento modernista que encontra paralelo na arte com a Vanguarda de 1922. A busca da especificidade brasileira, a necessidade de forjar as bases de uma nação, considerando que aqui o Estado Nacional Independente (1822) antecedeu em muito a constituição da Nação, qual seja, de uma nacionalidade que fosse além das particularidades regionais.

Ora, na maior parte da trajetória histórica brasileira, da Colônia à República, passando pelo Império, a população se viu mais como paulista, ou pernambucana, ou como baiana, do que como brasileira. Coube à geração de grandes historiadores dos anos 1930 buscar os traços de especificidade nacional, o que se fez através do olhar sobre o nosso passado. Ou melhor, o nosso passado colonial. Foram historiadores que aproximaram o estudo da história com as demais ciências sociais: a sociologia, a antropologia, a crítica literária, a economia política.

Foi o caso de Gilberto Freyre e seu Casa Grande e Senzala, aproximando a história dos estudos culturalistas então em voga nos EUA. Foi Sérgio Buarque de Hollanda com seu Raízes do Brasil servindo-se da sociologia webberiana. Foi Caio Prado Jr. com seu Evolução Política do Brasil estabelecendo a mais bem sucedida análise sócio econômica do país através do materialismo histórico e dialético.

Quando Gilberto Freyre lançou o seu Casa Grande e Senzala o autor tinha apenas 33 anos de idade. Desde então a obra consolidou-se como um clássico para a compreensão do passado colonial, da formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal: monocultura, mão de obra escrava, poder inconteste de senhores de engenho, superando mesmo o poder metropolitano. Regime de sociedade híbrida, estabelecendo, segundo o autor, uma relação de equilíbrio de antagonismos e acomodações entre brancos, índios e negros.

“Considerado de modo geral, a formação brasileira tem sido, na verdade, como já salientamos às primeiras páginas desde ensaio, um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de economia e de cultura. A cultura europeia e a indígena. A europeia e a africana. A africana e a indígena. A economia agrária e pastoril. A católica e a herege. O jesuíta e o fazendeiro. O bandeirante e o senhor de engenho. O paulista e o emboaba. O pernambucano e o mascate. O grande proprietário e o pária. O bacharel e o analfabeto. Mas predominando sobre todos os antagonismos, o mais geral e o mais profundo: o senhor e o escravo”.

Crítica

Passados tantos anos após a publicação da obra, criou-se um certo senso comum com críticas no sentido do ensaio reivindicar uma suposta “democracia racial” no Brasil. Gilberto Freyre supostamente omitindo os momentos de maior conflito social e opressão do branco, primeiramente sobre o índio, e depois sobre o africano. Alguns, mais afoitos ou talvez influenciados pela ideologia identitarista, poderão ter G. F. como um racista, como é comum se ter hoje, de forma anacrônica, um Monteiro Lobato. Tais análises não convencem.

Quando da redação do ensaio ainda estava em voga análises que buscavam associar o atraso cultural e civilizacional do Brasil ao clima e à confluência de raças, bem como à mestiçagem. Já aqui Gilberto Freyre combate estas análises revelando, com fontes convincentes, o enorme peso da alimentação e da doença (especificamente a sífilis) na constituição do brasileiro.

“Da ação da sífilis já não se poderá dizer o mesmo; que esta foi a doença por excelência das casas grandes e das senzalas. A que o filho do senhor de engenho contraía quase brincando entre negras e mulatas ao desvirginar-se precocemente aos doze ou aos treze anos. Pouco depois desta idade já o menino era donzelão. Ridicularizado por não conhecer mulher e levado na troça por não ter marca de sífilis no corpo. A marca do sífilis, notou Martius que o brasileiro a ostentava como quem ostentasse uma ferida de guerra; e cinquenta anos depois de Martius um observador francês, Emile Béringer, negando ao clima do norte do Brasil influência preponderante na morbilidade da região, salientava a importância verdadeiramente trágica da sífilis: “A sífilis produz grandes estragos. A maior parte dos habitantes não a consideram como uma moléstia vergonhosa e não têm grande cuidado. Independentemente de sua influência sobre o desenvolvimento de numerosas afecções especiais, fornece um contingente de dez falecimentos sobre mil”.

No que se refere à higiene, há maior asseio no índio do que no branco. Os primeiros tomam até 10 banhos por dia no rio. Os segundos passam semanas e meses apenas molhando rosto e mãos, utilizando a mesma vestimenta até esfarelar a roupa no corpo. No que se refere à medicina, ela é praticamente inócua, pelo menos até meados do século XIX. No Brasil colonial, afirma um observador da época, é mais fácil e provável curar-se de enfermidade com o pajé do que com um médico vindo da Europa.

Alimentação deficiente e instável, falta de higiene, moléstias incuráveis, estes fatos do Brasil Colônia explicam mais as deformidades físicas e morais do brasileiro do que a influência do clima e das raças. Em outras passagens, como nas análises da sexualidade, demonstra-se como o sadismo, a violência e a imoralidade também não se explicam pelos critérios raciais, mas pelas origens sociais e econômicas. A escravidão e o patriarcalismo da família brasileira. Ontem, um menino que judiava de um pequeno negro da Casa Grande. Amanhã, um homem que violenta sexualmente as negras e manda torturar e matar seus africanos, não sem um certo prazer sádico.

Agora, é certo que o olhar sobre o passado colonial lançado por Gilberto Freyre parece ser oriundo da Casa Branca, talvez enaltecendo um pouco o que era belo e doce do nosso passado colonial. Os cuidados maternais da ama de leite; as festas com comilança de doces nos casamentos e batizados; os batuques alegres da senzala; um certo intimismo festivo da religião muito distinto do ascetismo católico doutrinário predominante na América Espanhola. Doces e quitutes das negras e as brincadeiras de crianças, envolvendo o filho da senzala e o nhonhô.

No intuito de demonstrar a confluência e harmonização das raças, é sintomático que o ensaio faça pouca menção ao pelourinho ou à máscara de flanderes.  

Assim como referências a um fato não menos importante: o fato dos açoites e torturas serem perpetrados de escravo preto contra escravo preto. O mesmo pode-se dizer do capitão do mato: negros e mestiços de origem africana caçado seus iguais fugitivos. O capitão do mato é ignorado no livro e tem expressão no Brasil de hoje na figura do policial militar mal remunerado que perpetra violência nas periferias das grandes cidades. Poucas menções e análises mais detidas sobre os quilombos e outras formas de resistência do escravo negro, como o envenenamento do senhor de engenho, a fuga e o suicídio. Faltou aqui a complementação da Casa Grande para a Senzala. Da Senzala para a Casa Grande.




[1] O grande problema da colonização portuguesa no Brasil foi a falta de gente.


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