segunda-feira, 6 de abril de 2020

Contos Essenciais de Machado de Assis


“Contos Essenciais” – Machado de Assis



Resenha Livro – Parte II - “Contos Essenciais” – Machado de Assis – Ed. Martin Claret – Seleção e Apresentação: Jean Pierre Chauvin

Machado de Assis transitou por todos os gêneros literários ainda que os seus romances e contos tenham ficado como os mais representativos de sua obra. Advindo de origem social humilde, mulato, gago e inserido no Brasil escravocrata do II Império (1840-1891), o Bruxo do Cosme Velho foi um caso raro de rompimento da rígida pirâmide social brasileira, granjeando reconhecimento ainda em vida. Foi, entre outros, patrono da Academia Brasileira de Letras.

Antes mesmo de se iniciar na vida de jornalista político da corte, Machado de Assis fora tipógrafo, uma espécie de profissão artesanal que congrega o trabalho físico e a proximidade com o trabalho intelectual. Consta que no Brasil uma das primeiras categorias a sindicalizar-se e exercer manifestações políticas foi justamente a dos tipógrafos, dadas aquelas peculiaridades da profissão.

O fato é que mesmo a genialidade do escritor esteve condicionada quanto ao seu reconhecimento ao compadrio e às proteções de editores e homens de letras.

Cumpre assinalar que o compadrio e o favorecimento pessoal foram uma temática constante de alguns contos desta coletânea. É o caso especialmente do conto “O Programa” que nada a patética[1] trajetória de Romualdo, um bacharel de Direito que traça para si metas e objetivos de grandeza material e amorosa, mas cujo “programa” vê gorado pelas vicissitudes do destino. O acaso sempre triunfando sobre o que é minuciosamente planejado.

Se há aqui um denominador comum na narrativa machadiana, é justamente as forças incontornáveis do acaso, da sorte ou do azar. O destino selado pelas contingências da vida.

O desenlace das personagens, por exemplo, sua riqueza, irá depender não do esforço ou do trabalho, mas do acaso: como um testamento e herança oriunda de uma morte inesperada que engendrará a fortuna. Ou o sentido inverso do azar: um casamento movido por interesses pecuniários e o desfazimento do enlace por situações acidentais engendrando o triste fim da pobreza. É o caso, entre outros, de contos como “Luís Soares” e “Rei dos Caiporas[2]”.

Neste contexto onde não há muito espaço para o reconhecimento do mérito e do esforço, predomina a filosofia do conto “Teoria do Medalhão”. “Condeno a aplicação, louvo a denominação”. Este é apenas um dos momentos em que se percebe como a narrativa machadiana dialoga com o patrimonialismo brasileiro, a confusão entre o público e o privado na condução dos negócios do governo e nas empresas particulares.

Raros foram os escritores tão versáteis e imaginativos como Machado de Assis. Além dos já citados romances e contos, o escritor fluminense produziu crônicas, poemas, peças de teatro, crítica literária, além de traduções do francês e do inglês, tudo de forma ininterrupta entre os anos 1850-1900.

O seu “Memórias Póstumas de Brás Cubas” de 1881 deu início ao realismo literário brasileiro, escola artística baseada na objetividade da descrição das personagens e cenas. Relatos em sua maioria dos extratos emergentes da burguesia citadina do RJ, no transcurso de um período histórico contraditório, quando coexiste no Brasil o atraso dos Sertões e a permanência do regime escravocrata com o advento das cidades, de bulevares e grandes avenidas que expulsam as populações pobres para as periferias, da arquitetura moderna copiada de França, dos jornais, dos bancos, das casas comerciais, dos capitalistas e seus bacharéis, além de escolas filosóficas voltadas ao progresso material e espiritual: o positivismo, o evolucionismo, o liberalismo político e econômico, o republicanismo e até os primeiros ensaios de socialismo.

Foram muitos os observadores do período que viram de forma perspicaz a existência de dois Brasis no fim do séc. XIX. O sertão e a cidade. Os resquícios da economia colonial e o advento de indústria e cidades. O analfabetismo e atraso cultural do povo e uma emergente elite de letrados bacharéis oriundos das escolas de Direito e Medicina.

É indiscutível que Machado de Assis foi, nesse sentido, um escritor que retratou o Brasil das elites. Será apenas com o Modernismo de Mário de Andrade, Jorge Amado, Graciliano Ramos, entre tantos outros, que os sertões e subúrbios merecerão seu devido protagonismo.

(*)     Quadro de Belmiro de Almeida – Arrufos - 1887


[1] Patético no sentido empregado pela língua francesa: engraçado e triste ao mesmo tempo.
[2] Caiporas é uma palavra em desuso e significa azar ou azarado.

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