A História do Padre Cícero
Resenha Livro – “Juazeiro do Padre Cícero” – M. B. Lourenço
Filho – Ed. Melhoramentos
Anualmente, no
mês de março, ocorre a Romaria de Padre Cícero na cidade do Juazeiro do Norte,
onde o líder messiânico desenvolveu sua atividade religiosa e política. A
peregrinação envolve milhares de romeiros que lá se dirigem para agradecer e
pagar as suas promessas atendidas. É um movimento popular espontâneo que
fortalece a identidade cultural do país em torno de um catolicismo aclimatado à
alma do povo sertanejo. Transcorridos quase cem anos desde a morte do líder
carismático cearense, as romarias em sua homenagem chegam a reunir centenas de
milhares de pessoas, denotando o potencial nacional revolucionário e engajador
do movimento de romarias em torno de Cícero Romão
Batista, o Padre Cícero.
Entretanto, se
esse aspecto cultural e religioso se revelam como a face mais positiva do padre,
o seu envolvimento político junto à oligarquia Acyoly e ao deputado/jagunço
Floro Bartolomeu parecem revelar os traços mais negativos dessa figura
carismática e profundamente contraditória.
Cícero Romão Batista nasceu em 1844 na cidade
do Crato, no interior do Ceará. Quando tinha 16 anos de idade matriculou-se num
seminário de padres dirigido por um duro clérigo chamado Inácio de Sousa Rolim.
Consta que ao final dos estudos, a liderança da escola recomendou a não
ordenação do futuro messias como padre, por ter demonstrado ser uma pessoa excessivamente
obstinada. Foi necessária a intervenção de um coronel próximo da família de
Cícero demandando junto à escola que ele fosse finalmente admitido como padre.
O líder
religioso foi ordenado em 1870. Naquela época, mais de 80% da população do
Ceará era analfabeta e havia em todo o estado cerca de 40 padres. A atividade
desses jovens missionários não era propriamente constituir um terreno fixo de
ação em torno de uma paróquia. Eles tinham que percorrer léguas a fio, através
de uma atividade de andarilhos, para contemplar todo aquele vasto sertão
nordestino, com suas cidades longínquas. Naquela época, o padre seguia de
cidade em cidade, e em cada parada, além de ministrar as missas, abençoa os
açudes e os animais, para que fossem atendidas as preces pelas chuvas. Atendem
os pedidos dos beatos e quando os milagres acontecem, atribuem-nos à benção do
padre. Em certo sentido, essa atividade tem como origem mais remota as missões jesuíticas
por meio dos quais os religiosos se lançavam aos cantos mais longínquos do
território, ao norte e ao sul, para catequizar índios bravios no meio do mato.
Além de Padre
Cícero, outro que desempenhou essa atividade de padre andarilho foi Antônio
Conselheiro, que depois se tornou o grande líder da Guerra de Canudos.
No ano de 1890
ocorreria o grande evento milagroso que consagraria a popularidade do Padre
Cícero. Ao ministrar uma hóstia para a beata Maria de Araújo, constatou-se a
transformação dessa hóstia em sangue. O fato foi testemunhado pelas diversas
outras pessoas e a boato se disseminou como pólvora sertão a dentro. Logo, essa
hóstia transformada em sangue foi descrita pelo povo como o sangue de cristo, e
a terra onde ele foi derramado como uma terra sagrada. Essa terra é Juazeiro, a
cidade onde ocorreu o milagre e onde se criou o mito político e religioso em
torno de Padre Cícero.
Diante da
popularização do padre pelo milagre de Maria de Araújo, sua autoridade perante
o povo do Cariri iria despertar o interesse das oligarquias políticas que
dirigiam o estado do Ceará. De todo o conhecido coronelismo familiar dos
estados do nordeste, parece que o Ceará é aquele em que o tom familiar das
oligarquias é dos mais evidentes. Na época de Padre Cícero, o estado era
governado há tempos imemoriais pelo clã Acyoly
Naquele contexto
ocorreu a "Política das Salvações" (1910-1914) do presidente Hermes
da Fonseca por meio do qual o governo federal começou a intervir na política
dos estados, nomeando governadores e destituindo as oligarquias locais,
inclusive através do uso da força. Isso ocorreu o Ceará, quando apearam do
poder a família Acyoly. Esse clã familiar se apoiou na popularidade do Padre
Cícero para travar uma contraofensiva política naquilo que ficou conhecido com
a sedição de Juazeiro (1913/1914).
Aqui entra na
história a figura de Floro Bartolomeu, um médico e rábula que se internou no
sertão de Cariri, onde travou relações pessoais com o Padre Cícero. Conquistou
a confiança íntima do missionário ao ponto de se tornar uma espécie de “braço político”
do movimento religioso do Padre Cícero. Floro Bartolomeu constituiu um exército
de Jagunços de milhares de homens e ajudou a fazer de Juazeiro uma trincheira contra
o governo ilegítimo de Fortaleza, imposto dentro da Política das Salvações. Enquanto
o Padre Cícero mantinha sua autoridade moral e religiosa perante o povo do
Cariri, Floro Bartolomeu se credenciou como a sua liderança política e militar.
A sedição de
Juazeiro foi um movimento de revolta contra o Governo Estadual. Inicialmente, o
povo em armas em muito se assemelha com a campanha de Canudos. Jagunços e
fanáticos religiosos fizeram de Juazeiro uma trincheira militar e travaram uma
guerra de guerrilha contra expedições mandadas desde Fortaleza. Nas duas
primeiras campanhas, o exército popular do Padre Cícero sagrou-se vitorioso. Não
contentes, os milicianos de Juazeiro levaram adiante uma marcha em direção à
capital, passando por vilarejos e povoados, onde saqueavam e destruíam as casas
e bens de todos aqueles que tinham ligação com o governo ilegítimo de Fortaleza.
Os fanáticos apenas respeitavam as imagens e quadros sagrados nas casas, roubando
e destruindo todo o resto. Alcançaram finalmente a capital e depuseram o governador
Franco Rabelo em 15 de março de 1914.
Desde então, o
movimento dirigido por Floro Bartolomeu e por Padre Cícero, cada qual
representando a frente político-militar e espiritual, se tornam a principal
força política do Ceará. Posteriormente, Bartolomeu seria eleito Deputado Federal
e da Tribuna no Rio de Janeiro faria a defesa dos interesses das oligarquias
regionais ligadas à figura do Santo Padre.
No testamento de
Padre Cícero se nota um esforço do religioso em se dissociar dos eventos políticos
que levaram ao movimento sedicioso de 1913/1914. No texto declara que “nunca
desejou ser político” e que apenas autorizou que o nome dele fosse utilizado na
campanha política de 1913/1914 “a pedido da população dessa terra”.
Neste sentido, há
bastante controvérsia em torno do tipo exato de relacionamento existente entre Padre
Cícero e Floro Bartolomeu, desde aqueles que defendem que o clérigo agia sob
pressão da política local dos coroneis, emprestando a sua popularidade aos
interesses do clã Acyoly, até outros que entendem ser Bartolomeu um mero testa
de ferro de iniciativas de cunho político advindas do próprio padre.
Esse mesmo
testamento revela a existência de um vasto acervo de bens, especialmente
terras, no nome do Padre Cícero, o que não parece se coadunar com a figura de
um santo ascético.
Assim, a figura
do Padre Cícero se revela aos olhos daqueles que estudam a sua história
bastante contraditória.
A fama de santo
milagreiro e a sua atividade puramente religiosa criaram condições para a
existência de um movimento popular espontâneo e de massas, que traz à tona uma
forma de catolicismo aclimatado à pobreza do sertão, voltado à devoção aos
santos da Igreja Católica e aos apelos do imaginário do sertanejo e do povo
simples. Do ponto de vista cultural, as romarias, que existem até hoje, são uma
expressão de uma religiosidade profundamente emotiva e devocional, que devem
ser saudada por todos aqueles que amam o Brasil, já que reforçam a existência
de uma identidade cultural que fortalece o nacionalismo e o amor pelo país.
Já do ponto de
vista puramente político, Padre Cícero talvez revele aqui a sua faceta mais
negativa: mesmo nos dias de hoje, a sua fama e o seu nome são explorados pelas
oligarquias regionais, que se servem dos mitos em torno do santo milagreiro
para manutenção da ordem social baseada no latifúndio, no coronelismo, na
desigualdade social e na violência contra qualquer tipo de movimento
contestatório.







