“O Povo Brasileiro” – Darcy Ribeiro
Resenha Livro - “O
Povo Brasileiro: a formação e o sentido do Brasil” – Darcy Ribeiro – Ed. Global
“Na verdade das coisas, o que somos é a nova
Roma. Uma Roma tardia e tropical. O Brasil já é a maior das nações neolatinas,
pela magnitude populacional, e começa a sê-lo também por sua curiosidade
artística e cultural. Precisa agora sê-lo no domínio da tecnologia da futura
civilização, para se fazer uma potência econômica, de progresso
autossustentado. Estamos nos construindo na luta para florescer amanhã como uma
nova civilização, mestiça e tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre,
porque mais sofrida. Melhor, porque incorpora em si mais humanidades. Mais
generosa, porque aberta à convivência com todas as raças e todas as culturas e
porque assentada na mais bela e luminosa província da terra”.
No prefácio do livro
“O Povo Brasileiro” (1995), Darcy Ribeiro revela ter demorado trinta anos para
concluir a obra, escrevendo-a e reescrevendo-a ao longo de todo esse tempo, a
medida que foi amadurecendo suas pesquisas e experiências na vida pública.
No ano de 1995,
quando estava internado na UTI para tratar de um câncer de pulmão, o autor
tomou a insólita decisão de fugir do hospital para uma casa de praia em
Maricá/RJ, onde pôde ter a tranquilidade necessária para concluir o ensaio.
Felizmente, teve
a oportunidade de terminar a obra, certamente a mais importante que produziu.
Morreu dois anos depois da fuga do hospital, deixando atrás de si uma trajetória
política e acadêmica que envolveu a chefia da Casa Civil no governo João
Goulart (1963), foi vice governador do Rio de Janeiro na chapa de Leonel
Brizola (1982) e foi fundador da
Universidade de Brasília (1962).
O livro tem o
propósito de construir uma teoria do povo brasileiro. Entendendo esse povo como
uma nova etnia, configurada através das três grandes matrizes raciais – o índio
originário da terra, o negro africano e o branco português. E mais do que uma
nova etnia, uma nova civilização, consistente na encarnação ultramarina e
tropical da civilização latina, naquilo que denomina ao final do livro como a “Nova
Roma”.
Baseando-se na
premissa em torno da especificidade brasileira, Darcy Ribeiro irá traçar um
relato da evolução histórica da conformação do povo e o seu desmembramento em quatro
grandes matrizes: o “Brasil Crioulo” constituído através dos engenhos de
açúcar, do latifúndio, da monocultura agrário exportadora e do trabalho escravo;
o “Brasil Sertanejo”, relacionado à interiorização da ocupação territorial no
nordeste através da pecuária, com as suas figuras messiânicas e o banditismo
social dos cangaceiros; o “Brasil Caipira” que remonta aos bandeirantes
paulistas, passando pela economia da mineração e despontando na economia do
café e na imigração italiana; e o “Brasil Sulista”, temperado nas guerras e na
animosidade bélica de gaúchos e caudilhos, que se entrincheiram em suas
fazendas, disputando terras na bala com os espanhóis.
A origem mais
remota do povo brasileiro, o seu nascimento, dá-se através do mameluco, também
qualificado pelo autor como “brasilíndio”.
No Brasil, ao
contrário do que ocorreu nas colônias de povoamento da América do Norte, foram
constituídas aquilo que Caio Prado Júnior muito bem descreve como “colônias de
exportação”, empreendimentos agrário exportadores, por meio dos quais o branco
europeu lançou-se aos trabalhos de escambo com os índios e posteriormente à
economia do açúcar, sem a intenção de constituir um povoamentos ao estilo europeu.
Diferentemente
do que ocorreu na América do Norte, onde famílias europeias eram transplantadas
para reconstruírem no novo mundo a velha sociedade europeia, no Brasil houve a
necessidade de construir algo novo. O português aqui chegou sem trazer a mulher
branca, dando vazão à concupiscência sexual na sua relação com as índias e
depois com as negras e mulatas.
E daí exsurge os
primeiros brasileiros:
“O primeiro brasileiro consciente de si foi,
talvez, o mameluco, esse brasileiro mestiço na carne e no espírito, que não
podendo identificar-se com os que foram seus ancestrais americanos – que ele
desprezava -, nem com os europeus – que o desprezavam -, e sendo objeto de mofa
dos reinóis e dos lusonativos, via-se condenado à pretensão de ser o que não
era nem existia: o brasileiro”.
O brasileiro
nasce portanto dentro dessa dupla dinâmica de exclusão: rejeita a mãe de origem
indígena e é rejeitado pelo pai de origem europeia.
Existe muita controvérsia
hoje em dia em torno do papel da mestiçagem na formação do nosso povo e do
conceito da democracia racial, teses representativas do pensamento de Gilberto
Freire.
Darcy Ribeiro
reconhece o racismo do Brasil, mas ressalva que aqui o nosso preconceito
predominante é o de classe.
Nossa situação
não se confunde com o segregacionismo racial dos norte americanos. Lá existe um
preconceito de raça, ao passo que no Brasil existe um preconceito de cor,
sempre temperado pelo preconceito de classe. Enquanto no norte se trata de um
problema de sangue, aqui se trata de preconceitos em torno de fenótipo.
“O preconceito de raça, de padrão anglo
saxônico, incidindo indiscriminadamente sobre cada pessoa de cor, qualquer que
seja a proporção de sangue negro que detenha, conduz necessariamente ao
apartamento, à segregação e à violência, pela hostilidade a qualquer forma de
convício. O preconceito de cor dos brasileiros, incidindo, diferencialmente,
segundo o matriz de pele, tendendo a identificar como branco o mulato claro,
conduz antes a uma expectativa de miscigenação. Expectativa, na verdade
discriminatória, porquanto aspirante a que os negros clareiem, em lugar de aceita-los
tal qual são, mas impulsora da integração.”.
A própria ideia
de miscigenação é levada num novo patamar na obra. Ela está diretamente relacionada,
no caso brasileiro, com a “deculturação” do português, do africano e do índio
pré colombiano.
Na gênese do
povo brasileiro – diferenciação de um povo dotado de especificidade – o índio
é “destribalizado”, negro é “desafricanizado” e português é “deseuropeizado” - cada um deles para se constituir como
Brasileiro.
Não foi portanto
a mestiçagem uma mera mistura de raças mas a reconfiguração de cada uma dessas
matizes étnicas para a criação de um novo povo.
No caso do
índio, a sua “destribalização” se seu através da intervenção dos missionários,
particularmente os jesuítas, que através dos seus aldeamentos,
disciplinaram-nos ao trabalho, tentando-lhes incutir alguns valores cristãos e buscando
conter a poligamia, a antropofagia e outros excessos.
A intervenção
dos colonos, ou mais especificamente dos sertanistas paulistas, que capturam os
índios para escravizá-los, inclusive destruindo as missões jesuíticas,
aproveitando que os índios já estavam agrupados e prontos ao trabalho, também
foi uma forma de “destribalização”.
A deculturação
dos africanos decorreu de uma estratégia dos latifundiários: no tráfico de
escravos, buscou-se misturar as diferentes nações africanos dentro das mesmas
frentes de trabalho. Evitava-se assim criar um sentimento de coesão tribal que
pudesse desafiar o regime escravocrata. Interessante notar que esse fato fazia
com que os escravos, de diferentes etnias, sequer conseguissem comunicar-se
entre si. Cada tribo diferente da África tinha os seus próprios dialetos. Nos
locais onde grassava a escravidão negra, os africanos logo aprendiam o português,
por ser a língua que os unificava enquanto trabalhadores do engenho.
E a
deseuropização do português deu-se na exata medida em que aqui tiveram de
consolidar um novo estilo de vida, sem a pretensão de transplantar famílias e
modos de viver do velho continente, tal como se deu na América do Norte.
Essa
originalidade do processo histórico cria as bases de uma nova civilização, de
um povo original cuja data de nascimento é bastante recente, em termos
históricos, se cotejada por exemplo com os árabes, eslavos ou chineses. As
nossas potencialidades, neste sentido, são enormes e estão longe de se
exaurirem.
“O Povo Brasileiro”,
sem perder de vista a crítica impiedosa às mazelas da escravidão do negro e à destruição
da cultura indígena, é um chamado à defesa do Brasil.
Nas palavras do
escritor, no prefácio, “este é um livro que quer ser participante, que aspira
influir sobre as pessoas, que aspira ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”.

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